A Estética da dor na Menina e Moça de Bernardim Ribeiro e nas Novelas Sentimentais

 

Csilla Ladányi-Turóczy
Universidade de Budapeste (ELTE)
Bolseira do Instituto Camões, Lisboa

 

Introdução

"La novela descansa sobre un <sentimiento trágico de la vida> por ser trágica la vida en donde se incubó y salió a la luz..." - afirma Américo Castro no seu volume España en su historia [1] , referindo-se à novela dos séculos XV e XVI na Península Ibérica. Embora não especifique de que tipo de novela está a falar, percebemos logo que só se pode referir à novela sentimental e talvez à pastoril, embora o romance de cavalaria também não seja isento de tristezas e tragédias, mas o seu tom nunca chega a ser tão dorido, como acontece nos géneros já referidos.

Estamos perante uma tristeza, uma verdadeira estética da dor especialmente peninsular, como têm observado vários estudiosos, entre outros Marcel Bataillon e Hélder Macedo. Embora se considere que a novela sentimental tenha a sua origem nas Heroides de Ovídio e nas respectivas traduções peninsulares (Afonso X e o Bursário  de Juan Rodriguez del Padrón) e, por outro lado, na Elegia di Madonna Fiammetta de Boccaccio, na verdade a novela peninsular só muito remotamente nos faz lembrar a estes precursores, tal como a bucólica de Teócrito e Vergílio ficam bastante longe das narrativas pastoris ibéricas.

É verdade que a tristeza já provém do renascentismo italiano, que também para Petrarca e Dante aparecem o amor e a morte, o enamoramento e a tristeza, a dor, como fenómenos inseparáveis - mas nenhum deles se abandona a este sentimento avassalador que é a tristeza, o desespero, a angústia - aparentemente apenas causados pelo "amor verdadeiro", não se abandonam, por assim dizer a um sentimento que podia ser considerado insano ou mesmo contrário à doutrina cristã. Em relação à ideia de heresia manifesta no exagero amoroso vejam-se as palavras de Sempronio, criado de Calisto que considera herética a paixão do seu amo [2] . Citamos aqui a Celestina con-siderando que também faz parte da família das obras sentimentais, embora à sua ma-neira muito própria, usando o trágico e o cómico ao mesmo tempo, o que, de resto, em-bora em medidas muito diferentes, também acontece em algumas novelas sentimentais.

Poderá haver polémica em relação à questão de saber quais as obras realmente sentimentais - já que enquadramos aqui uma peça de teatro que não se deixa encaixar em nenhum género definido [3] , mas também tencionamos incluir uma novela pastoril: a Diana de Jorge de Montemayor (ou Montemor), considerando mais o tom e o conteúdo do que os cenários propriamente ditos e os disfarces dos personagens. De resto, tanto a Menina e Moça de Bernardim Ribeiro como o Clareo y Florisea de Alonso Nuñez Reinoso, apesar de serem novelas sentimentais, têm partes pastoris, portanto não nos parece que incluir a obra de Montemayor seja uma ideia imprudente. Além das obras já mencionadas, falaremos nas duas novelas de Diego de San Pedro: Cárcel de Amor e Arnalte y Lucenda e, por fim, no Naceo e Amperidónia, novela sentimental portuguesa de autor desconhecido.

 

Tristeza: um elitismo espiritual

A tristeza dos heróis e heroínas nas obras da Idade Média e Renascimento é um conceito tão divulgado que às vezes parece perder a verdadeira importância. Não há personagem que se preze que deixasse de ser melancólico, já por natureza e não apenas por causa dos desastres da fortuna que lhe acontecem ao longo da história. Ainda que esta tristeza, por exemplo nos livros de cavalaria, está bem fundamentada já desde o princípio pelo facto de o herói não conhecer a sua verdadeira origem e seus pais.

A tristeza da novela sentimental porém, é diferente. Geralmente nada ficamos a saber acerca do passado, da origem das personagens (só quando a novela assume uma parte cavaleiresca), e, de ponto de vista da narração, também pouco interessa saber mais do que o facto de pertencerem à mais alta sociedade (disso não pode haver dúvidas) porque o verdadeiro nascimento do seu carácter acontece no momento de se enamorarem: sendo um lugar comum no século XV e XVI dizer que o amor faz da pessoa inimiga de si mesma e amiga do sofrimento e tristeza [4] , não é surpreendente que o conhecimento do próprio eu só possa surgir neste instante crucial qual é, ao mesmo tempo, o momento do nascimento do herói e da heroína sentimentais.

Este momento de reconhecimento e do surgimento da tristeza é várias vezes bem focalizada na obra de Bernardim, tanto nas suas éclogas (ex.: II. écloga, de Jano e Franco), como na própria Menina e Moça, principal objecto do nosso estudo. Quem mais ideologiza a tristeza é o próprio Bernardim, no diálogo entre a Menina e a Dona do Tempo Antigo, diálogo de tom filosofante que podemos considerar de extrema importância em relação à estética da dor, estética obrigatória nas novelas sentimentais. Neste diálogo, as duas mulheres, duas caras da mesma moeda, afirmam que as mulheres são mais tristes do que os homens: “Isto é assaz para as tristes das mulheres, que não temos remédios para o mal, que os homens têm. Porque o pouco tempo que há que vivo, tenho aprendido que não há tristeza nos homens.” [5] , e mais: que ser triste é possuir verdade desconhecida:“Mas se elas por isso têm razão de serem mais tristes ou não, sabê-lo-á quem souber que mágoa é manter verdade desconhecida.” [6] Já agora, se as mulheres são mais tristes, possuem mais verdade desconhecida, ou seja, são sábias de uma maneira especial, conhecem um mistério a qual só os eleitos têm acesso. Hélder Macedo, no seu livro revolucionário sobre a Menina e Moça [7] , identifica este conhecimento com o conhecimento espiritual, divino.

Tal como o amor louco é tido como heresia, a tristeza também não é muito bem vista pelo cristianismo, quer dizer, pelo ramo oficial do cristianismo. Disso é testemunho por exemplo o Pastor [8] de Hermas, autor do séc. II que consagra a este tema um mandamento inteiro: o 10º [9] . Ousamos citar este livro por uma razão especial: as figuras das duas mulheres, a nova e a velha no início da Menina e Moça, que alguns consideram uma e mesma pessoa em idades diferentes (veja-se Hélder Macedo), lembram as duas figuras da Igreja que se apresentam a Hermas nas primeiras quatro visões. A Igreja aparece primeiro como mulher velha e triste, mas lentamente abandona os sinais de velhice para se transformar numa noiva na 4ª visão. Quando Hermas pergunta a razão destas aparências e da transformação, é um anjo em forma de pastor que lhe explica que a Igreja, tendo sido a primeira criatura de Deus, assumiu figura de anciã, mas rejuvenesce à medida que os fiéis fazem penitência. [10] Será que Bernardim conhecia Hermas ou pelo menos esta simbólica através de outras fontes (por exemplo gnósticas) de uma Igreja primordial? Talvez não seja por acaso que são exactamente estas duas figuras de mulheres que explicam de maneira mais profunda a estética da dor e de tristeza, de resto, contrária à linha oficial do catolicismo.

Se na Menina e Moça a tristeza é sem dúvida sinal de uma espiritualidade excepcional, não o deixa de ser tampouco nas outras novelas sentimentais. Mas é interessante observar que esta tristeza está ligada a um conceito amoroso, que assume normas rígidas de comportamento: a virgindade, o secretismo, a capacidade de sofrer, a paciência etc. fazem parte do grupo destas normas ideais. Até que ponto esse código de exigências pode ser visto como cortês, é uma questão para discussão. Bem sabemos que os inventores do amor cortês, os trovadores provençais, não incluíam a virgindade como exigência no seu código, embora normalmente tenham cobiçado mulheres ainda não casadas, ou então viúvas. O amor cortês peninsular, depois da 1ª geração dos trovadores galaico-portugueses, caminha noutro sentido, permitindo o enamoramento só por donzelas, o que tem por resultado o aumento de angústia e secretismo, o aparecimento do medo dos rumores, um ambiente muito mais escuro. Bem se pode observar este ambiente nas novelas de Diego de San Pedro: no Cárcel de Amor é o próprio rumor que origina o desenlace trágico da história, apesar de não passar de rumor. De resto, todas as donzelas, sejam elas enamoradas ou não, se tentam defender do amor com a invocação deste mesmo terror de perder a boa fama: mesmo a Lucenda (não enamorada) de Arnalte y Lucenda justifica em primeiro lugar assim o seu desgosto pelos amores de Arnalte. Isso faz Amperidónia e aparentemente trata-se disso também no caso de Arima, mas por fim, outra vez não, já que Arima não pertence à esfera terrena – e a sua morte é mais natural do que a sua vida nesta mesma esfera, por isso, o fim, aliás, inacabado da história de Avalor e Arima não pode ser considerado trágico. A Celestina também é um caso à parte nesta questão de medo: por um lado, Melibea está a defender-se primeiro com o argumento usual, mas depois de se enamorar, ainda que com temor, entrega-se completamente a Calisto. Por outro lado, no mundo dos criados, a perda de virgindade e a fama tem um significado oposto: é o supremo valor. Também a tristeza, na primeira parte ridicularizada por Rojas (ver monólogos exagerados de Calisto) é mal vista nesse meio social (depois da tripla morte Elicia mete-se em luto, mas rapidamente se apercebe do facto de para o ofício dela isso ser prejudicial e renuncia logo). Não querendo entrar aqui na polémica questão de saber se A Celestina é mais cómica ou trágica, temos que afirmar que há um tom muito escuro no fundo desta obra: uma tristeza que já não é ridícula: a tristeza causada pelas circunstâncias de vida, onde a própria justiça pende em cima das cabeças como a espada de Damocles – e corta as cabeças literal ou figuralmente. (Há várias alusões à Inquisição, essa peste da sociedade peninsular que também contribuiu em grande medida para o ambiente escuro destas novelas.)

