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As Humanidades e o Saber Médico

 

Dante Marcello Claramonte Gallian
Doutor em História Social - FFLCH-USP
Diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências
da Saúde (CeHFi) da Univ. Fed. de São Paulo (UNIFESP/EPM)
dante.cehfi@epm.br

 

Resumo

O presente artigo busca, partindo da análise da obra do médico, ensaísta e historiador Gregorio Marañón (1887-1960), discutir o papel das artes e, mais especificamente, o das humanidades no saber médico. Entendida como uma das cinco fontes do saber médico, as humanidades apresentam-se como instrumento essencial para o exercício de uma medicina centrada na pessoa e não na doença. Fornecedora de intuições sobre a vida humana, as artes, a literatura e a história apresentam-se como janelas ou bisturis que possibilitam adentrar na dimensão pessoal do paciente, além de se constituírem também em despertadores privilegiados do interesse pelo humano, condição essencial da vocação médica. Neste sentido, o artigo discute também a importância da presença das humanidades na formação médica.

 

 

 

Em um texto memorável sobre a vida e a obra de D. Gregorio Marañón, introduzindo os volumes de suas obras completas, o médico e historiador Pedro Laín Entralgo, ao buscar os fundamentos da visão da patologia em Marañón, identifica   o que, na sua opinião, apresentam-se como  as cinco fontes do saber médico na obra do eminente endocrinologista espanhol [1] . São elas:

1a A clínica, ou seja, o conhecimento da realidade do paciente, "desde el coloquio que nos introduce en la intimidad del paciente, hasta el análisis que nos revela la composición química del plasma, pasando, como es obvio, por los métodos de la semiologia más clássica y tradicional: inspección, palpación, percusión y ascultación." [2] ;

2A anatomia patológica, entendida aqui não apenas como "simple recopilación inerte de los datos que la bibliografia ofrece", senão também como fruto da investigação direta e pessoal;

3a A fisiopatologia, tanto clínica como experimental;

4a A etiologia, em seu sentido mais amplo, envolvendo não apenas os aspectos estritamente biológicos como também os biográficos e;

5a A literatura, a arte e a experiência extra-médica da vida, que, para Marañón, tem uma importância tão grande quanto as outras fontes, na medida em que é na fonte das humanidades onde o clínico encontra algo de fundamental para o bom exercício da prática médica: intuições sobre a vida humana. Isto porque, "cuando el médico ve en el enfermo al hombre que hay en él, y no sólo el estómago o la cápsula suprarrenal que en él están alterados, por necesidad há de volver de cuando en cuando sus ojos a los 'especialistas en vida humana', y estos són, junto a los psicólogos de oficio, y a veces muy sobre ellos, los pensadores y los artistas..." [3]

E acrescentando, com palavras do próprio Marañón, "Tal vez se nos reproche el excesivo uso que hacemos de los ejemplos literarios. Lo hacemos así por creerlos tan instructivos como las descripciones de los médicos. El artista recoge sus impresiones directamente de la realidad, sin los prejuicios científicos que restan valor humano a las observaciones médicas... Por ello hemos de acudir a los grandes artistas, que son los psicólogos supremos... Hoy podemos estudiar los sentimentos humanos en las comedias de Shakespeare mucho mejor que en el Tratado de las pasiones, de Descartes. No hay que ser el príncipe que todo lo aprendió en los libros, pero tampoco el hombre que lo aprendió todo en la vida." [4]

Todas estas considerações sobre o papel da literatura, das artes, enfim, das humanidades no saber médico derivam, sem dúvida, de uma visão muito particular deste mesmo saber.

Gregorio Marañón, que nasceu em Madrid em 1887 e morreu nesta mesma cidade em 1960, foi um dos principais defensores e sistematizadores da chamada medicina personalista, ou seja, da medicina baseada na pessoa. [5] Para ele, a pessoa ou indivíduo apresenta-se na medicina sempre como o primeiro, o principal, "el patrón y el molde al cual se ajusta la enfermidad...".

"El problema de cada paciente es, pues - afirma o médico espanhol - como el producto de dos cantidades, una de valor conocido, que es la enfermedad misma, la tifoidea, la diabetes, la que sea, y outra de valor eminentemente variable, que es la constituición del organismo agredido por la enfermedad." Desta forma, a doença "no es solo la inflamación o el deterioro de tal o cual órgano, sino todo esse mundo de reacciones nerviosas del sujeto enfermo, que hace que la misma úlcera de estómago, por ejemplo, sea una enfermedad completamente distinta en un segador y en un profesor de Filosofia." [6] Neste sentido, a "investigação" do doente requer, antes de tudo, a história rigorosa, não só clínica mas biográfica do paciente, necessária não só para compreender a doença, como para "atar al paciente a la legítima sugestión del médico."

Esta visão da medicina centrada na indivíduo, na pessoa - sem, é claro, desmerecer ou desconsiderar o igual papel representado pela etiologia - acaba exigindo portanto um saber diferenciado do saber especificamente físico-biológico. Trata-se do saber humanístico. Saber cujas principais fontes estão, como bem colocava Marañón, na literatura, na arte e na experiência extra-médica da vida. Tal como ao patologista, especialista em doenças, o médico humanista deve recorrer ao artista, ao filósofo, estes especialistas em vida humana, se quiser exercer uma medicina verdadeiramente humana e eficaz.

