Sócrates - Raízes Gnosiológicas do Problema do Ensino

(texto da conferência - março 2000 - na Fac. de Educação da USP para o curso de doutorado:"A Educação para as virtudes na Tradição Ocidental")

 

Gilda Naécia Maciel de Barros
Fac. Educação da Universidade de São Paulo

 

Sócrates, uma das figuras mais referidas da história da cultura ocidental, é, também, uma das mais complexas e, literalmente falando, desconhecidas. A razão é simples: ele nada escreveu acerca do que fez ou pensou. E o que fez e pensou exerceu um impacto devastador na vida das pessoas que o freqüentaram e da comunidade na qual vivia.

 

A reação à sua poderosa personalidade e o impacto provocado por sua conduta e pensamento podem ser medidos por fatos. A democrática Atenas, onde os homens se gabavam de ter a ‘língua livre’, que não se cansava de alardear doçura, tolerância, magnanimidade para com estrangeiros, suplicantes e escravos, viu nele um inimigo do povo e um agente de corrupção dos jovens, acusando-o de subverter práticas consagradas pela mais cara tradição cívica. Em 399 a.C. três cidadãos moveram contra ele uma ação pública (graphé), enquadrando-o como ímpio.

 

A terra do ‘franco falar’ (parrhesía), julgando procedente a acusação, reconhecia nele a figura do homem mau, que é preciso combater, punir e, sobretudo, segregar, para que a sua influência seja extirpada da vida social. Dessa perspectiva, Sócrates passa a incorporar as características contrárias ao modelo do herói cívico, responsável pela proteção da comunidade, e por ela valorizado; agora, marcado com o sinal contrário, torna-se para todos um perigo.

 

Por outro lado, como que a compensar essa reação comunitária hostil – Atenas atingiu-o pela ação do tribunal popular –, desenvolveu-se após a sua morte um fenômeno espiritual de grande importância.

Aquele impacto a que nos referimos teve o seu lado positivo, e Sócrates, a sua louvação. Isso veio a traduzir-se na consolidação de um tipo de influência espiritual multifacetada, que se costuma designar pelo nome de socratismo. De fato, de seu convívio partilharam pessoas de condição social, objetivos e interesses variados e, por vezes, até contrários; após a sua morte algumas dessas pessoas se agruparam em orientações espirituais diferentes, apenas em alguns pontos coincidentes, às quais não negavam a poderosa ascendência socrática. Podem ser lembrados, aqui, alguns líderes e suas escolas, como o grande Platão (Atenas) e a Academia, Aristipo (Cirene) e os cirenaicos, Diógenes e os cínicos, Euclides (Megara) e os megáricos, entre outros. Todas essas correntes dariam, na fase helenística da cultura antiga, resultados significativos, pelo débito a elas devido por algumas das orientações filosóficas mais importantes daquele período.

 

Como se pode concluir, Sócrates é um ponto de referência incontornável na história da civilização ocidental. Falou-se dele, falar-se-á sempre dele. Alguns aproximam-no do filósofo, outros, do mártir, outros, do herói, outros, ainda, do grande mestre.

 

O "grande mestre" tem sido a opção preferida dos filósofos e dos educadores. Esses últimos, com muito orgulho, gostam de lembrar o hábil inquiridor, que finge tudo ignorar para tudo demolir, e investir, a seguir, desonerado dos julgamentos precipitados, na construção do saber, legitimado pela participação do interlocutor. Nesse grupo de admiradores, que sublinham sua condição de "maiêutico", infiltraram-se alguns admiradores vigorosos que se apressam em identificá-lo com o homem que inventou um grande método de ensino.

 

Este texto pretende discutir o sentido e a propriedade dessa associação de Sócrates com o problema do ensino, mais precisamente, com a questão dos meios no ensino. Em nossa interpretação Sócrates é "maiêutico", sim, mas esse "ser/agir maiêutico" se apresenta como "epistêmico" nos fundamentos e "didático" nos resultados. Ou, para ser fiel ao sentido mesmo da língua grega antiga, é preciso recuperar o sentido "gnosiológico" do termo "didático", e repensar sua vinculação originária com o problema da constituição do conhecimento, em sua dimensão lógica e conceitual, ou, se se quiser, em sua correspondência ôntica também.

 

Em educação, as teorias vão e vêm, as experiências se sucedem, mas, por vezes, algumas idéias permanecem e algumas experiências resistem, ainda que de forma parcial, a novas práticas. Se é discutível falar em "progressos" pedagógicos, não é arriscado considerar que, como saldo de tantas discussões e ensaios sobre educação, é possível, ao final desse inventário histórico, considerar, de forma otimista, alguns "ganhos".

