Ren como Fundamento da Filosofia de Confúcio
- o Livro IV dos Analectos

Ho Yeh Chia
Universidade de São Paulo
hochia@usp.br

 

Estudiosos confucionistas, tanto antigos quanto modernos (desde os estudiosos da dinastia Tang, os Neoconfucionistas, até os atuais), acreditam que o Ren seja a principal doutrina de Confúcio.

Assim, o fundamento de ética apontado por Confúcio acaba co-incidindo com o clássico ocidental uma vez que, a principal virtude nos seus ensinamentos é o Ren, a virtude mais própria do homem, aquilo pelo qual um homem se torna homem e, segundo o mestre, "a aquisição do Ren supõe vencer-se a si mesmo e a abertura de compreensão, solidariedade, amor, compaixão e compromisso com o outro(1)".

De fato, em Santo Tomás, como ensina Lauand: "A palavra latina virtus (virtude) deriva de vir (homem), ou de vis (força)", assim, "na tradição de pensamento ocidental, virtude é a força própria do homem; e a moral diz respeito ao que se é enquanto homem. A moral é, pois, um caminho (homo viator), um processo de auto-realização do ser, daquilo que estamos chamados a ser(2)"

Seguindo a Guerra, uma boa tradução para Ren(3) é humanidade (virtude da humanidade, ser humano).

De fato: “Ren é o nome de uma virtude determinada. A dificuldade está em achar, nas nossas línguas, um termo apropriado. São Paulo empregou uma vez a palavra Filantropia. Humanidade seria a tradução mais natural (...). O exame do carácter correspondente diz-nos que é o homem a sentir-se comprometido com todos. Nesse mesmo sentido vão todos os textos em que Mestre Confúcio nos inculca esta virtude. A palavra “amor” não insiste precisamente nesse compromisso com o próximo, que é próprio da Caridade e da virtude chinesa Ren”(4).

Foneticamente, em chinês, ren é o mesmo, tanto para expressar caridade humana - vamos representá-la aqui com maíusculo, Ren - como o próprio ser humano, pessoa, gente - para diferenciar, representamo-lo no minúsculo, ren. Tal identidade não é casual: na grafia, desde a escrita antiga, representa-se a caridade humana por “dois ren” (dois seres humanos).

Do ponto de vista semântico: tendo dois homens monta-se uma relação interpessoal. Assim a humanidade, o Ren, diz respeito ao como deve ser a nossa postura frente ao tudo que pode haver entre duas pessoas - como se respeitar; como se amar; como se relacionar; como se entender; como lidar com as semelhanças e as diferenças, com a desarmonia, discordância e outros sentimentos humanos. Isto é confirmado por Guerra: "Como diz Mêncio, bem citado por Legge, Ren é o que faz o homem ser homem (moralmente). É, pois, a virtude da humanidade, (...) O carácter chinês está a dizer um Homem a dois, ou seja relacionado com seu próximo(5)". vencer-se a si mesmo e a abertura de compreensão, solidariedade, amor, compaixão e compromisso com o outro. Assim, o Ren é sabedoria interpessoal, mas por outro lado, também é extremamente solitária, intrapessoal. Solitária porque diz respeito a um esforço necessariamente pessoal no alcance dessa virtude; intrapessoal, porque toca a fundo a questão da identidade de cada homem, uma vez que o homem só se reconhece como tal se ele entrar em contato com o outro (homem).

Trata-se da primordial necessidade de um Outro para que torne possível a existência do Eu, como disse Ronald Laing: "Sou aquele que se coloca em frente ao outro. É em relação ao outro que me coloco, e é em relação a mim que outro se coloca"(6). Como quando dizemos: "Não sou ninguém sem você", de certa forma, é mais do que uma declaração de amor: passa a ser uma questão de existência e de identidade - como tão belamente ilustra a sábia história infantil “O patinho feio”, onde o protagonista só se encontrou quando confrontando com um outro de sua espécie, resgatando assim a identidade perdida. Assim se compreende a referência deste tema a outro - tão oriental - o da voz média.

A identidade de uma pessoas depende do seu contato com o outro também por uma questão de delimitação, pois é a partir dos nossos limites que começa o espaço do outro; porque é a partir da existência do Outro que demarca o limite do Eu - o Outro é o incomparavel, diferente, mas não desigual -, indicando uma diferença que nos ensinará a respeitar nossos próprios limites e também a respeitar o espaço do outro. O Outro que está em igual dignidade do Eu. "Lembrando que para outro, o Outro somos nós"(7).