No Clareo y Florisea a tristeza também é característica de todas as personagens nobres (em duplo sentido) das histórias de amor. Isea começa a sua narração com palavras muito semelhantes às da Menina de Bernardim: “Esta mi obra, que solamente para mí escribo, es toda triste, como yo soy...” [11] . O enamoramento e a tristeza aqui também andam de mãos dadas, quer no caso de Isea cuja paixão não é correspondida, quer no caso de Clareo e Florisea que são agressivamente separados, quer no caso de todos as personagens intervenientes na segunda parte, em Felensindos e em todas as damas que se enamoram dele. Reinoso segue o exemplo de Bernardim na questão de relatar as mulheres como verdadeiras tristes, mas, apesar de falar em nome de mulher, os seus retratos são muito menos espiritualizados e muito mais reais do que os de Bernardim, embora, por outro lado, não consiga nenhuma descrição psicológica que se possa aproximar às do seu mestre. Talvez seja por isso que o conceito de tristeza parece pouco elaborado e pouco profundo na obra de Reinoso.

A tristeza de Diana é mais autêntica. Montemayor também se pode ter inspirado em Bernardim, embora as suas histórias sejam profundamente diferentes tanto no seu desenrolar como no seu desfecho. A tristeza em Montemayor naturalmente também tem a ver com o enamoramento que é considerado como único verdadeiro caminho à procura da verdade. É importante observar que no fim do 4º livro, Montemayor cita quase literalmente uma parte dos Dialoghi di Amore de Leão Hebreu, maior filósofo luso-judaico [12] dessa época. Não só esta parte, mas em geral, toda a novela de Montemayor está escrita no espírito desta filosofia de amor – que está exposta em forma de diálogo entre dois enamorados, ou seja, um homem enamorado (Filón) e uma donzela amada (Sofia) que ainda não conhece o amor. Mas este amor de Hebreu e de Montemayor não é “cortês”, tal como já não o são os das histórias de Bernardim e de Reinoso (muito menos ainda os d’A Celestina). Porque nestas histórias há um equilíbrio muito maior entre homem e mulher e há forte interesse por parte da mulher. A tristeza em Montemayor não é obrigatória – acaba quando o mal de amor acaba: no caso de Sireno, com o esquecimento, nos outros casos no reencontro dos enamorados. Mas, como a sábia Felicia afirma, é preferível amar embora isso seja sofrimento, porque amar é virtude: "En estos casos de amor tengo yo una regla que siempre le ha hallado muy verdadera, y es que el ánimo generoso y el entendimiento delicado en esto del querer bien lleva grandíssima ventaja al que no lo es, porque, como el amor sea virtud y la virtud siempre haga asiento en el mejor lugar, está claro que las personas de suerte serán muy mejor enamoradas que aquéllas a quién ésta falta." [13] Assim visto, sendo a tristeza originada pelo amor puro (do qual só os enamorados verdadeiros, de espiritualidade elevada são capazes) e sendo o amor uma virtude, a tristeza, ou o conhecimento do desconhecido estão reservados para uma elite espiritual. Quem pertence a esta elite, é questionável. Que sejam as pessoas da corte, como sugerem a maior parte dos estudiosos, é uma das hipóteses. Contradiz porém à má opinião dos escritores das novelas sobre a vida da corte (Montemayor, Reinoso, de certa forma Bernardim, já são algumas das vozes precursores da crítica de Quevedo). Será que se trata de uma elite diferente?

Sofrimento, exílio e tragédia

O sofrimento, muito ligado à ideia da tristeza, é uma condição essencial para o desenvolvimento de cada personagem sentimental. Tal como a tristeza, a dor e sofrimento, sejam eles espirituais ou corporais, fazem parte dos caracteres destes heróis e heroínas. Naturalmente aparece mais a ideia do sofrimento de alma, mas tratando-se de cavaleiros muito “esforçados” na maior parte das vezes (ainda que em disfarce pastoril), é frequente a ideia da dor física, sentida nas lutas e combates nos quais estes personagens privilegiados, ainda que com grande tormento, conseguem sempre vencer. O sofrimento físico é muito menos frequente nas mulheres - por um lado, porque estão bem guardadas, por outro, porque, sendo regra geral a virgindade, não entram em trabalho de parto como o fazem as heroínas dos romances de cavalaria. Nem mesmo no género pastoril presenciamos cenas de dor dessa maneira, a grande diferença entre a Nimfale Fiesolana de Boccaccio e a Diana de Montemayor, por exemplo, é a virgindade obrigatória na obra lusa enquanto na italiana encontramos Ménsola, a protagonista feminina como mãe. É interessante, de resto, observar que a Menina e Moça não obedece a esta regra de virgindade das novelas sentimentais: Belisa, mãe da divina Arima, morre em trabalho de parto: o seu comportamento face ao sofrimento físico é digno de ser realçado, já que se preocupa mais com o descanso nocturno do marido(?) do que com a dor que se assenhoreia dela. Outra heroína, ainda que donzela, passa por sofrimento físico, no Claero y Florisea. Embora a parelha de Clareo e Florisea seja uma das menos características em matéria de novela sentimental (trata-se de um casal de tipo bizantino que conserva a virgindade em todas as adversidades que tem um fim feliz: o casamento). A declaração porém, feita por Florisea na prisão onde está encerrada depois de ter sido vendida como escrava e tratada de pior maneira, é única na história de novela sentimental: aqui, a donzela, que normalmente é bem guardada e bem protegida, invoca tormentos horrorosos que provavelmente remetem para costumes da Inquisição: “Y finalmente determino de perder la vida por conservar mi honra; y por tanto, traed hierros, traed azotes, traed fuegos, traed cadenas, traed sogas, y atormentadme desnuda y en carnes, y arrancad mis cabellos, sacad mis ojos, quebradme los dientes, cortadme los manos...”. N’A Celestina a dor física é mencionada só em relação à Areúsa, uma das rameiras, enquanto Melibea, quando chama Celestina desesperadamente para obter cura, ainda que não queira admitir, sofre de uma dor espiritual que Celestina diagnostica como “amor dulce”.

O sofrimento espiritual, além de estar relacionado com o enamoramento, pode ter origem noutras coisas também. A mal-aventurança dos personagens é geral: sofrem mesmo antes de conhecerem o amor que lhes traz a morte em muitas ocasiões. É bom exemplo para isso o Naceo e Amperidónia cujo início é extremamente interessante: tanto o suposto tradutor “huum espanholl de nasam purtugues” como o herói da história, possuem características semelhantes: um é “agrauado de sua patrja”, “mall aventurado”, o outro,  "desfauorecido da Fortuna”, “descontente de sy”, [14] etc., o que sugere que o tradutor e o herói sejam uma e mesma pessoa, ainda que o narrador (desconhecido) situe a história no início na época troiana porque, depois ao decorrer da narração, esquece-se disso, situando-a num país cristão (fala em Semana Santa, Paixão, etc.).

Nesta novela sentimental de autor desconhecido aparece a ideia de exílio como em quase todas as obras do mesmo género: na Menina e Moça este é um dos temas principais, não só em sentido literário, mas também em sentido espiritual, lembrando-nos a lenda de Pérola. No Clareo y Florisea Reinoso dá conta do seu tormento pessoal falando nas terras do rio Henares que provavelmente será uma referência a Guadalajara. De resto, o tema de exílio aparece em relação a todas as personagens do livro, ainda que se não perceba o motivo do exílio do casal Clareo e Florisea e só dificilmente o auto-exílio de Isea depois das tragédias passadas com ela na sua terra natal. O velho símbolo de exílio, Egipto, também está inserido na obra: é aqui que Isea fica a conhecer o também exilado grande senhor de Egipto, protector de seu povo. Montemayor exila também algumas das suas personagens tal como ele próprio passou maior parte de sua vida em exílio voluntário: descreve a saudade de terra natal, Coimbra, no fim da Diana. Mas, na mesma Diana, também presenciamos um tipo de exílio parecido com o da Menina de Bernardim: Belisa recolhe-se a uma ilha, depois de pensar que o seu amado tinha morrido (aliás, achamos bem provável que a personagem de Belisa tenha sofrido influências bernardinas). É também a uma ilha que se refugia Naceo, querendo quer esquecer os amores de Amperidónia - um exilado que se exila ainda mais, podemos dizer. Mas também se desterra Arnalte na novela de Diego de San Pedro, ainda que com uma atitude que soa a falso: sobre as atitudes de Arnalte ainda falaremos mais adiante. A única obra em que não encontramos exílio verdadeiro, é A Celestina, ainda que talvez possamos considerar o recolhimento de Calisto na escuridão como um desterro simbólico.