 

Ora, a valorização socrática da autonomia do aluno faz parte desse "ganho" e nem se cogita, aqui, de pôr isso em discussão. Todavia, as idéias e práticas têm sua vinculação histórica; ao longo do tempo esse vínculo vai perdendo a sua força, enfraquecido por uma certo tipo de "apropriação" quase que fatal, operada por força de uma utilização espontânea, adaptativa, do meio cultural a que serve.

 

Nossa reflexão vai em direção ao passado, revitalizar precisamente o sentido original dessa "maiêutica", não para negar-lhe todas as implicações metodológicas que se tem procurado dela depreender, mas, antes, para redimensionar essas implicações à luz do momento histórico de sua gênese, ou seja, dentro de seu contexto intelectual.

 

Dessa perspectiva, o "atuar maiêutico" desqualifica-se como simples emprego processual de um recurso pedagógico, a que, em suas origens, ele está longe de reduzir-se, e nos porá bem na frente de um problema de fundo, vinculado a uma investigação acerca da natureza do saber. Ora, deslocado para este lado, a questão do método a que se associa a grande contribuição de Sócrates vem a ganhar uma outra configuração, que só podemos compreender nos quadros de uma história cultural. Em outras palavras, se há uma questão de método a que se pode ligar a figura de Sócrates, essa questão enraizava-se em domínios que ultrapassam a referência a meios, ou técnicas, e vincula-se a uma pesquisa sobre os fundamentos e os fins em educação.

 

O Sócrates maiêutico acabará por nos colocar em um emaranhado conceitual, obrigando-nos a considerar separadamente o "instruir" e o "educar", numa posição filosófica nova, que realça a importância do princípio do "ensinar educando".

 

Assim, importa então um recuo histórico, para colocar Sócrates dentro de seu tempo, em confronto com sua herança cultural.

 

Mas, como vamos alcançá-lo se não há acordo entre os helenistas acerca de sua pessoa e de seu pensamento? Nossa referência vai ser o Sócrates maiêutico, aquele mesmo a quem se reservou um lugar na história da educação e na filosofia da educação, o filósofo e o mestre, ou, se se quiser, o "mestre filósofo". Nesses termos, os críticos em geral nos remetem ao Sócrates platônico. Mais precisamente, ao Sócrates platônico dos primeiros diálogos, os chamados diálogos "aporéticos". Que diálogos são esses e quem é esse Sócrates, como se apresenta?

 

Os "aporéticos" são os primeiros diálogos platônicos, que se supõe terem sido compostos ainda sob o impacto da morte do mestre, ou sob a poderosa e mais recente influência da pessoa dele. Referem-se a pesquisas acerca da perfeição humana, mais precisamente da qualidades que a integram, de sua natureza e das condições de sua aprendizagem. Em geral esses diálogos não chegam a uma solução acerca do conceito investigado, seja ele a coragem (Lakhes), a piedade (Eutífron), a temperança (Cármides), a beleza (Hípias Maior), como também, sobre a possibilidade de essas qualidades serem alcançadas por meio do ensino (Protágoras, Mênon). Dizem-se aporéticos devido ao tipo de desfecho da trama dialógica, desenvolvida com grande habilidade argumentativa da parte de Sócrates; este, após ter exposto a falsa ciência do interlocutor (ironia e refutação), coloca-o em posição adequada para reiniciar a investigação, uma vez que foram eliminados os conceitos pré-estabelecidos acerca do tema que se quer conhecer.

 

Sócrates, a figura central dos diálogos platônicos em geral e desses de que tratamos em especial, é um homem da cidade antiga, sem dúvida, mas, por sua conduta, está acima e adiante de seu tempo. Trata-se de uma pessoa em tudo diferente. Fisicamente forte, mas de semblante sem beleza, com aparência de um sátiro. Psicologicamente arguto, controlado em suas emoções, resistente às intempéries da natureza, à dor, ao sofrimento e aos prazeres em geral. Indiferente aos enigmas da natureza, extremamente sociável e interessado na vida na cidade, nos problemas humanos relativos ao agir. Extremamente hábil no interrogar e refutar, rodeado, sempre, de amigos, discípulos ou ouvintes, submete essa habilidade a uma pesquisa antropológica de cunho ético. E o instrumento dessa pesquisa é o diálogo, que pratica invariavelmente, todo dia, em círculos fechados, de jovens quase sempre bem nascidos e ricos, ambiciosos e ávidos por ocupar um posto importante na política, ou em círculos abertos, em princípio para o homem comum, que circula ou trabalha na praça da cidade.