Feitas as ressalvas acima, podemos afirmar que Ren diz respeito a realização máxima do ser humano, realização esta que vem do interior de cada um, e somente o próprio ser pode senti-lo quando, de fato, atingiu a sua realização.

Assim, tal grafia é ainda sugestiva na exploração do seu sentido que pode ser estendido como: o homem no homem, o que é próprio do homem, o homem que é homem, o homem verdadeiro, homem ao máximo etc. Citemos uma passagem em que, uma vez, o discípulo mais querido do Mestre, Yen-Wen, perguntou-lhe o que é Ren, daí o Mestre lhe respondeu: “Vencer-se a si mesmo e restaurar as relações sociais, é o que se chama Humanidade. Se dia-a-dia nos vencermos a nós mesmos e assegurarmos as relações sociais, o mundo todo se retornará ao humano. A prática da Humanidade começa por si mesmo ou pelos outros?” E disse Yen-Wen: “Peço-vos que me digais os passos a dar” Disse o Mestre: “O que não for correto, não se vê; o que não for correto, não se ouve; o que não for correto, não se diz; o que não for correto, não se faz”. (Anal., XII. 1)

Notemos que, o Mestre esclarece: a humanidade está no interior de cada homem.

O “vencer-se a si mesmo” significa vencer a tendência ao esquecimento e voltar à nossa natureza, realizando-a em sua potência máxima, ao que estamos chamados a ser, e então “o mundo todo se retornará ao humano” (grifo nosso). Ao que comenta Guerra neste diálogo: “Vencer-se ou ser senhor de si e honrar ou assegurar os deveres naturais”.

Vencer ao que não for correto e estar de acordo com o Ren e com o Rito, é atingir a harmonia da Voz Média, onde seguir nossos desejos é seguir o curso da Humanidade.

Como disse o Mestre: “Aos 50, conheci a missão do Céu. Aos 60, era obediente a esse mandato sem tergiversações. Aos 70, finalmente, pude seguir os desejos do meu coração sem transgredir a moralidade” (II. 4). Aos setenta, ele já podia seguir seus desejos sem contrariar os princípios da humanidade.

E precisamente nisto está a liberdade - nas palavras de Platão no Górgias seria "fazer o que realmente quer" - em Confúcio.

Enfim, para Confúcio, Ren é o objeto do aprender, do saber; é a alma do Rito, da Governação.

O importante não é o que fazemos aparentar, mas o que realmente fazemos, ainda que aparentemente não fazemos.

Como disse o Mestre: “Os fortes, constantes, simples e modestos, estão perto da virtude humana” (XIII. 27); e disse também: “Antigamente aprendia-se para o proveito pessoal; agora estuda-se para dar nas vistas aos outros”, reprovando o excesso de preocupação das pessoas com a aparência.

A seguir, apresentamos a tradução (a partir do original chinês) do livro IV dos Analectos, capítulo tematicamente centrado precisamente na virtude Ren.

 


(1). GUERRA, Joaquim A. de Jesus, Quadrivolume de Confúcio (Analectos, A Grande Escola, Harmonia Perfeita, Piedade Filial), Macau, Jesuítas Portugueses, 1984, p. 39.

(2). Lauand, L. J, Filosofia e Linguagem Comum, Curitiba, PUC-PR, 1988, p. 37.

(3). Originalmente a palavra não tinha conotação moral; no uso arcaico - ainda encontrado no Cantares - descrevia apenas o comportamento viril de um herói. Essa acepção primitiva, ainda pertencente a uma mentalidade épica, foi progressivamente substituída por uma noção ética: o homem considerado nas suas complexas relações morais com os outros e em suas obrigações para consigo mesmo. Confúcio desenvolveu plenamente essa nova percepção moral, colocando ren como a pedra angular do humanismo chinês. (Sobre as origens e transformções desse conceito, ver Lin Tü-Sheng: "The evolution of the pre-confucian meaning of jen and the confucian concept of moral autonomy"), (Simon Ley, p. 137)

(4). Guerra, op. cit., p. 435.

(5). Ibidem, p. 105.

(6). Devo esta nota à Dra. Roseli Fischmann.

(7). Devo esta nota à Dra. Roseli Fischmann.