O sofrimento das personagens também está ligado ao trágico - seja ele desfecho pressentido, seja já um mau começo, seja apenas uma angústia. Em opinião de Moreno Báez [15] , a grande diferença entre novela sentimental e novela pastoril é o aspecto trágico: enquanto o amor da novela sentimental leva à morte, na novela pastoril as personagens são capazes de encontrar um desfecho feliz para o seu tormento. Ainda que em algumas novelas sentimentais o amor tenha como resultado a morte: Cárcel de Amor: morte de Leriano, uma morte voluntária ou suicídio; Arnalte y Lucenda: morte do marido de Lucenda às mãos de Arnalte - quem morre, não é propriamente o enamorado; Menina e Moça; morte de Belisa em trabalho de parto - será uma morte de amor?; suposta morte de Bimarder - não ouvimos falar nele mais; provável morte de Arima: morte mais natural no caso dela do que a vida; suicídio de Avalor que alguns negam mas a voz “dentro dos ouvidos” torna as coisas claras; A Celestina: muitas mortes - (ainda que seja comédia, morrem nela quase mais pessoas do que em todas as novelas sentimentais em conjunto): morte acidental de Calisto - uma punição de Deus?, suicídio de Melibea - verdadeira morte de amor sem o verdadeiro amor ter existido?, etc. No entanto, podemos afirmar que a Diana não é a única obra aqui enumerada que resolve os amores sem morte: não morre nenhum dos amantes nem no Clareo y Florisea, nem no Naceo e Amperidónia - ainda que a última pareça inacabada. Não resolver as questões do amor sem usar a morte trágica, obriga o autor a usar outros métodos. Ou não acaba a história de todo (Naceo y Amperidónia, 2ª parte de Clareo y Florisea) ou opta por afastar os amantes definitivamente (recolha a um mosteiro: Cárcel de Amor e Arnalte y Lucenda), ou os casa (1ª parte de Clareo y Florisea e Diana), ou os obriga a esquecer (caso de Sireno na Diana). Se optar por esta última solução, quase obrigatoriamente tem que admitir a intercessão de forças sobrenaturais ou seja, da magia. É isso que acontece com Sireno que bebe da água misteriosa de Felicia e esquece o seu amor pela mal maridada Diana. Mas não será ainda mais trágico “resolver” tormentos amorosos pelo esquecimento do que deixá-los acontecer contando com as consequências? A Isea de Clareo y Florisea, por exemplo, recusa-se a beber do rio do Olvido (Lete) para não se esquecer dos benefícios recebidos do grande senhor de Egipto. De resto, o Sireno depois de ter bebido de tal água, parece completamente esvaziado, uma tábua rasa - que não é, de maneira nenhuma, uma característica positiva na lógica da estética da dor destas novelas.

Já que falámos na questão de morte de amor, no desfecho trágico, convém analisar o papel da morte e do luto neste contexto sentimental. Acontece que em certos casos, nomeadamente no 2º episódio da Menina e Moça e no Arnalte y Lucenda, o amor do cavaleiro nasce em circunstâncias muito especiais: a donzela está de luto por causa da morte recente dum parente - no caso de Aónia trata-se da irmã, no da Lucenda, do pai. O luto nestas circunstâncias leva a carpir, de resto, costume proibido nessa altura, exactamente por causa de desmesura que a Igreja Católica interpreta como contrária da doutrina cristã, mas, por mais proibido que seja, geralmente praticado pelas mulheres. O carpir dos cabelos torna-se no entanto um espectáculo interpretado como erótico: ver donzelas "em cabelos", ou seja, de cabelos soltos é um acontecimento raro e está associado a momentos mais íntimos. Mas, ficando dentro da lógica da estética da dor, para um cavaleiro triste ver uma donzela no cúmulo da tristeza é como encontrar uma alma gémea. No entanto, um amor que nasce no luto e na presença da morte, é um amor que nasce sob "mau agoiro" e já o seu início contém o fim. Interpretando porém os comportamentos completamente contrários dos dois cavaleiros enamorados nas mesmas circunstâncias, podemos ver muito nitidamente qual é que obedece às normas da estética da dor: Bimarder quem é perseguido por maus agoiros tal como Arnalte (o cavalo de Bimarder é devorado por bestas, ele cai da janela de Aónia, etc., enquanto a Arnalte morre a sua águia), vendo o desfile de casamento de Aónia, vira as costas e desaparece para sempre (pelo menos da nossa vista), enquanto Arnalte vai armar-se em forte, mata o jovem marido da mulher amada e com isso destrói não só a sua própria vida como também a de Lucenda com a qual ainda queria casar depois de lhe ter tirado o esposo...

Luto mais exagerado do que o carpir é o suicídio, desde sempre fortemente combatido pela Igreja. Já o amor louco que caracteriza praticamente todos os personagens das novelas sentimentais é considerado heresia como temos visto no exemplo de Calisto. As consequências deste louco amor são por um lado, o afastamento dos deveres impostos pela sociedade, por outro lado, o desrespeito das regras de mesura e com isso, o desrespeito da vida própria. A civilização em que estas novelas nascem porém, é uma civilização de paradoxos: por um lado respeita e cita os exemplos da Antiguidade (a obra que mais reminiscências contém neste sentido é A Celestina), por outro, é forçada a obedecer às doutrinas duma Igreja nesta altura extremamente conservadora. O suicídio, como é sabido, é um dos temas onde as duas ideologias não se deixam levar a um compromisso. Na Antiguidade o suicídio é visto como um acto heróico, em certas circunstâncias, obrigatório; no Cristianismo, como pecado mortal. Nas novelas sentimentais porém, aparece esta ideia sem qualquer crítica moralizante por parte do autor. No Cárcel de Amor por exemplo, Leriano comete um suicídio em contexto cavaleiresco muito estranho: praticamente morre de fome depois de um acto que pode ser considerado blasfemo por imitar o acto de comunhão [16] : sem saber o que fazer às cartas da amada, come-as como o crente come a hóstia. O único suicídio realmente trágico encontramos na tragicomédia: Melibea, como verdadeira heroína de Antiguidade, salta de cima duma torre, imitando a queda (acidental) do seu amado, Calisto. É bem provável que o motivo da queda tanto no caso dos criados, Semprónio e Parmeno, como no de Calisto, contenha uma mensagem moralizante. No entanto, a queda de Melibea pertence a um outro categoria: como ela é a única pessoa n’A Celestina que escolhe deliberadamente a morte e é o personagem mais trágico, não parece provável que Rojas queira moralizar em relação ao suicídio dela. Enquanto a última palavra de Calisto é “confessión”, Melibea não está preocupada com a salvação da sua alma, apenas com a união com o seu amado e isso, apesar de ser blasfema nos olhos do bom católico, é heróica para aqueles que veneram os exemplos da Antiguidade - Rojas não pertencerá a este grupo de pessoas?

Um problema ainda mais complicado é o da Menina e Moça. Nada sabemos acerca da sorte de Bimarder, e só podemos suspeitar que Arima morre ou se desvanece devido a sua constituição frágil, já que não pertence verdadeiramente a este mundo. Agora, afirmar que Avalor não comete suicídio, é, ao meu ver, no mínimo ininteligível. O cavaleiro segue o barco de Arima e vendo-se no meio do mar ainda por impulso natural tenta salvar a própria vida, mas percebendo que o reencontro com a Arima só será possível na morte, abandona-se às águas que lhe sussurram ao ouvido que não pode morrer aquilo que já está morto. Consideramos que nem se pode pôr a questão de atitudes moralizantes de Bernardim neste caso:  de resto, o poeta não parece estar influenciado por nenhumas atitudes deste tipo.

A morte como solução das histórias de amor não é exclusiva e nem sequer frequente nas novelas sentimentais. A ocorrência de mortes torna as novelas trágicas? Depende do conceito que o autor tem da morte. No caso de Bernardim, não parece haver diferença entre vida e morte, por incrível que pareça, nem sequer é fácil distinguir os vários estados dos personagens. Para ele, a morte nem significa descanso (veja-se a Sextina), nem afastamento do espírito da esfera terrena. Assim sendo, a morte não tem verdadeiro significado trágico - o que é mesmo trágico, é a separação dos amantes: Lamentor testemunha isto perfeitamente dizendo que morre duas vezes: porque o espírito já está morto por causa da morte de Belisa, apenas o seu corpo tem que morrer ainda. A tragédia das figuras bernardinas é o desterro espiritual que tanto sentem em vida como na morte.

A Celestina pode ser considerada uma obra “sangrenta” por causa de cinco (ou seis, contando com a mãe de Melibea) mortes que ocorrem ao longo da história. É difícil decidir quais trágicas, quais não - se se define como tragédia a perda de algo valioso, talvez só possamos considerar trágico a morte de Melibea e de mãe. Mas, Rojas não é um autor tão linear. Celestina, por exemplo, apesar de toda a podridão da sua alma, consegue despertar alguma simpatia nos últimos momentos da sua vida. Parmeno, o criado que no início é o criado fiel e se transforma na cópia de Semprónio [17] , deixa-nos perplexos: será que com a morte dele não se perdeu nada? E Calisto que ao longo da peça é ridicularizado e enganado por quase todos, e que é uma versão grotesca do fiel e virginal cavaleiro, também não será uma perda trágica? A relação de Rojas com a morte é muito ambígua: no início da sua história banaliza o luto e ridiculariza a funebridade: Celestina conta tais horrores sobre o comportamento da "boa mãe" de Parmeno que estamos obrigados a rir-nos de tanta miséria. No fim da peça, porém, coloca duas cenas de mais profundo luto: a de Melibea por Calisto e a de Pleberio por Melibea. Talvez não seja a própria morte que torna a história trágica mas a impossibilidade de viver uma vida sem feitiços e sem medo da punição terrena ou celeste.