 

Até Sócrates, duas tradições culturais sustentaram o desenvolvimento espiritual dos gregos: a dos poetas e legisladores, de um lado, e a dos pesquisadores naturalistas, de outro. Aquela exercia sua influência de forma mais ampla, por intermédio da poesia, épica ou lírica, e da lei; esta aplicava-se a um círculo mais restrito de associados, os "companheiros", "concidadãos" ou "discípulos", que gravitam em torno do sábio que os lidera. Sócrates vai interessar-se sobretudo pelo exame crítico da primeira, o que enquadra sua reflexão no campo da ética, da política e da educação.

 

Se quisermos conhecer o tipo humano que aparece como ideal dessa cultura, tão presente na tradição literária, temos que considerar a importância que os gregos davam à aparência e ao caráter. O homem em sua plenitude (areté) deve ser belo (kalós) e de valor (agathós). Esse homem belo é sempre, nas origens, uma criatura de estirpe, um nobre. Conhece os refinamentos da vida elegante, sabe receber, é experimentado nos jogos e se sobressai em todas as circunstâncias, na assembléia ou no conselho, na qualidade de orador; no combate também, exibindo técnica e coragem diante do inimigo. Alcançar a kalokagathia, isto é, corpo e espírito excelentes, eis, de forma resumida, o supremo bem.

 

Quando Sócrates emerge no cenário grego, essa tradição vai ser questionada. Atenas é uma "cidade-escola". Centro cultural da mais alta importância, caminho obrigatório de passagem ou de estadia das figuras mais brilhantes daquela época. Pólo irradiador do saber, para onde poetas, adivinhos, retóricos, professores de eloqüência, declamadores, pesquisadores da natureza, intelectuais de toda espécie afluem, circulando pela ágora; ali, a fina flor da juventude freqüenta ilustres estrangeiros, discute sobre todos os temas e questiona, racionalmente, os fundamentos da vida religiosa, social, familiar, política. Atenas tem poder – ela governa um império, e lidera a Grécia, sustentando seu brilho com os recursos dos aliados, que protege do perigo persa e animada pelo vigor do regime democrático. Quando Sócrates, ao final da vida, é julgado e condenado por um tribunal popular, Atenas, esgotada à exaustão, perdera a Guerra do Peloponeso, e, com ela, o império marítimo que a consagrara, sob o governo de Péricles, como líder da Grécia; esforçava-se por superar as conseqüências políticas de dois golpes oligárquicos (411 e 403 a.C.), lutando por manter a paz e, com ela, internamente, a democracia, regime político restaurado ao qual associava a sua glória, e que, agora, cabia preservar.

 

Foi dentro desse quadro cultural e político que emergiu, cresceu, se impôs e brilhou a figura de Sócrates. Essa Atenas clássica conheceu todo o poder da atuação de sábios racionalistas, críticos implacáveis da tradição em todos os sentidos, extremamente hábeis, alguns deles, em desenvolver e ensinar técnicas de comunicação, que os jovens, futuros líderes da cidade, viriam a aplicar com perícia, visando ao êxito nas assembléias populares e no Conselho.

 

Sacudido pelos novos ventos, "iluminado" pelo implacável exercício crítico de sábios ambulantes, aquele ideal de excelência física e moral está em crise. O teatro cômico não vai perder a oportunidade de explorar o confronto entre os valores antigos e os novos, que acarretam mudanças notáveis e radicais na educação. A ilustração desse confronto pode ser acompanhada com proveito pela leitura de "As Nuvens", cujo autor, Aristófanes, não poupa talento em expor o choque de gerações e a radicalidade da atuação dos intelectuais contemporâneos.

 

Como Sócrates se situa diante desse quadro? Em que contexto e motivado por que preocupações ele irá agir, notabilizando-se pelo uso de uma tekhné investigativa, que depois se iria rotular de "método socrático"?

 

Como os sofistas, com os quais atua nesse cenário, Sócrates gosta de interrogar, partilha, até certo ponto, uma erística, uma arte de discutir. Mas os sofistas gostam de longos discursos, não sabem ou não gostam de fazer perguntas curtas e diretas, usam e abusam de comentários do mito, da poesia. Sócrates quer que tudo isso seja evitado, em benefício do diálogo direto, simples e conciso. Não é esse o testemunho do "Protágoras", com toda aquela magnífica "mise-en-scène" em que Sócrates ameaça abandonar a discussão?