Durante boa parte da história da medicina o saber humanístico se constituiu em fonte quase exclusiva do saber médico. Isso só começou a mudar a partir do século XIX, quando o desenvolvimento das ciências biológicas, em confluência com a física, a química e a matemática determinaram uma reorganização do saber médico que, paulatinamente, foi desconsiderando as fontes das humanidades . [7] Desde então foram muitos os que alertaram para o perigo da desumanização do saber médico e da medicina como um todo, porém este processo de "cientificação" ou "biologização" acabou prevalecendo, principalmente a partir da segunda metade do século XX.

Gregorio Marañón, ao meu ver, foi um dos primeiros "modernos" não só a fazer uma crítica pós-romântica do paradigma médico contemporâneo, como também foi um dos poucos a resistematizar o saber médico através da reincorporação das humanidades, sem deixar de considerar e valorizar as conquistas das outras ciências agora chamadas médicas ou da saúde. [8] Toda esta crítica e re-sistematização parece encontrar uma especial ressonân- cia em nossos dias, na medida em que a questão do humanismo e da humanização da medicina aparece como um dos grandes temas do momento. Nunca como hoje, se falou tanto da necessidade de se humanizar a medicina e o ensino médico, porém, diretamente proporcional é também a confusão e o desconhecimento que existe sobre o que é humanismo e o que vem a ser humanizar a medicina. Neste sentido, a releitura da obra de Marañón aparece como uma iniciativa altamente útil no esforço por definir e sistematizar o resgate do humanismo no saber médico, assim como indicar os caminhos para uma efetiva humanização da prática e do ensino médicos.

É dentro deste contexto, portanto, que se retoma a discussão sobre o papel das artes ou, num sentido mais genérico, das humanidades no saber e na prática médica.

Como vimos, para Marañón, o recurso à literatura, às artes, à filosofia se apresenta como fundamental para o desenvolvimento de uma medicina que se quer cada vez mais integral, holística, personalista e isto porque é através das humanidades que se pode chegar a um conhecimento mais abrangente e preciso da realidade humana, da vida pessoal, individual. As artes, as humanidades - a literatura, a filosofia, a história - são como "janelas" ou antes "bisturis" que possibilitam adentrar no íntimo da alma humana, no âmago da vida pessoal, individual, que afinal é o principal para o saber médico. Além disso, as artes, a literatura e a história costumam ser também despertadores privilegiados do interesse, do amor pelo humano que, para Marañón, é a base mesma da autêntica vocação médica. [9] Segundo ele, sua própria vocação para a medicina nasceu, principalmente, do interesse - interesse que se transforma em verdadeiro amor [10] - pelo ser humano, pessoal, individual, que surgiu, dentre outras coisas, da leitura dos clássicos da literatura e da historiografia. [11]

De fato - não é só Marañón quem diz - a verdadeira obra de arte, tem um incrível poder mobilizador. Possui a capacidade de criar empatia, gerar crises, provocar mudanças, que são essenciais para o processo de humanização da pessoa que se realiza enquanto indivíduo, seja ela um médico, um estudante de medicina, um técnico, um engenheiro ou o que for. Isto porque, como bem coloca Alfonso Lopez Quintás, ao discorrer sobre o papel da análise literária na formação humana, uma obra de arte "no es un objeto sino un ámbito de realidad; no narra hechos sino expresa acontecimentos; no muestra sólo el significado de las acciones, sugiere además su sentido; no describe objetos, nos hace asistir más bien a procesos de entreveramiento de ámbitos que dan lugar a otros ámbitos o los destrueyem." [12] Em suma, "una obra literaria - ou obra de arte - no es um medio para comunicar el autor determinadas experiencias. Es el medio en el cual realiza él mismo tales experiencias." Consequentemente, conclui o autor, "interpretar una obra no se reduce a verla desde fuera y hacerse cargo de lo que en ella acontece. Significa entrar en juego com ella, rehaciendo personalmente sus experiencias clave. En la base de toda obra de calidad se hallan una o varias experiencias que impulsan la acción y le dan sentido. Al vivirlas por propia cuenta el lector, se iluminan en su interior las intuiciones fundamentales que impulsaron la génesis de la obra. A esta luz puede muy bien realizar una lectura genética de la misma, leerla como si volviera a gestar, y compreender así todos sus pormenores, hasta el vocablo más aparentemente anodino." [13] Ou seja, em uma verdadeira obra de arte - seja ela literária, cinematográfica, teatral - não só o autor, mas também o leitor - espectador, ouvinte... - é convidado ele mesmo a realizar as experiências que se geram na obra, levando-o assim a recriar e a reviver de maneira única e pessoal estas mesmas experiências, desencadeando um processo altamente fecundo no indivíduo que se envolve nesta leitura genética da obra.

