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O BOM HUMOR NA BÍBLIA

(extraído de Oriente e Ocidente 10, Edix-FFLCHUSP, 1995)

Parte I - Introdução

Luiz Jean Lauand

O Bom Humor de Deus na Criação.

Entre as realidades divinas e humanas contidas na Bíblia, encontra-se a dimensão do humor, em suas diversas formas: desde o modo leve e descontraído de encarar a Criação, até a ironia ante a insensatez do homem que se ergue contra Deus, passando pela aguda sutileza com que se descreve a condição humana e as idiossincrasias dos indivíduos e dos povos.

A Sabedoria divina - que está "continuamente brincando..., brincando no orbe da terra e alegrando-se com os homens" (Pro 8, 30-31) - instrui, em primeiro lugar, pela Criação; mas também pela Sagrada Escritura.

A Criação é um falar de Deus, enquanto manifesta o Verbo (Logos, Palavra, Sabedoria de Deus) que a projetou. Daí que Santo Tomás de Aquino afirme: "As criaturas são como palavras que manifestam o Verbo de Deus". E as criaturas, de algum modo manifestam também o bom humor do Pensamento Criador divino. Sugestivo, nesse sentido, é acompanhar João Guimarães Rosa em sua visita ao zoólogico de Hamburgo:

"O cômico no avestruz: tão cavalar e incozinhável, tenta assim mesmo levitar-se. O nobre no avestruz: seu cômico... O diverso, no riscado da zebra: quanto ao corpo, é uniforme: mas, na cara é tatuagem. Ainda a respeito do avestruz: só a inocência dança. A raposa, hereditária anciã: vid. seu andar, sua astúcia-audácia. Avança, mas nuns passos de quem se retira. Mais do avestruz: valha tão bem chamá-lo de só estruz, somente. O dromedário apesar-de. O camelo, além-de. A girafa, sobretudo. O macaco: homem desregulado. O homem: vice-versa; ou idem. Monólogo do mono Simão, que se vende por meia casca da fruta: - Aos homens, falta sinceridade... Dito o que, vai bugiar espontâneo".

Nessa grande tirada de humor, que é a Criação, não faltam também mensagens cifradas: "O macaco está para o homem assim como o homem está para x..."

 

O Bom Humor de Deus na Bíblia.

Também as intervenções de Deus na história dos homens são marcadas, por vezes, com aquele fino toque de humor - como no caso de Sara, que, ao ter dado à luz em velhice avançada, exclama: "Deus me fez rir e todos os que o souberem rirão comigo" (Gn 21, 6).

Na Bíblia, o bom humor de Deus expressa-se inspirando ao hagiógrafo certos relatos e formulações divertidas que, pela acuidade, tornam-se mais sugestiva e facilmente recordáveis. Ao indicar, por exemplo, que é necessário prudência na escolha do conselheiro, o Eclesiástico (37, 11 e ss.) ensina - de modo vivo e concreto - que não se deve pedir conselho: "à mulher sobre a rival; ao medroso, sobre se é o caso de fazer guerra; ao negociante, sobre a mercadoria; ao comprador, sobre venda; ao invejoso, sobre gratidão; ao egoísta, sobre generosidade; ao preguiçoso, sobre qualquer trabalho; ao empreiteiro, sobre o acabamento de uma tarefa; ao servo indolente, sobre um trabalho".

Em seus provérbios, comparações e nessa oriental arte de associação de realidades, o humor bíblico é insuperável. Alguns exemplos: "Goteira pingando sem parar em dia de chuva e a mulher briguenta são semelhantes!" (Pro 27, 15); "O preguiçoso põe a mão no prato: levá-la à boca é muita fadiga" (Pro 26, 15); "Um anel de ouro no focinho de um porco é a mulher formosa sem bom senso" (Pro 11, 22); "Por três coisas treme a terra, e a quarta não pode suportar: o servo que chega a ser rei, o louco farto de pão, a moça antipática que encontra marido e a serva que herda da patroa" (Pro 30, 21-23).

PARTE 2 - O VELHO TESTAMENTO

Preços, pechinchas, negócios e negociações...

Palavra divina inserida em realidade humana, a Bíblia descreve, por exemplo, os orientais exercendo sua milenar arte de negociar. É o caso das advertências de sabedoria: "'Mau, mau', diz o comprador antes de comprar e, depois, sai gabando-se da compra" (Pro 20, 14). Ou (Eclo 29, 5-8): "Ao pedir um empréstimo, beijam-lhe a mão e abaixam a voz... No tempo da restituição, porém, adiam a data, pagam com recriminações, culpam o tempo. Se o devedor pode pagar, com dificuldade o credor receberá a metade, e o pode considerar como um achado. Em caso contrário, será espoliado de seus bens e adquire, sem tê-lo merecido, um inimigo".

Os preços também podem variar de x a 7x (Eclo 20, 12) e, na mesma fala de Cristo, os pássaros sofrem um desconto, quando vendidos "no atacado": dois pássaros custam um asse (Mt 10, 29), mas cinco pássaros custam dois asses (Lc 12, 6).