A empatia da natureza, a crueldade da terra e o simbolismo dos edifícios

Tal como na Menina e Moça, também na Cárcel de Amor, no Clareo y Florisea e na Diana encontramos as paisagens, os cenários dos acontecimentos (ou meditações - porque na maior parte das vezes nem se trata de acções propriamente ditas) intimamente ligados ao estado de ânimo dos seus agentes. A história pode passar-se num país longínquo (Cárcel de Amor e Clareo y Florisea) ou nas terras de Espanha e Portugal (Diana), mas também num sítio indefinido que às vezes lembra a Hispánia (Menina e Moça), o que verdadeiramente interessa neles, não é uma realidade histórica. [18]   A paisagem estereotípica do bucolismo, os verdes prados e as frescas fontes (Menina e Moça, Clareo y Florisea - ver episódio das irmãs do castelo -, Diana) relembram o idílio pastoril de Teócrito, mas só nas aparências [19] . Porque estas paisagens tão amenas encobrem sofrimentos e dores muito graves, encobrem e muitas vezes desvendam a própria ameaça da morte e também uma coisa que talvez até seja mais assustadora que a morte: o esquecimento. Tal como vários estudiosos já têm afirmado, as paisagens descritas nas novelas do século XVI não têm muito a ver com realidade rural, nem com experiências vividas pelos poetas/escritores. A terra onde a Menina de Bernardim passa os seus dias é de tal maneira simbólica que o rouxinol que canta em cima de uma árvore cai só porque se identifica com o amor desastrado da Menina, e a árvore deixa cair as suas folhas a ver o rouxinol morrer, que uma pedra que separa as águas do rio funciona como as forças que separaram a Menina do seu amado, enquanto na Diana a paisagem faz de tal maneira parte das personagens que vivem nela mas que também a formam com o próprio sofrimento, que Belisa, uma pastora que se refugiou numa ilha depois da suposta morte do seu amado, pode exclamar assim: "¿Qién pensais que haze crescer la verde yerva d'esta isla y acrescentar las agoas que la cercan sino mis lágrimas? [20] ¿Qién pensáis que menea los árboles d'este hermoso valle sino la boz de mis sospiros tristes, que, inflando el aire, hazen aquello que él por sí no haría? ¿Por qué pensáis que cantan los dulces páxaros por entre las matas, cuando el dorado Phebo está en toda su fuerça, sino para ayudar a llorar mis desventuras? ¿A qué pensáis que las temerosas fieras salen al verde prado sino a oir mis continuas quexas?" [21] Na novela bernardina a paisagem participa activamente na vida dos seus habitantes: no caso da própria terra é o mais negativo possível, enquanto no caso das plantas e animais funciona como espelho e consolo da própria alma - na novela de Montemayor porém testemunhamos uma convivência diferente, menos fatalista: Belisa até consegue amansar as feras com o seu choro - uma ideia que talvez seja reminiscência de Horácio (Integer vitae scelerisque purus [22] ), ou seja, a pessoa enamorada (possuída por um amor verdadeiro, puro que a mantém num estado da mais profunda tristeza), tal como o poeta, pertence à esfera divina [23] e por isso, é respeitada até pelas feras, pelos animais ferozes que em circunstâncias normais a podiam atacar.

O simbolismo da paisagem também é significativo nas novelas de Diego de San Pedro. [24] A imagem apresentada no início da Cárcel de Amor parece extraída dum romance de cavalaria; cheia de personagens e animais simbólicos, relatando uma prisão feroz, um martírio sangrento - e tudo isso em nome do sofrimento amoroso. No caso de Arnalte y Lucenda já no início da novela nos encontramos num deserto (numa selva) que não só simboliza o desespero do protagonista, Arnalte, mas também o seu vazio sentimental porque Arnalte é um falso cavaleiro, um agressor que nada tem a ver com Bimarder, tornado pastor por amor de Aónia, nem com os enamorados da Diana: esse Arnalte reivindica o amor de Lucenda que não o quer em nenhum momento da história - o que é um facto único. É interessante observar como a cúmplice deste falso cavaleiro, a sua irmã, Belisa fala sobre o refúgio escolhido pelo irmão - um refúgio que a ele não pode dar conforto ao contrário dos personagens verdadeiramente enamorados que gozam a empatia da natureza: "Cata que los montes alabar no saben; cata que las bestias fieras la bondad no conoscen; cata que las aves sentimiento no tienen." [25]   Na opinião de R. Langbehn-Rohland, Arnalte seria um personagem cómico - o que poderá ser verdade em parte, no entanto, a tragédia que ele causa já não pode ser designada com esta palavra o que nos leva a pensar que embora San Pedro possa nas entrelinhas ridicularizar o seu falso cavaleiro, não deixa de o levar a sério.

Como todos os tópicos da novela sentimental, n’A Celestina aparece também esta ideia da empatia da natureza. Naturalmente, de uma maneira que mistura o cómico com o trágico. No derradeiro encontro de Calisto e Melibea a última chama a atenção do seu amante às vozes e delícias do jardim e neste contexto não só invoca a ideia do locus amoenus, mas também o pensamento panteísta que caracteriza as novelas pastoris: só que não se dá conta que os ciprestes simbolizam a morte próxima: “Escucha los altos cipresses, cómo se dan unos ramos com otros por intercessión de un templadico viento que los menea.” [26]

Em relação à compaixão da natureza, o que nos chama mais a atenção, é o papel desempenhado pelas águas. Já temos visto no caso do discurso da Belisa que a ideia provém da tradição dos psalmos, exactamente do Psalmo 137, Super flumina Babylonis que foi muito popular na Península. [27] Não só se enquadra bem na estética da tristeza causada pelo exílio, como simboliza a empatia da natureza de maneira mais impressionante. Também é esta empatia que se manifesta na Menina e Moça, na cena do rio e da pedra e no episódio derradeiro da novela quando é este mesmo rio que leva Avalor ao objectivo da sua jornada. Na obra bernardina o simbolismo ligado ao rio/ribeira é tão rico como o ligado à terra. Como nos parece, a água constitui uma fronteira entre área terrena e área espiritual, é à beira dela que os personagens enfrentam os seus espíritos (como no Romance: Ao longo de uma ribeira), é ela que separa os namorados (Bimarder e Aónia). Mas, em forma do mar, tem uma função ainda mais forte. Como a cena de suicídio de Avalor demostra, a ideia de haver espíritos "que guardam religião" dentro do mar é uma ideia assente. Embora o mar seja também um símbolo da morte (pelo menos morte física) e de tormentos da vida. Citando outro psalmo, o Psalmo 68, Salvum me fac Deus, descobrimos a imagem ancestral de uma pessoa apaixonada numa ilha, rodeada pelas águas do mar que a ameaçam como o abandono do amado. [28] É este motivo que encontramos na cantiga de amigo de Meendinho: Sedia-m’ en na ermida de San Simon [29] , mas também no Naceo e Amperidónia, quando Naceo se recolhe a uma ilha no meio do mar - naturalmente a ilha também é um símbolo do desterro, esteja ela no mar ou no rio.

Há um aspecto curioso em relação à natureza na Menina e Moça que não aparece em mais nenhuma novela sentimental e este é o da terra [30] . A terra como símbolo do Mal absoluto e da matéria absoluta tem uma carga emocional e espiritual tão grande que só pode ser explicada através da gnose, do dualismo radical dos valores e realidades como os gnósticos o entendem. É no entanto interessante observar como a natureza, que no fundo faz parte da terra, se eleva a níveis espirituais enquanto a sua origem permanece tão fatalmente material. A palavra terra, aliás, tem vários significados na obra de Bernardim, aparece como esta substância negativa à qual se pode tornar toda a culpa (palavras do maioral), como pátria e, ao mesmo tempo sítio de exílio, como símbolo da morte material (é na terra que os mortos jazem e onde os corações dos seus entes queridos estão enterrados), da força devastadora do tempo. Esta tal terra, ao contrário das outras forças da natureza, especialmente as aves, não tem compaixão nenhuma, o seu único objectivo parece ser a destruição de todos os valores. Mesmo assim, a terra é, ao mesmo tempo fértil e assombrada, boa e má, a sua essência é o engano, é a falsidade.

Enquanto a natureza livre sofre com os amantes ou os ameaça de uma maneira espiritual, os edifícios, em especial as prisões e templos, assumem um papel mais terra-a-terra: tornam-se símbolos do controlo da sociedade - por um lado, da sociedade civil, por outro, da religiosa. A ideia da prisão, seja ela verdadeira ou dissimulada, é bem patente em todas estas obras sentimentais. No Cárcel de Amor, que já chama a atenção à prisão no seu título, são relatadas duas prisões: a de amor de Leriano que é apenas simbólica e a de Leureola, verdadeira. No Clareo y Florisea os cárceres são bastante frequentes: tanto Clareo, como Florisea e Isea passam por esta experiência que nos é relatada com um realismo invulgar. Parece-nos que estas prisões não são meramente simbólicas: que reflectem uma experiência talvez pessoal, talvez transmitida por conhecidos de Reinoso. A Menina e Moça, o Naceo e Amperidónia e A Celestina referem-se mais à prisão social da mulher, da donzela. A Dona do Tempo Antigo de Bernardim pinta a imagem da donzela no seu alto castelo de onde não se pode afastar, Naceo queixa-se das dificuldades que se apresentam em se aproximar de Amperidónia que nos seus encontros secretos não chega a ver, e no início dos amores de Calisto e Melibea também presenciamos uma entrevista amorosa "entre portas", ainda que depois a prisão de Melibea, simbolizada pelos altos muros que cercam o jardim e que por fim, dão morte a Calisto, perde o seu significado imediato - ainda que a prisão imposta e simbólica da sociedade não pode ser ultrapassada.