 

Ele sabe propor as perguntas, mas, sobretudo, sabe encaminhar a discussão e refutar. Por isso é surpreendente sua dialética. Esse agón, essa disputa é, sobretudo, ágil e dura. Visa a bater no opositor e fazê-lo pôr-se em retirada. Não porque se proponha a ganhar sempre toda causa, ainda que fraca. A refutação, para ele, opera analogicamente ao fármaco bem aplicado, e promove uma purga, e, como lembra Mondolfo, essa purificação é que prepara o espírito para o conhecimento. Mas, o que vem a ser, precisamente, este "conhecimento"? Chegamos, aqui, ao ponto central dessa questão relativa ao "atuar maiêutico".

 

Até Sócrates – e também depois dele – , a educação grega usou e abusou do recurso ao modelo. Desde Homero, até de forma inconsciente, toda a formação do homem grego dependerá, em sua inspiração nuclear, de referência a "exemplaridades". Haverá manifestações em sentido contrário ou diferente, mas à pedagogia da "imitação" se destinava uma longa vida.

 

Sócrates rompe com toda essa tradição, embora, curiosamente, ele próprio seja um produto da velha escola, aquela que "formou os heróis de Maratona". Haja vista a referência, em mais de uma fonte, a feitos heróicos por ocasião de eventos militares (Delos, Potidéia). Mas com ele, questionado, o paradigma não suporta a inspeção crítica da razão. O modelo de coragem (Lakhes), o modelo de piedade (Eutífrone), o modelo de temperança (Cármides), que preenchem os requisitos tradicionais a respeito dessas qualidades, mostram-se inconsistentes, todos eles, sucumbindo à laboriosa e astuta dialética socrática. Ainda mais uma vez, paradoxalmente, respeitando a convicção grega de que a lei consigna a justiça e nesta estão reunidos todos os valores cívicos, o mesmo Sócrates, que duvida da capacidade política do cidadão ateniense comum para bem votar as leis da polis, é quem, em obediência à idéia comum de excelência, aprovada por essa mesma maioria cuja competência vem de questionar, vai desafiar a assembléia ensandecida, no julgamento dos generais da batalha das Arginusas, empenhado em fazer cumprir as leis. Apesar de opor sérias dúvidas ao processo (democrático) pelo qual foram estabelecidas.

 

Mas, voltemos ao ideal paidêutico da kalokagathia. Em que condições os modelos presos, de alguma forma, a esse ideal foram confrontados, rejeitados ou reformulados?

 

Olhar o homem como uma unidade superior à soma do corpo e do espírito vai implicar, para Sócrates, uma reformulação estética de alcance inestimável. A beleza física, tão importante desde a épica, preserva seu valor, mas submetido a uma abrangência, que é o homem por inteiro. Dentro dessa perspectiva, o belo corpo, a ação corajosa, associados, com uma certa regularidade, às exibições atléticas e esportivas, aos feitos heróicos de guerra, são repensados em função de uma idéia de homem mais elaborada. É preciso considerar o homem na sua totalidade, o que se encaixa numa filosofia educativa que subordina a ação humana a uma reflexão sobre a vida e a qualidade da vida. Alcançar a vida boa, viver bem, transforma-se, com Sócrates, em um projeto filosófico do mais alto alcance, com muito claras implicações de ordem educativa. Daí a importância de se determinar que bens devem ser eleitos como dignos de serem buscados e de que males fugir. Ora, como conhecer e determinar essa tábua de bens - refiram-se eles à saúde, à honra, ao poder, à riqueza, à glória - e como direcionar a conduta para a sua realização, no plano individual e coletivo? Qual a chave para a vida feliz?

 

Cabe considerar, aqui, a postura que faz, no caso de Sócrates, a diferença. Alcançar os fins últimos que garantem a felicidade é uma tarefa de conhecimento, sobretudo. Para agir é preciso, em primeiro lugar, saber. E o saber autêntico tem a força de gerar a ação legítima. Ninguém procura o mal, mas pode fazê-lo, se ignora o que é o bem. Qualquer ação humana é uma ação radicada na valorização da felicidade e do prazer. Apenas a ignorância (desconhecimento) pode explicar a falha que desencadeia prejuízo e desgraça.

 

Alcançar a felicidade é uma outra forma de alcançar a excelência, e esta não pode ser praticada sem antes ser conhecida. Mas como chegar ao conhecimento dessa perfeição, que é o nosso bem? Como tornar essa posse duradoura? E que sinal poderá assegurar-nos de sua permanência? Haverá alguém que conheça ou possa indicar o caminho para ela?

