Al-Khat e A Palavra na Arte Árabe-Islâmica

Aida R. Hanania
Universidade de São Paulo
rsbacchi@rocketmail.com

A sacralidade da língua árabe, como meio de propagação da Palavra, dá-se inicialmente na escrita, enquanto a língua oral permite uma manifestação no tempo do Texto Eterno. O próprio Alcorão confere à escrita e à caligrafia (em árabe expressas significativamente pela mesma e única palavra khat) a máxima dimensão hierática, sobrelevando o cálamo que as produz, como em 96, 3-5: "Recita! Teu Senhor é o Generosíssimo que ensinou o uso do cálamo, ensinou ao homem o que ele não sabia".

Por manter viva a Palavra, é o cálamo o instrumento de Deus, e como tal, convoca a máxima reverência. Assim se inicia a sura denominada O Cálamo (68,1), em que Deus jura pelo cálamo:

"Pelo cálamo e pelo que escrevem!"

A Caligrafia define-se por um dinamismo grafofônico, na medida em que é escrita para ser ouvida no silêncio da fé que leva ao Islam. E é poesia para ser vista, contemplada, pela harmoniosa concepção do signo como unidade estética. Capaz de abarcar pelo conteúdo e pela forma, a mensagem enviada por Deus, encontra, na mesquita, seu lugar natural.

"A mesquita - não há altares, não há imagens, mas há letras árabes em toda parte. Esses sinais, curiosamente revoltos e cursivos aparecem pintados e esculpidos nas paredes, tecidos nos tapetes e nos medalhões que pendem do teto. A letra árabe é a razão de ser da mesquita. Por ser uma casa da escrita, é a mesquita uma casa de Deus. A mesquita é uma casa de leitura, porque leitura é prece"(1).

"Não será a bondade a recompensa da bondade?" (Alcorão 55,60)

Caligrafia de Hassan Massoudy

Expandindo ao fiel, o caminho da ascese, a Palavra escrita e recitada convoca-o pela fé, pela razão e pela emoção, permitindo-lhe o encantamento e, quiçá, o encalço paroxístico do Absoluto.

Exercendo as funções iconográfica e ornamental, a Caligrafia busca - pelo ritmo e pela cadência; pelo sentido e pela forma hierática - conferir ao ambiente sagrado do muçulmano uma dimensão imponente de inteligência e beleza, adequada ao encontro com Deus.

Ritmo e cadência obtidos pela repetição das letras, das palavras, das frases, pela repetição que é o arabesco, muitas vezes associado à caligrafia.

É interessante destacar aqui, a observação de T. Burckhardt: "In sacred inscriptions, the arabic letters combine fluently with arabesques, especially with plant motives, which are thus brought into closer relationship with the asiatic symbolism of the tree of the world; the leaves of this tree correspond to the words of the Sacred Book"(2).

Dada sua estatura religiosa e considerando sua infinita gama de qualidades estético-estilísticas, a Caligrafia não se restringe apenas à mesquita: faz parte do ambiente didático da madrassa(3); entra na composição decorativa da cerâmica, da tapeçaria e de mosaicos; alça-se aos cimos de monumentos e palácios; chega às tumbas; adquire, por vezes, no entanto, o caráter documental de uma época, pela celebração de nomes e de feitos de governantes; integra pergaminhos e livros científicos e literários, participando, assim, de instâncias que a fazem penetrar também no domínio do profano.

"Revista de Estudos Árabes" - Caligrafia de Hassan Massoudy para

a capa da Revista de Estudos Árabes do DLO-FFLCH-USP.

O renomado calígrafo Hassan Massoudy chega a afirmar que "em nenhuma tradição a letra esteve tão intimamente misturada ao cenário da vida"(4).

Das artes visuais do Islão, é a Caligrafia a mais nobre. E a de fundamento e concepção mais peculiares. Está longe de ser uma arte em substituição à imagem, esta, como dissemos em artigo anterior, mal vista por um Islão em que o combate ao politeísmo e ao totemismo é um ponto fulcral de doutrina. A Caligrafia é antes uma arte em que a letra - o signo - se faz imagem. Para além de seu significado hierático adquirido a partir do Islão, as razões de valorização do signo encontram-se na mais longínqua Arábia pré-islâmica.