Sem dúvida isto pressupõe método, orientação, que ao propiciar este tipo de leitura ou fruição, proporciona, além do envolvimento emocional, existencial do leitor/fruidor, seu envolvimento reflexivo ou sapiencial, ou seja, a capacidade de tirar lições, de aprender com a obra e de traduzir tais ensinamentos em conduta, em praxis vivencial. E aqui mais uma vez nos aproximamos de Marañón, quando, ao definir humanismo o faz atrelando-o mais ao mundo do vivencial que do meramente intelectual: "El humanismo es mucho más gesto y conducta que, en su sentido estricto, saber", afirma em um prefácio para um livro sobre História da Tuberculose, intitulado "Enciclopedismo y Humanismo". [14]

Sem dúvida a leitura dos clássicos - não qualquer leitura, bem entendido - a fruição de obras cinematográficas, teatrais, históricas, sempre foram e continuam sendo o caminho mais adequado para uma iniciação no processo de formação e desenvolvimento pessoal humano. Não se pode postular um humanismo ou uma humanização que não passe pela experiência profunda da obra de arte, seja ela qual for. O que se faz necessário agora, em nosso momento atual, dentro do contexto da formação médica, é não apenas o reconhecimento do papel das humanidades neste processo, mas também e fundamentalmente, o reconhecimento da precisão teórica e metodológica do "ensino" e da incorporação deste saber humanístico no universo das ciências da saúde em geral e da medicina em particular. Se por um lado, o humanismo não pode ser confundido com simples erudição ou "enciclopedismo", por outro não pode também ser reduzido à simpatia e bons sentimentos. Humanismo, que é "mucho más gesto y conducta" que "saber", não surge de "cosas radicalmente inventadas - citando uma vez mais a Don Gregorio - sino en cosas nacidas del pasado, del pasado fecundo..." [15] Reconciliar passado, presente e futuro, é o primeiro passo para se pensar em uma retomada verdadeira e eficaz do ensino de humanidades na formação dos médicos, assim como na redefinição dos paradigmas do saber médico contemporâneo.

 

Referências Bibliográficas

ENTRALGO, P. Laín, "Vida, Obra y Persona de Gregorio Marañón" in Obras Completas de Gregorio Marañón, Vol 1, Introducción, Madrid, 1965.

GALLIAN, Dante Marcello Claramonte, "A (re)humanização da medicina" in Psiquiatria na Prática Médica, Vol. 33, n. 2, abr.-jun 2000, pp. 5-8. Versão eletrônica em http://www.epm.br/polbr/ppm

LOPEZ QUINTÁS, A., "El análises literario y su papel formativo" in Convenit  N. 1, 2000, disponível em http://www.hottopos.com/convenit/lq1.htm

MARAÑÓN, G., Vocación y Ética, Madrid, Espasa-Calpe, 1976; Obras Completas, Tomo IX.



[1] ENTRALGO, P. Laín, "Vida, Obra y Persona de Gregorio Marañón" in Obras Completas de Gregorio Marañón, Vol 1, Introducción, Madrid, 1965, pp. XLIX e ss.
[2] Ibid, p. L.
[3] Idem, p. LI
[4] MARAÑÓN, Gregorio, La Edad Crítica, Madrid, 1925, prólogo, apud ENTRALGO, P. L., op.cit., p. LI.
[5] Para uma biografa de Marañón remeto ao já citado texto de Laín Entralgo, que foi publicado também como livro pela Espasa-Calpe de Madrid em 1976.
[6] MARAÑÓN, G., Vocación y Ética, Madrid, Espasa-Calpe, 1976; Obras Completas, Tomo IX.
[7] Sobre este processo histórico remeto ao meu artigo sobre "A (re)humanização da medicina" in Psiquiatria na Prática Médica, Vol. 33, n. 2, abr.-jun 2000, pp. 5-8. Versão eletrônica em http://www.epm.br/polbr/ppm
[8] Como foi mencionado anteriormente, Marañón foi, antes de tudo, um cientista altamente inserido no contexto científico de sua época, tendo desempenhado um papel muito importante no desenvolvimento da endocrinologia não apenas no seu país como também no cenário internacional. Cf. ENTREALGO, P.L.,  Op.cit.
[9] Sobre o riquíssimo tema da vocação em Marañón remeto o leitor aos seus ensaios sobre "Vocación y ética", já citados, que mereceriam uma análise a parte.
[10] É preciso esclarecer que a palavra amor para Marañón tem um significado muito mais profundo e complexo do que pode parecer à primeira vista, acostumados como estamos a qualificá-la a partir do senso comum. Na verdade, para ele o conceito deriva de uma reflexão filosófica  e antropológica do termo, que infelizmente não é possível analisar aqui.
[11] Cf. ENTRALGO, P.L., op.cit, p. IX.
[12] LOPEZ QUINTÁS, A., "El análises literario y su papel formativo" in Convenit International N. 1, 2000, disponível em http://www.hottopos.com/convenit/lq1.htm
[13]   Idem ibidem.
[14] In Vocación y Ética y otros ensayos, op.cit, p. 383.
[15] Idem ibidem.