Não deixa de ser curioso no entanto, como o outro edifício simbólico de controlo é usado pelos personagens sentimentais para os seus fins amorosos. Trata-se de templos e igrejas nos quais as heroínas aparecem aparentemente por razões espirituais enquanto os cavaleiros ou pastores nem sequer disfarçam a sua falta de interesse por esses assuntos. A única obra na qual não encontramos referência a nenhum lugar sagrado, é a própria Menina e Moça - aliás, referência explícita à religião também só há uma: quando se fala de certa romaria que também serve como pretexto para um encontro amoroso (tendência bem conhecida esta nas cantigas de romaria da poesia galego-portuguesa). Talvez não haja templo ou igreja na novela de Bernardim porque para o nosso autor a própria natureza, especialmente a natureza em lugar apartado [31] desempenha as funções que normalmente estes lugares costumam desempenhar, ou ainda, porque estes lugares na sua experiência não desempenham as funções que deviam. Parece que as outras novelas também reflectem esta realidade, aliás, pode ser considerado como lugar comum que a igreja cristã é mais um sítio de seguro encontro de amantes do que um lugar de meditação religiosa: já na novela considerada precursora das novelas sentimentais do Renascimento, na Fiammetta podemos observar este funcionalismo do templo.

O templo/igreja não só não desempenha as suas funções normais como se torna bastantes vezes palco de falsidade e engano. Tanto no Arnalte y Lucenda como num dos episódios de Diana, e lá que se realiza um encontro amoroso baseado na falsidade de identidades: Arnalte entra na igreja disfarçado de mulher, para se declarar a Lucenda que não lhe concedeu nenhuma entrevista, enquanto no outro caso, é uma pastora que engana a outra, dizendo ser homem e provocando nela uma paixão devassadora. No Clareo y Florisea aparece por um lado o templo pagão onde os egípcios se preparam para sacrificar Isea (não será este templo símbolo da Igreja que continua a tradição dos sacrifícios humanos nos seus autos-da-fé?), por outro, o mosteiro de monjas de Espanha onde Isea não é admitida por falta de limpeza de sangue (qual mosteiro é identificado pelo editor do livro com a própria Espanha) - dois casos que também se baseiam na falsidade, neste caso da doutrina católica. Na história de Naceo e Amperidónia não só tem importância o lugar mas também a época litúrgica em que as coisas se passam. É primavera, estação preferida dos amantes, mas uma parte importante da narração coincide com as festividades da Semana Santa e a Páscoa [32] . Naceo vai à igreja na altura da Paixão para ver Amperidónia, aparentemente devota, e não para assistir à cerimonia, tanto assim que na altura de começar a Paixão, sai do templo, qual acto é comentado assim pelo narrador: “Esteue Naçeo naquella casa ate que quiserão começar a Paixão, & por que a sua nã era conforme com aquella saiose pera fora...” [33] Essa Paixão (de Cristo) está em contradição com aquela de Naceo, como se as duas coisas fossem contrárias e na lógica de Naceo, só uma delas verdadeira. De resto não terá um tom irónico da frase de Naceo quando diz: “Não direis que uos não deixej simtjr a paixão” [34] , referindo-se à liturgia. A Celestina é a única obra na qual é o “herói” masculino que vai à igreja deliberadamente mas, como é lógico, também pelas razões erradas - é por isso que os criados o tentam demover dessa visita religiosa.

O universo do amor: a fé, a memória e o esquecimento

No universo das novelas sentimentais tudo fala de amor, este é o único tema existente, a única realidade, a única ambição, a única maneira de aprendizagem. Talvez não seja por acaso que a grande obra filosófica desta época, a já citada Dialoghi di Amore de Leão Hebreu (Judah Abranavel) tenha este título e o amor como seu tema principal. Podemos dizer que a época atribui tanta importância a este assunto porque é uma época em que as pessoas se amam mais ou, pelo menos, em que tentam amar-se, entender-se mais? Naturalmente não. É uma época de ódio e de transformações muito negativas para grande parte da população. Mas também é uma época que desperta anseios pela paz e pela harmonia, em que muitos tentam perceber o porquê dos acontecimentos. E é uma época na qual grande parte de intelectuais perde qualquer possibilidade de se expressar livremente sobre questões políticas e religiosas. Por isso e por outras razões semelhantes é que aparece o amor como tema central e praticamente único de um género literário inteiro. (Seria interessante comparar as razões de surgimento deste género sentimental com aquelas do outro género sentimental, muito mais tarde.)

Mas: será que a literatura sentimental realmente não fala de mais nada senão do amor? Será que os seus autores, tal como os cavaleiros e pastores das novelas não têm outra ambição senão o amor? Ainda por cima um amor, tão desesperadamente ligado à tristeza? Escrever sobre o amor na Idade Média e no Renascimento não é simplesmente escrever sobre o amor, mas falar sobre um universo inteiro, sobre uma filosofia de vida completa. Escusado será dizer que o Platonismo é patente nessas novelas sentimentais, que o amor do cavaleiro pela dama pode ser visto como o amor do Homem por Deus - e, ao contrário da tradição bíblica em que Deus sempre é uma figura masculina enquanto o povo judaico e mais tarde a Igreja se identificam com a moça (do Cântico dos Cânticos), neste caso a hierarquia é invertida: a dama é espiritualmente superior - como o louco Calisto diz, ele é que se torna melibeo, não ao contrário.

Não só este único aspecto de relações homem-mulher (aspecto imediato e erótico) pode ser entendido como paralelo religioso. Já a designação “fé” em relação ao amor, a fidelidade, a devoção à dama nos chama a atenção porque a palavra “fé” também é usada no sentido religioso. Tal como o enamorado pode trair esta fé amorosa, abandonando a sua primeira paixão (é isso que faz Bimarder com Aquelísia, don Felis com Felismena, etc.), também o crente pode abandonar o seu Deus ou a sua identidade religiosa. Bem sabemos que esta época na Península Ibérica está marcada pela conversão dos judeus - conversão esta forçada ou deliberada - em relação a qual vão surgindo sempre novamente as dúvidas: terá sido sincera ou não?

Não será por exemplo o casamento contra a vontade símbolo desta conversão forçada? Tal como na Menina e Moça, no Naceo e Amperidónia, na Diana e nas novelas de Diego de San Pedro também vemos episódios desta natureza. A pessoa enamorada (Aónia, Amperidónia, Diana, etc.) vê-se forçada pelo poder paternal a um casamento que não deseja. Mesmo assim não resiste e acaba por casar com a pessoa designada, causando enorme sofrimento no amado que a abandona (Aónia nunca mais vê Bimarder que talvez venha a morrer por desgosto, Diana volta a ver Sireno, mas nessa altura ele não mais lhe quer bem: fica curado dos amores pela sábia Felícia; Amperidónia continua a sua relação com Naceo às escondidas). Se o amor é símbolo da fé verdadeira, o casamento pode ser outra fé, que será imposta pelos pais (pelos poderosos). No entanto, como não se pode esquecer tão facilmente o amor verdadeiro (a fé ancestral), o sofrimento é inevitável, também por causa da ausência do amado que poderá ter o seu paralelo na ausência de identidade religiosa. Mas não só encontramos exemplos negativos em relação à conservação da fé: só que nos casos da fidelidade conservada a tragédia é praticamente inevitável, principalmente se vê isso na Menina e Moça: nos amores de Belisa e Lamentor, tal como na paixão infinitamente discreta de Avalor por Arima, sendo a última realmente fácil de identificar com um ser divino.

Em relação a esta fidelidade ou infidelidade e as suas consequências, temos que voltar a falar na maneira como Jorge de Montemayor resolve os problemas amorosos dos seus personagens na Diana. Trata-se de memória e de esquecimento (olvido) que parecem estar em poder da misteriosa Felicia, uma feiticeira boa que Francisco Lopez Estrada chama “una Celestina de altas esferas que en vez del profondo conocimiento del corazón humano maneja los elixires de la magia”. [35] O paralelo com a figura de Celestina não é, de maneira nenhuma descabido. Porque se trata de uma figura que, ainda que seja aparentemente de “altas esferas”, ou seja, “mesmo celestina”, desempenha um papel negativo em tirar as identidades aos alguns dos personagens. O até lá sempre fiel Sireno que muitos identificam com o próprio autor, de repente perde a memória da sua fé: esquece não só os seus sentimentos por Diana (ainda que não por completo), mas também a si mesmo, não conhecendo mais a própria identidade. O facto de a história acabar sem solução para a parelha Sireno-Diana deve ser significativo, até mais significativo do que se pensa. E embora Montemayor fale em continuação, nunca a chegará a escrever - não será porque para o seu próprio problema de perda de identidade não conseguiu encontrar solução? E, numa suposição aventureira, naquela água de olvido que Felicia oferece e que alguns identificam com o tempo, não estará lá a ideia da água benta?

Como já temos dito mais acima, a tragédia verdadeira destas novelas pode residir exactamente na obrigação de escolha entre a fidelidade acompanhada pelo sofrimento da insatisfação e do secretismo e do esquecimento acompanhado pela dor da perda de identidade.

A narração feminina, a mulher sábia e a mudança de sexo

Quando se fala nos precursores da novela sentimental peninsular, menciona-se as Heroides (com respectivas traduções de Afonso o Sábio e o Bursário) e a Fiammetta por causa do aspecto da narração feminina. Ovídio adopta a narração feminina nas elegias (cartas) de heroínas mitológicas e históricas aos seus amados, dando conta de uma capacidade de mimese extraordinária. Mas não é o único autor da Antiguidade capaz de imitar e reinventar o discurso feminino: já os grandes dramáticos de Grécia (especialmente Sofocles) e entre os romanos Virgílio produzem discursos pseudo-femininos muito bonitos. Ao que parece, o grande tema destes discursos é o amor não correspondido ou atraiçoado. É nesta linha (de Medea, Phaedra e Dido) que se situa Fiammetta também.