A habilidade oriental é descrita não só nos livros sapienciais, mas também em relatos protagonizados pelos heróis bíblicos.

Assim, Abraão, o pai dos árabes e dos judeus, atreve-se a pechinchar com o próprio Deus. Na conhecida passagem da intercessão por Sodoma (Gn 18, 22 e ss.), ante o desígnio de Deus de destruí-la, Abraão começa pedindo clemência para a cidade, em atenção a um eventual número de justos que nela se encontrem. E fixa um primeiro lance: cinqüenta justos (Abraão bem sabe que não há - nem de longe - cinqüenta justos na cidade e, portanto, Iahweh facilmente aceitará esta proposta, que é puro expediente psicológico para, por assim dizer, fazer com que Deus "aceite o jogo", "entre na loja").

Como bom negociante, Abraão não espera resposta e até antecipa o consentimento de Iahweh, que nem tem o que discutir: "Longe de Ti fazer morrer o justo com o pecador! Acaso não fará justiça o juiz de toda a terra?". E Deus concorda, fixando bem, porém, os termos do contrato: "Se Eu encontrar em Sodoma cinqüenta justos, perdoarei à cidade".

Ao ver que Deus entrou no jogo, Abraão, com ares de quem acaba de se lembrar de um pequeno detalhe, pede 10% de desconto a Deus, ajuntando (com ênfase no pequeno desconto e não no número principal): "Mas talvez faltem cinco aos cinqüenta justos: por causa de cinco destruirás toda a cidade?". Iahweh, cumprindo seu papel, responde, sempre com atenção ao total: "Não, se eu encontrar quarenta e cinco justos".

Abraão, entusiasmado com o sucesso inicial, continua pechinchando: quarenta, trinta, vinte e só quando atinge a marca de dez - presumivelmente segura, pelos seus cálculos -, fecha o negócio com Iahweh.

O patriarca aparece também em outro curioso episódio (Gn 23), hilariante por revelar a sutileza oriental, quando o assunto é dinheiro. Morreu Sara, mulher de Abraão que, como estrangeiro, não podia ser proprietário de terras em que pudesse sepultá-la. Mas era tal o prestígio de Abraão entre os heteus ("tu és um príncipe de Deus entre nós"), que estes deixam-lhe a mais ampla liberdade de escolha ("enterra teu morto na melhor de nossas sepulturas; ninguém te recusará sua sepultura a fim de que possas enterrar teu morto"). E mais, nessas circunstâncias, nem seria de bom tom cobrar a Abraão: o proprietário deveria ceder gratuitamente o campo que viesse a ser escolhido.

Quando Abraão, perante a comunidade, expõe seu interesse pelo terreno de um tal Efron ("Que azar! Tanto campo por aí e ele foi escolher logo o meu!") e se declara disposto a pagar por ele, Efron, afetadamente, diz que não, que lhe dará o campo de graça. Ante a insistência de Abraão em saber o preço, Efron, mineiramente, sai-se com esta: "Não, imagina se é o caso de cobrar ao senhor uma terra que vale quatrocentos siclos de prata". Abraão - prossegue a Bíblia - deu seu consentimento a Efron e pesou, diante da comunidade, exatamente o dinheiro que Efron "pedira": quatrocentos siclos de prata corrente entre os mercadores! E Jacó, em solene discurso a seus filhos, recorda-lhes, por duas vezes, que seu bisavô, Abraão comprou o tal campo de Efron (Gn 49, 30 e ss.).

 

Profetas e Falsos Profetas

Por vezes, o humor de Deus (e de seus enviados) manifesta-se em outra linha. Como diz o Salmo 2, "o que habita nos céus, ri" da aparente superioridade de força dos reis que contra Ele se insurgem: "o Senhor se diverte à custa deles". A situação básica é a mesma dos filmes de aventura: o herói está em aparente inferioridade (mas, no caso, conta com a força de Iahweh). Assim acontece com Sansão contra os filisteus, com Davi contra Golias e com o povo judeu contra o poder do faraó (Rom 9, 17 diz que Deus deu enormes poderes ao faraó, precisamente para poder mostrar Seu próprio poder, vencendo-o espetacularmente...).

Uma dessas reviravoltas dá-se numa das mais divertidas passagens da Bíblia (I Re, 18): Elias, o único que restou dos profetas de Iahweh, enfrenta, sozinho e com requintes cômicos, quatrocentos e cinqüenta (!) profetas de Baal, num desafio perante todo o povo: o deus verdadeiro deve consumir com fogo do céu um novilho. Em pleno campo de luta, o profeta, ironicamente ("já que sois mais numerosos"), até deixa que os profetas de Baal comecem:

Eles tomaram o novilho e o fizeram em pedaços e invocaram o nome de Baal desde a manhã até o meio-dia, dizendo: "Baal, responde-nos!". Mas não houve voz, ninguém respondeu.