 

Inapelavelmente somos tentados a chamar aqui a figura do educador. Haverá professores de areté? Que condição essencial reclama a possibilidade de a excelência ser objeto de ensino? Seria ela, na verdade, objeto de ensino? Ora, essa possibilidade introduz aqui o parentesco da questão do "atuar maiêutico" com o "saber maiêutico". A areté pode ser ensinada se ela for ensinável, isto é, cognoscível (didaktón), o que a aproxima da ciência. Nessa hipótese, a ciência que nos permite alcançá-la tem que ser constituída de uma certa forma, aquela mesma, "maiêutica", que leva a alma a parir um produto concebido e gestado dentro dela, por força da ação "magistral" (hoje diríamos, socrática) do "mestre".

 

Até Sócrates e os sofistas, a preocupação dos filósofos gregos esteve comprometida sobretudo com a investigação da natureza física, com algumas incursões pelo campo da política e da moral. Quando Parmênides, naquele belo poema sobre o Ser, faz advertências sobre os dois caminhos e louva a sorte daquele que é conduzido pelas divindades aos palácios da "Verdade bem estabelecida", em momento algum a necessidade de saber escolher o caminho gera qualquer dúvida sobre o objeto da busca, o conhecimento do Ser. Apenas "mortais de duplas cabeças" se desviam. Os agraciados chegam até o coração da verdade bem redonda. O pensado é o existente e todo o ser é pensamento. Heráclito mesmo, com sua dialética dos contrários, com sua oposição entre o "caminho para baixo" e o "caminho para cima", recorre ao final a um logos unificador que dá consistência e sentido ao conjunto de um aparente conflito. Sócrates contracena com pensadores que se ocupam dessa herança naturalista e fazem, de forma jocosa ou séria, a crítica dela. Górgias e Protágoras estabelecem referências importantes para a elaboração de uma teoria do conhecimento humano na qual a participação do sujeito ou o processo mesmo de apreensão do objeto passam a receber uma consideração crítica que a filosofia, depois deles, não mais vai poder desconsiderar. Por sua vez, Sócrates aprofunda essa consideração e vai contemplar o sujeito mesmo do conhecimento, em seu processo mental, que passa a ser contado como fator ativo na constituição do saber e na compreensão do erro. Se ele se ocupou em distinguir o pensamento do ser, ou se simplesmente disso não se ocupou, não pode ser resolvido ou tratado aqui, mas foi ele, sem dúvida, quem desenvolveu um trabalho teórico (e prático) de estabelecimento de uma disciplina mental indispensável a uma ciência moral com pretensão de validez universal. A forma pela qual aplicou sua capacidade dialética levou-o a elevar a erística a uma atuação muito mais produtiva e fecunda, comparativamente aos efeitos do trabalho dos sofistas nesse campo; foi em razão desse esforço que se pôde configurar, pela primeira vez, a cadeia que movimenta o pensamento; ele nos ensinou que essa trama tem uma lógica, e que, para garantir a adequada comunicação entre os homens e, conseqüentemente, a possibilidade de legitimar o ensino, é necessário partilhar dessa técnica, para a constituição da qual ele foi o primeiro a contribuir de forma insuperável.

 

A areté pode ser cognoscível e, por isso, pode ser ensinada (didaktón). Mas é porque sua natureza participa da ciência que isto é compreensível. Enquanto ciência, deve, contudo, iluminar a vida. A coerência entre saber e agir se impõe, porque, se for diferente, haverá uma ruptura dentro do homem e seus passos serão desencontrados, como os de um cego sem amparo. A razão é o fator crítico que possibilita o discernimento e favorece a escolha da tábua de bens hábeis em levar-nos ao encontro da felicidade.

 

E o mestre? Ele só pode operar como um braço auxiliar da razão, que, uma vez ativada, traz em si o princípio que a faz produzir, isto é, conhecer. Interferir nesse processo, colocando na alma do outro um saber que não nasceu ali é uma opção pelo fracasso. Ele não promove a conversão, ele não opera o ‘milagre’ que levar a agir. Ou, se o fizer, a conduta assim provocada terá a qualidade das imitações, e bastará uma circunstância negativa para desviá-la de seu verdadeiro fim. Tal como ocorre com estátuas de Dédalo, "saberes" transplantados têm a leveza das plantas que não têm raízes. Apenas o encadeamento promovido dialeticamente pela razão pode aprofundá-los, e consolidando-os, torná-los fixos.

 

Sócrates procurou, sim, um método para a condução da alma ao seu verdadeiro bem, mas pôde estabelecê-lo na circunstância precisa em que procurou primeiro o conhecimento do homem e da terapia apropriada para levá-lo a alcançar o que, em seu entender, deviam ser os seus verdadeiros fins.