No entanto, a narrativa feminina nas novelas sentimentais tem outras características além daquelas dos percursores. É verdade que o grande tema permanece intacto, mas parece haver mais prudência e dignidade nestas figuras sentimentais do que havia nas da Antiguidade, até ao ponto de algumas delas realmente pertencerem a uma esfera divina. Claro que a narrativa feminina não é exclusiva neste género, antes pelo contrário: a maior parte das obras tem um narrador masculino, ainda que as mulheres tenham partes de narração em forma de carta ou de discurso directo. Narração pseudo-feminina caracteriza a Menina e Moça e o Clareo y Florisea da primeira linha até a última: enquanto na obra bernardina existem duas narradoras, no livro de Reinoso só uma, e esta nem sempre tão autêntica como podia ser. Mas também é verdade que as figuras femininas de Menina e Moça são exclusivas desta obra, e lembram à Sofia dos Dialoghi di Amore por serem tão delicadas e tão filosofantes como esta. De certo modo, tal como Sofia, as duas narradoras de Bernardim, simbolizam a própria sabedoria. Como já temos referido em relação à tristeza, esta está mais ligada às mulheres do que aos homens e, permite um conhecimento encoberto (sabedoria) que a maior parte dos homens não possui. Mas, embora a heroína da novela sentimental seja sempre triste, nem sempre possui esta sabedoria - isso depende do facto de ser enamorada ou estar a ser apenas amada -como acontece com a própria Sofia no início da obra filosófica de Leão Hebreu.

Há narração feminina também na Diana: até podemos dizer que as histórias de amor mais interessantes da novela são relatadas por mulheres, todas elas enamoradas (de resto, só as mulheres enamoradas parecem ter direito à narração). Nos diálogos no fim do 4º capítulo, “inspirados” numa passagem de Leão Hebreu, Sireno acha natural que a pastora com quem fala não perceba bem como é impossível para o enamorado mentir e inventar - porque ela ainda não conheceu o amor: ainda não é sábia. Outra participante destes diálogos porém explica uma questão importante (memória e esquecimento) a Silvano, começando por aludir a uma certa passagem da Menina e Moça: tal como a pergunta parece mais que dum pastor, ela devia ser mais que pastora para a responder - é isso que a Dona do Tempo Antigo diz sobre o maioral: ele pareceu mais que um pastor. Não quererá isso significar que essa pastora também é mais que pastora, uma sábia com conhecimentos espirituais?

Nas outras novelas sentimentais, embora sejam dirigidas a um público feminino as paixões são relatadas de ponto de vista masculina e, ao que parece, não chegam a ser entendidas pelo lado feminino. Nesses casos, não podemos falar em mulheres sábias: nem as figuras femininas de San Pedro, nem Amperidónia têm características especiais no nível espiritual. A última até revela uma mediocridade de carácter nos seus comportamentos e não consegue ganhar a nossa simpatia. Todas elas se defendem bem do amor e são incapazes de entender o verdadeiro significado deste.

Quanto À Celestina, como sempre, é um caso especial. Ainda que de uma forma perversa, são as mulheres nesta peça que tomam as rédeas dos acontecimentos. Principalmente Celestina, pelo seu próprio nome designada pertencente a uma esfera elevada se revela o contrário de toda a boa sabedoria - mas possui um tipo de conhecimento que a faz sábia em certas questões e que lhe permite influenciar os acontecimentos. Melibea, por sua parte, aparentemente tola e enganada, assume um papel heróico que nas suas últimas consequências já não podemos atribuir somente à magia de Celestina. De qualquer maneira: Melibea percebe o significado do amor verdadeiro que Calisto não é capaz de ver.

Há uma questão bastante misteriosa em relação ao feminino nalgumas novelas sentimentais, e esta é a de mudança de sexo. Já vimos que Arnalte encontra-se com Lucenda pela primeira vez na igreja, disfarçado de mulher. Não é só nesta novela que tal disfarce acontece: na Diana até é uma coisa normalíssima os enamorados se vestirem de roupas do outro sexo: Felismena vai atrás de don Felis disfarçada de pajem, e, causando um triângulo amoroso, desperta amor na nova amada do seu amado que a crê homem. Noutra história, já referida, de um quadrângulo amoroso, uma pastora apaixona-se por outra num templo: depois a segunda chega a mentir-lhe que é homem, e manda o seu primo, nas feições igual a ela a um encontro amoroso que tem como resultado o amor entre o primo e a outra pastora para grande desgosto da pastora que originou a situação. No Clareo y Florisea também encontramos mudanças de sexo, e não pouco significativas. Num episódio menos importante, em Alexandria, o amigo de Clareo, Rosiano disfarça-se de mulher para se aproximar de uma certa dama casada, Ibrina. Mas, a mudança ou troca de sexos podemos detectar nos próprios personagens de Isea e o grande senhor de Egipto que, segundo Marcel Bataillon [36] são Reinoso e dona Gracia Nasi, nesta ordem. Mostrar dona Gracia como homem é uma forma de homenagem e é baseado no mito de Cines: uma moça que chega a ser forçada pelo Deus Neptuno e lhe pede que a transforme em homem, o que realmente acontece. De resto, uma das figuras femininas da Diana, Felismena, tem um destino parecido: por causa dum dom da deusa Atene será uma guerreira temida que lhe possibilita um desfecho amoroso pouco ortodoxo: vendo o seu amado infiel envolvido numa batalha de cavaleiros, salva-lhe a vida com as suas flechas à maneira de uma ninfa ou de uma amazona.

Já o próprio método da pseudo-narração feminina coloca a questão: qual a razão de um escritor se apresentar sob disfarce de mulher? Qual o significado disso em relação à estética da dor?

Trata-se de uma problemática muito debatida entre os medivistas já que tanto na poesia galego-portuguesa como na dos Minnesänger existe o fenómeno de lirismo pseudo-feminino. Na Península Ibérica esta parece ter uma tradição árabe e judáica na medida que os primeiros fragmentos de língua románica na Península são as charjas, caudas de poemas em árabe ou hebráico, chamados moaxajas. Embora o poeta do séc. XVI não tinha conhecimento directo destas obras, tal como não conhecia o cancioneiro galego-português, é-lhe transmitido a tradição pelo menos em base popular - do qual facto certos trechos nas peças de Gil Vicente são testemunhos escritos. Sem querer entrar mais profundamente nesta questão, podemos afirmar que assumir uma identidade literária de sexo oposto não é nenhuma excentricidade nos séculos XV e XVI.

Mais interessante será questionar as razões. Uma delas poderá ser exactamente o problema das identidades, o problema de disfarce da verdadeira identidade. Não só no âmbito da mudança de sexo, mas também, na mudança de traje que simboliza a mudança de pertença social, estas novelas abundam em exemplos. Bimarder deixa de ser cavaleiro para assumir a identidade pastoril por causa da traição do serviço de Aquelísia, que no entanto, nunca foi um serviço de amor. Muda de nome para mudar a identidade, ainda que o resultado é contrário daquilo que ele queria. Semelhante disfarce ocorre na Diana: Felismena adopta o traje de pastora embora seja uma guerreira. Mas, voltando à problemática da mudança de sexo, esta pode ter significado positivo e negativo. Uma mulher em disfarce de homem ou transformando-se em homem (como é o caso de Gracia Nasi) é um sinal de grande honra. No entanto, quando o disfarce é de mulher, como é o caso de Arnalte e de Rosiano, o efeito pode ser cómico. Assumir o papel de mulher no caso de Reinoso e de Bernardim, adaptando a pseudo-narração feminina porém não parece minguar o valor das suas personalidades já que assumem uma identidade próxima ao divino: a da mulher sábia.

O cómico e o irónico na tristeza

É uma questão extremamente interessante o infiltramento do ridículo nas novelas de resto tão trágicas e tristes. Às vezes não é fácil detectar os pontos irónicos numa narrativa que se quer apresentar de extrema tristeza, ainda por cima, quando se trata de textos que reflectem sensibilidades muito diferentes das nossas. Mas, observando bem os pormenores, descobrimos cenas cómicas tanto no Clareo y Florisea como na Diana, e até numa das novelas de Diego de San Pedro. No Clareo y Florisea a insistência de Isea para com Clareo em matéria de consumar finalmente o seu casamento (o que não chega a ser feito) é tão indigna de a uma senhora de novela sentimental que chega a ser cómica, especialmente porque Isea, de resto, se caracteriza a si própria como uma personagem extremamente triste, seguindo as pegadas da Menina de Bernardim, ainda que usando uma história bizantina de triângulo e depois, com o reaparecimento do marido julgado morto, de quadrângulo amorosos. É um quadrângulo amoroso que presenciamos também na Diana, assumido como cómico pela própria narradora, Selvagia destes amores. O episódio do encontro dos quatro enamorados dos quais nenhum ama aquele por quem é amado, pode chamar-nos à lembrança o Um Sonho de Verão (Midsummernight Dream) de Shakespeare. Outro episódio, especialmente porque se encontra no fim de Diana, nos chama a atenção pelo seu tom irónico: Sireno, já “curado” e Silvano que por intercessão da magia se apaixonara por outra pastora, na condição de antigos admiradores de Diana cantam um dueto, transpondo-se a um tempo passado, quando ainda os sentimentos daquela canção eram verdadeiros... Fingem portanto uma paixão que já é inválida e imitando a si próprios com a versão irónica das suas cantigas antigas, parecem ferir mortalmente a sensibilidade de Diana, que, depois de os ouvir, de afasta sem dizer uma palavra, numa atitude tão digna como a de Bimarder. Desta maneira o uso de ironia consegue reforçar a tristeza, a estética da dor da novela: não terá este episódio uma mensagem para o próprio autor que se identifica com Sireno na medida de se tornar indigno a qualquer desfecho positivo e qualquer continuação posterior dos seus amores?