Impõe-se aqui, o percurso que leva de volta à realidade primeira do homem árabe, ao nomadismo, ao âmago da Península que proporciona a intimidade com o deserto. Deserto que parece ser o manancial do questionamento e da resposta; da angústia; do sofrimento; da coragem, mas também da beleza; sobretudo por ser o mentor do encontro do homem consigo mesmo, sem outra mediação, a não ser a do silêncio que, eloqüentemente, o povoa.

Nesse mundo de ausência, de vital impacto com seu ser mais íntimo, a gente do deserto previne-se contra tudo o que, de certa maneira, se liga ao mundo do visível, preferindo a visão interior à representação clara e manifesta.

Com efeito, num mundo habitado por miragens, a imagem ganha contorno de mentira, de fantasia; não tem significado real. É o deserto, o mundo do invisível; e, principalmente, um mundo sônico.

Os meios de expressão artística, já na primitiva realidade árabe, são, compreensivelmente, a música e a poesia: duas vertentes essenciais que procedem do espírito e a ele retornam, suprindo a necessidade de beleza e de ligação com o mundo de que todo homem não prescinde; o errante em particular.

A palavra avulta em importância por materializar a poesia que se mistura ao canto e com ele freqüentemente se identifica.

Ligado muito mais ao tempo que ao espaço, o homem do deserto aproxima-se da realidade por meio de signos abstratos que se traduzem, desde sempre, na forma de dizer, de escrever e de entoar...

O agudo senso rítmico, típico do nômade - que se manifesta na marcha, na dança, na música - encontra sua expressão mais justa na prosódia árabe, chegando à retórica e à poesia, através de uma expansão de pensamento que adquire precisão por meio de paralelismos e inversões de raciocínio estritamente interligados.

Não-raro, as comparações e imagens de que se vale o Alcorão para fixar preceitos, correspondem a esses elementos familiares ao povo árabe.

Tomemos, para exemplo, a Sura 24, versículo 39, em que os empreendimentos dos infiéis são comparados à miragem (kassaráb):

"As obras dos infiéis são como miragem no deserto: o muito sedento pensa que é água, até que lá chegando, não encontra nada".

Por outro lado, "que é, de início, o próprio Alcorão - indaga Massoudy - senão uma música, um discurso cadenciado, destinado a ser aprendido de cor, quer dizer, conforme o ritmo do coração que bate, o ritmo dos passos do caminhante ou de sua montaria?..."(5).

"Tenho a religião do amor..." (Ibn-Arabi)

Caligrafia de Hassan Massoudy

Pode-se dizer que o Alcorão tem uma "ossatura árabe", tanto no que se refere à matéria simbólica de seu conteúdo, quanto à de sua forma. A massa conceitual parece moldar-se pelo quotidiano, pela língua e pela mentalidade do árabe/beduíno.

A forma de expressão cifrada - e a caligrafia é, por excelência, comunicação cifrada - ainda que lembre a poética, remete a uma ancestralidade semítica, evidente já no dizer do apóstolo Paulo, quando afirma que os semitas buscam sinais (ayyát), contrapondo-se aos gregos que pedem sabedoria de argumentação racional (I Cor 1, 22).

(1). Na inspirada formulação de V. Flusser, em seu artigo "Ex Oriente Lux", citado por Lauand, L. Jean. - "Escrita e Caligrafia Árabes - A arte de H. Massoudy" na Revista de Estudos Árabes, Ano I, nº 2, Centro de Estudos Árabes, DLO/FFLCHUSP, 1993, p. 31.

(2). Sacred Art in East an West, Middlesex, G. Britain, Perennial Books, 1967, p. 116.

(3). Em árabe, escola, sobretudo no sentido da escola agregada à mesquita, preocupada com o estudo alcorânico.

(4). Hassan Massoudy, Le Chemin d'un Calligraphe, Paris, Phébus, 1991, p. 11.

(5). Hassan Massoudy, Le Chemin... op. cit., p. 10. Note-se que o artista, no original francês joga com o duplo sentido de coeur em par coeur e coeur qui bat (acumulação semântica que se dá também no nosso de cor, embora para nós menos evidente). O artista imprime assim como que um ritmo a sua própria expressão.