Desesperados, os profetas de Baal começam a dançar, a dobrar o joelho diante de seu altar, mas em vão: nenhuma resposta de seu deus. Ao meio-dia, Elias - que não tem nenhuma pressa, nem sugere que as horas de tentativa já teriam sido suficientes -, meio displicente, com o tom de um curioso que dá um palpite, como que querendo ajudar ("não custa tentar! Quem sabe dá certo?"), aconselha-os ironicamente:

"Gritai mais alto; pois, sendo um deus, ele pode estar conversando ou fazendo negócios; ou então, viajando; talvez esteja dormindo e acordará".

E, de fato, eles "começam a gritar mais forte", fazem incisões no próprio corpo, para que escorra seu sangue, entram em transe até a hora do sacrifício da tarde, mas, de nada adianta: Baal não dá a menor resposta!

Por fim, Elias declara que chegou sua vez. Chama a atenção do povo, já um tanto disperso diante do ridículo fracasso e grita: "Aproximai-vos!". O povo, pressentindo que "agora é sério", aproxima-se. Elias prepara o altar de Iahweh e, para zombar dos adversários (para dar uma "lambuja"...), manda trazer água e despejá-la sobre o seu sacrifício (!). A multidão, atônita, tudo observa atentamente.

Antes de invocar seu Deus, o profeta, como quem repara que algo ainda não está bem, manda vir mais e mais água, até encharcar ("Agora sim!") o altar e o novilho. E, após declarar que fez "todas estas coisas por ordem de Iahweh" (o bom humor é de Deus!), invoca-O e - para delírio dos assistentes e desgraça dos quatrocentos e cinqüenta profetas de Baal - desce do céu intenso fogo que consome tudo: novilho, água e altar.

Cinematográfica também é a intervenção do profeta Daniel (Dan 14), também ele desmascarando - ante o rei Astíages - os setenta charlatães, sacerdotes do insaciável comilão: o ídolo Bel. Um dia, o rei pergunta a Daniel por que não adora Bel? Daniel responde que só adora o Deus vivo. Astíages replica, dizendo que Bel é tão vivo que consome diariamente quarenta ovelhas, doze artabas de farinha e seis metretas de vinho!!! Daniel desata a rir e também aqui a coisa acaba em desafio de morte, proposto pelos sacerdotes: deixada a oferenda no templo de Bel, o rei, pessoalmente, trancará e lacrará as portas e se, no dia seguinte, estiver consumida por Bel, morre Daniel; caso contrário, se a oferenda estiver intacta, os sacerdotes é que serão executados.

Os sacerdotes de Bel falavam com essa despreocupação, porque dispunham de uma entrada secreta para o interior do templo. Daniel, porém, astutamente, espalha cinzas no chão e, quando no dia seguinte, Astíages abre o templo e adora Bel - que "comera" e "bebera" a oferenda -, Daniel ri e, detendo seus passos, pede ao rei que examine o chão. E Astíages ao constatar inúmeras "pegadas de homens, mulheres e crianças" e dar-se conta da entrada secreta e de que eram os sacerdotes e suas famílias que avançavam sobre as oferendas do ídolo, manda matá-los implacavelmente...

Mas os profetas sabem que sua tarefa não é nada fácil e, ante a escolha de Iahweh ("Eu, hein?"), protestam ou tentam subtrair-se à missão: Jonas, que devia profetizar contra Nínive, compra passagem num navio para Társis (o mais longe possível); Amós, ameaçado por ter profetizado, alega: "Mas, se eu não sou profeta, nem filho de profeta; meu negócio é cuidar de vacas"; e Jeremias objeta a Iahweh: "Eu sou criança, não sei falar".

Já o adivinho Balaão (Num 22 e ss.) cobrava "o preço do augúrio" (Num 22, 7), o "salário da iniqüidade" (II Pe 2:15, cfr. tb. Jud 0:11 e Apo 2:14). Ante as ofertas e pressões de Balac, rei de Moab, para que profetize contra seu adversário Israel, para que profetize o que Deus não ordenou, Balaão é salvo da espada do anjo de Iahweh por sua jumenta, que empaca, cai e, finalmente, até fala com ele: "Por que me espancas?"!!

Só então, Balaão se dá conta da ameaçadora presença do anjo de Iahweh e de que a jumenta lhe salvara a vida. Atemorizado, diz: "Só direi as palavras que Iahweh puser na minha boca!". Balac, desesperado - porque Balaão, ao contemplar o povo de Israel, não o amaldiçoa -, tenta um expediente ridículo: "Que fazes! Eu te contratei para amaldiçoar meus inimigos e tu proferes bênçãos sobre eles! Vem comigo a este outro lugar. Quem sabe? Talvez com este novo ângulo de visão, possas amaldiçoá-los". Em vão, Balac repete o absurdo procedimento e, tentando negociar, pede ao profeta que, se não pode amaldiçoar seus inimigos, pelo menos não os abençoe... Até que, por fim, despede Balaão.

próxima