Tal como Sireno se revela um falso enamorado, não pelas suas condições existenciais mas pelo facto de se entregar ao esquecimento do amor e através disso, da identidade, o Arnalte de San Pedro também dá sinais de falsidade como já temos mencionado. No âmbito do ridículo/grotesco, R. Langbehn-Rohland [37] considera-o um personagem implicitamente cómico, por exemplo pelo facto de ele se disfarçar de mulher quando se aproxima pela primeira vez de Lucenda. Neste contexto temos que remeter à questão do papel das mudanças de sexo e disfarces acima referida. Mas, como temos referido, Arnalte é um falso cavaleiro [38] , portanto os seus comportamentos cómicos não o descredibilizam mais do que as suas outras atitudes indignas.

A importância que as mulheres disfarçadas ou não, assumem nestas novelas, às vezes tornam os homens, os heróis de sempre cómicos ou simplesmente pouco significantes. É isso que acontece no desfecho feliz dos amores de don Felis e Felismena: a última salva a pele do seu amado infiel numa cena contrária às tradições de cavalaria que coloca o papel do homem em séria questão. Descobrir efeitos cómicos na Menina e Moça seria impossível. A não ser que consideremos as partes apócrifas relevantes o que Enrique Morena Báez faz erroneamente no seu prólogo à Diana quando fala no charco produzido pelas lágrimas de Aquelísia. A Menina e Moça autêntica não traz qualquer pormenor que pudesse ser considerado ridículo, no entanto, apesar da sua estética carregada de dor e tristezas, consegue mostrar episódios de ternura e tranquilidade impressionantes (basta pensar nos episódio entre Belisa e Lamentor e entre Aónia e Bimarder e na cena do maioral com os seus cães) que aliviam a sensação de extremo desespero que na maior parte das vezes caracteriza a novela. Outra novela de tom muito sério é o Naceo e Amperidónia que, no entanto, parece conter frases irónicas provenientes de Naceo, especialmente em relação à religiosidade de Amperidónia como já temos visto (cena de Paixão).

A obra mais especial deste ponto de vista é naturalmente A Celestina, já que mistura o cómico com o trágico de uma maneira nunca vista. Embora nos possa lembrar a certos métodos de Shakespeare (há algum paralelismo entre a Celestina e o Romeo e Julieta não só na medida de a história tratar a problemática amorosa e suas graves consequências, mas também na maneira de misturar cómico e trágico até dentro dos próprios personagens, ainda que no Romeo e Julieta os protagonistas nunca sejam vítimas de ridicularização séria, enquanto a parelha amorosa de Calisto e Melibea não seja isenta disso), é de uma complexidade maior e por isso, de mais difícil interpretação. Mas, tal como no caso de Arnalte, podemos arriscar a afirmação que poder ridicularizar o cavaleiro é um sinal da falsidade do cavaleiro – Calisto apenas imita os comportamentos obrigatórios no amor cortês, tal como Arnalte o faz – sem perceber o seu conteúdo.  De resto, o efeito cómico em Rojas está sempre ligado à tragédia: o autor coloca palavras proféticas nas bocas dos seus personagens em situações ridículas cuja importância só se vem a revelar no decorrer da acção, tal como acontece com a maldição brincalhona de Alisa em relação a Sempronio que se revela uma previsão profética (ou uma maldição com efeito) [39] .

Embora não aconteça obrigatoriamente, o cómico nas novelas sentimentais pode servir como instrumento de caracterização de personagens (por exemplo: falsidade) e às vezes até pode funcionar como reforço da própria estética da dor, relevando a tristeza e a angústia que se escondem no fundo do conceito do ridículo e do irónico.

Novela sentimental – novela dos conversos?

Tal como Marcel Bataillon [40] , também Américo de Castro [41] suspeita que há algo atrás da profunda melancolia e tristeza deste género ibérico que se afastou bastante das suas origens italianas. [42] Talvez não seja uma mera coincidência que em relação a todos os autores das novelas sentimentais se levantam suspeitas de judaísmo, ou seja, de origens judaicas: começando pelo castelhano Diego de San Pedro [43] , continuando por Fernando de Rojas [44] e Bernardim Ribeiro [45] e acabando por Alonso Nuñez Reinoso [46] . Em relação ao caso de Jorge de Montemayor, Enrique Moreno Báez, na sua edição de Los Siete Libros de la Diana [47] é muito cauteloso em afirmar qualquer coisa que seja neste sentido, para ele, a melancolia é simplesmente lusa e não judaica [48] - isso explicar-nos-ia o fenómeno da Menina e Moça de Bernardim e da Diana de Montemayor (embora a última seja uma novela pastoril), mas nem San Pedro, nem Reinoso se enquadram na categoria "alma portuguesa", tendo sido nascidos em Espanha. Quanto à novela portuguesa de autor desconhecido, podemos partir do princípio que também é obra de um converso ou até de um judaizante já que por causa das circunstâncias descritas no início: o facto de ser uma guerra do Turco em que os dois cavaleiros de nação portuguesa participam remete à grande emigração judaica para o Império Osmano, o facto de eles não poderem voltar para Portugal e serem agravados pela pátria, faz-nos concluir que saíram em condições hostis e o seu regresso é perigoso, o facto de o herói da história ser desterrado, mas mesmo assim ter muitos parentes em Portugal, leva-nos à conclusão que pertence à comunidade dos judeus eternos exilados que no entanto têm as suas comunidades bem definidas, etc.

Considerar que as novelas sentimentais, pelo menos grande parte delas são produções de conversos, às vezes de conversos de 2ª, 3ª, 4ª geração, não quer dizer que consideremos que todas estas obras contenham mensagens judaizantes. Mas, mesmo o exilado Reinoso que se podia sentir em relativa segurança (ainda que a Itália oferecesse uma segurança precária), não assume a sua reconversão, se tal realmente aconteceu, abertamente. A sua narração contém mensagens codificadas, talvez de não muito difícil acesso para os seus contemporâneos, mas: tendo em conta o seu eterno desejo de um dia poder regressar à sua amada Espanha e de conseguir que o seu livro seja lido por aqueles lados, percebemos que nem ele podia expor a problemática judaica de uma maneira aberta. Isso coube a pessoas que não só viviam fora da Península Ibérica mas eram completamente desenganados em relação ao futuro do povo judaico em Sepharad: tal como eram os irmãos Usque, primeiros editores da Menina e Moça.

Tenham sido judaizantes ou não, todos os conversos devem ter guardado um grande rancor dentro deles e muitos até um sentimento de vergonha, por não terem seguido o exemplo de certos judeus que recusaram o baptismo forçado e se suicidaram, por não ter tido a força suficiente para abandonar a Península quando as fronteiras se tinham aberto, por terem renunciado a uma tradição de vários mil anos pela qual os seus antecessores morriam, por terem perdido a sua própria identidade, a aliança com Deus... Mas, tinham que guardar as aparências. Não podiam revelar nada desses sentimentos sem correr o risco de terem represálias severas.

Provavelmente haverá várias fases de consciência e sensibilidade conversas. Alguns textos são mais carregados com estes sentidos encobertos (principalmente a Menina e Moça e o Clareo y Florisea, mas também o Naceo e Amperidónia), outros têm apenas reflexos fracos (como é o caso da Diana), mas  a problemática central da fidelidade e abandono de ser verdadeiro ou ser falso e da necessidade de disfarce está presente em todas estas obras.

O caso da Menina e Moça parece-nos especialmente relevante - caso este aliás, em opinião de todos impossível de solucionar. O grande mistério desta obra começa já pelo mistério que rodeia o seu autor: um homem que já recebeu uma biografia pormenorizada falsificada [49] , que é citado por muitos contemporâneos seus, mas praticamente sempre disfarçado [50] , alguém que conhecemos tanto como Homero e Shakespeare - nem sequer sabemos se realmente se chamava assim ou usou um pseudónimo. Segundo Marcel Bataillon o nome Bernardim talvez seja já em si uma citação, uma reminiscência. [51] Em nenhuma outra obra o disfarce assume um papel tão relevante, em nenhum outro escritor podemos observar uma luta tão dura interior e uma angústia tão omnipresente como neste desconhecido chamado Bernardim. O mistério também é reforçado pelo facto de a Menina e Moça não ter dedicatória que noutros casos ajuda na decifragem das mensagens. O facto é extremamente estranho porque quase todas as obras da época tinham dedicatória, como nossos exemplos podem servir os textos analisados: San Pedro dedica uma das suas novelas a Don Diego Hernández, a outra às damas da Rainha, Reinoso a Juan Micas ou melhor, João Nasi e encobertamente a Dona Gracia Nasi, grande protectora dos judeus desterrados [52] , como também o faz Samuel Usque mais abertamente, Montemayor a Don Joan Castella de Vilanova, etc., no entanto a Menina e Moça começa in medias res: “Menina e moça me levaram...” [53]

De todos os aspectos da estética da dor, aquele que parece ter mais ligação às tradições judaicas e tem mais actualidade nas determinadas circunstâncias do séc. XVI é o desterro, o exílio. Falámos neste tema já no início do nosso estudo, não referindo porém, qual a importância deste tema na vida dos conversos. O desterro pode ter vários níveis: um nível espiritual, um nível existencial e um nível político. No nível espiritual o ser humano foi expulso do Paraíso, da presença de Deus: esta experiência é comum a judeus e cristãos. Mas, a ideia de a Terra ser um exílio absolutamente material e negativo, caracteriza especialmente o gnosticismo, doutrina, de resto, bem patente na obra de Bernardim. O desterro existencial por sua vez é o desdobramento do eu que se pode realizar com o surgimento do amor, quando a amador perde a identidade para assumir a do ser amado. No entanto, se este amor é impossível, a perda de identidade, o desterro interior torna-se permanente – isso sucede também com a pessoa que abandona a sua religião sem conseguir acreditar na outra, o que é uma problemática específica dos conversos. O exílio político reforça estes dois desterros já identificados, ainda por cima porque é um exílio duplamente vivido: para o judeu, estar fora de Jerusalém é uma forma de exílio meio real, meio espiritual, no entanto, que tem razões políticas, não pode ser contestado. Ao longo da história de judaísmo os exílios e os reencontros com a terra prometida sucedem-se. No séc. XVI porém, aqueles que decidem auto-exilar-se da Península Ibérica, temendo o exílio existencial, vivem uma realidade de duplo exílio político/geográfico. É isto que observamos em Reinoso e no poeta lusitano, Diogo Pires que se assume ao longo de toda a sua vida como português. De resto, o sentimento de pertença dos judeus exilados da Península é tão forte por exemplo no nível linguístico que até ao nosso século estas comunidades sefarditas ainda conservam uma língua românica chamada ladim. Nas comunidades judaicas de Amsterdão, antes da tragédia da 2ª guerra mundial, ainda se falava português! E não é por acaso que Samuel Usque escreve a sua grande obra, a Consolaçam, em português, porque foi esta a língua que mamou! [54]

Ainda em matéria de exílio, é interessante a popularidade do já citado Psalmo Super flumina Babylonis que não só tem uma paráfrase escrita por Camões, mas também uma de Montemayor [55] . Trata-se de um psalmo cujo tema principal é o exílio, tal como Babilónia foi palco de um dos maiores exílios do povo judaico. E, se o tema do desterro começa por interessar os conversos ou exilados de origem judaica, ao longo deste século dos descobrimentos torna-se um tema actual também para os cristãos velhos, embora por outras razões.

Além do exílio, também outros motivos da novela sentimental têm larga tradição na literatura judaica: a necessidade de esconder a verdadeira identidade, o disfarce, por exemplo é uma experiência mitologizada na história da rainha Ester que se torna salvadora do seu povo, ameaçado de morte [56] , depois de revelar ao rei que também é judia, facto anteriormente encoberto. Outra história bíblica bem presente nestes tempos é a de Job, o homem sofredor que questiona Deus acerca das razões da sua miséria. Também é isso que faz Samuel Usque na sua Consolaçam, em que aparecem três personagens anagramáticos em disfarce pastoril - disfarce tão querido nalgumas obras sentimentais. Pinharanda Gomes [57] acha por exemplo que a parte pastoril da Menina e Moça não é tanto pastoril no sentido bucólico, mas pastoral, no sentido bíblico - no sentido adoptado pela Consolaçam. Realmente, o maioral dos pastores acerca de quem a própria narradora diz que parecia mais que pastor, pode ser encarado como um anjo, ou algo com funções parecidas, já que os seus conhecimentos vão muito além dos de um simples pastor, ainda que em contexto bucólico, de um simples cortesão. É interessante que na já invocada obra de Hermas, que tem por título Pastor, o anjo que explica as visões todas e transmite a sabedoria essencial, também aparece em forma de pastor. Sendo assim, os pastores das novelas sentimentais e pastoris não são apenas herdeiros do bucolismo da Antiguidade (Teócrito, Vergílio, Calpúrnio Siculo, etc.) e da narração pastoril italiana (Boccaccio, Sannazzaro), mas também duma tradição pastoril bíblica que por sua vez também tem duas vertentes: por um lado, a do Antigo Testamento (já que o povo judeu durante a maior parte da sua história tinha sido um povo de pastores, não é de estranhar que a figura de Deus apareça também simbolizado na figura do pastor: Psalmo: O Senhor é o meu pastor), por outro lado, a do Novo Testamento que nos apresenta os pastores reais da época na narração natálica (é esta vertente que será aproveitada por Juan de Encina e também Gil Vicente) e que continua o paralelo Deus-pastor na história do Bom Pastor, identificando-o com Jesus. Todas estas tradições de abordagem do tema pastoril/pastoral podiam entrar no ambiente sentimental - mas, o que verificámos que a vertente cristã não aparece em nenhuma delas. O único tema relacionado com Cristo que é mencionado é o tema da Paixão - e aqui é que encontramos novamente uma da  importância crucial da estética da dor. Já vimos a atitude do narrador do Naceo e Amperidónia a este respeito. Mais intrigante é a grande excurso poético-religioso do falso cavaleiro, Arnalte na segunda novela de Diego de San Pedro: trata-se dum canto em honra da Virgem na sua forma Pièta, ou seja, na tradição da Stabat mater. Arnalte canta a história das paixões (sofrimentos) da Virgem para esquecer das suas próprias tribulações, mas, ao mesmo tempo, insinua um paralelo entre a vida de Maria e os seus tormentos amorosos. Considerando Arnalte um falso cavaleiro e mais: uma figura cómica que se aproveita exactamente dos lugares sagrados (igreja, confessionário) para atingir os seus fins passionais, não será prudente olhar para este poema de Paixão com alguma desconfiança?

Há muitos motivos nas novelas sentimentais e nas obras de estética parecidas que justificam a nossa desconfiança em relação às mensagens e significados. Tal como no caso da poesia trovadoresca, especialmente na sua vertente trobar clus, deliberadamente hermética, no género sentimental também estamos perante conteúdos codificados que nem sempre podem ser desvendados por completo. É provável que nunca haja um consenso total em relação a estas obras, mesmo só em relação à Menina e Moça é impossível conseguir resolver a maior parte dos mistérios. Mas o caminho mais acertado parece-me situar-se nesta linha da literatura conversa, pelas muitas razões acima referidas.



[1] Américo Castro, España en su historia, Buenos Aires, 1948, p. 576

[2] "Sempronio: Digo que nunca Dios quiera tal: que es especie de heregía lo que agora dixiste. / Calisto: ¿Por qué? / Sempronio: Porque lo que dices contradice la christiana religión. / Calisto: ¿Qué a mí? / Sempronio: ¿Tú no eres christiano? / Calisto: ¿Yo? Melibeo soy y a Melibea adoro, en Melibea creo y a Melibea amo.", Fernando de Rojas, La Celestina, Comedia o Tragicomedia de Calisto y Melibea, Edición de Peter E. Russel, Clásicos Castalia, Madrid, 1991, Acto primero, cena 2ª, p. 220

[3] A primeira edição de La Celestina ainda usa o termo “comédia”, depois fica “tragicomédia” que realmente parece justificado pelo trágico desenlace da história. Por outro lado, há quem considere La Celestina uma novela, por exemplo: Dorothy Severin, Is La Celestina the first Modern Novel?, Revista de los Estudos Hispánicos, IX, 1982

[4] Vejam-se os poemas amorosos do Cancionerio Geral de Garcia Resende, por exemplo Marqués de Santilhana, Duarte de Brito, o próprio Bernardim, etc.

[5] Bernardim Ribeiro, Menina e Moça ou Saudades, Introdução e fixação do texto de Hélder Macedo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990, p. 66

[6] [6] Ibidem

[7] Hélder Macedo, Do Significado Oculto da Menina e Moça, Editores Moraes, 1977

[8] Agradeço esta ideia a Prof. Gyula Rugási por me ter chamado a atenção para o paralelo existente entre as duas obras.

[9] Cito em tradução francesa: “Éloigne de toi, dit-il, la tristesse, car elle est soeur du doute et de la colère... Ces deux attitudes attristent lésprit: le doute, parce qu’il échoue dans ce qu’il entreprend, la colère, parce qu’elle fait le mail.” Hermas, Le Pasteur, ... pp. 187-189

[10] Cito aqui a conversa dos dois segundo a tradução espanhola: "-¿Quién es, pues? - le dije. / - La Iglesia - me contestó. / - ¿Por qué entonces - le repliqué yo - se me apareció vieja? / - Porque fué creada - me contestó - antes que todas las cosas. Por eso aparece vieja y por causa de ella fué ordenado el mundo." Vis. 2., 4,1, in: Prof. Johannes Quasten, Patrologia I, Hasta el consilio de Nicea, ed. Española prep. por Ignacio Oñatibia, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, MCMLXI, p. 104

[11] Alonso Nuñez de Reinoso, Los Amores de Clareo y Florisea y los Trabajos de la sin Ventura Isea, Edición, introducción y notas de Miguel Angel Teijeiro Fuentes, Universidad de Extremadura, 1991, p. 67

[12] Judah Abranavel (1460-1525), filho de Isaac Abravanel (1437-1508) nasceu em Lisboa e viu-se desterrado, tal como muitos judeos, na Itália. Teixeira Rego quis identificá-lo com Bernardim Ribeiro (José Teixeira Rego, Estudos e Controvérsias, 2ª série, Faculdade de Letras, 1931), sem êxito.

[13] Jorge de Montemayor, Los Siete Libros de la Diana, Edición, prólogo y notas de Enrique Moreno Báez, Real Academia Española, Madrid, 1955, p. 193

[14] Expressões que figuram no início de Naceo e Amperidónia: ed. de David Hook, Naceo e Amperidónia: A Sixteenth-Centhury Portuguese Sentimental Romance, in: Portuguese Studies, I, Londres, 1985, p. 22-23

[15] “Es decir que si para los unos el amor es virtud cognoscitiva, para los otros es enfermedad del alma, que en muchos casos lleva a la muerte.” Prólogo da edição de Diana de Jorge de Montemayor, op. cit, p. XVII

[16] Essa é a interpretação de Maria Paula Lago, em: Naceo e Amperidónia – Estatuto da Novela Sentimental do Séc. XVI, Angelus Novus Editora, Braga – Coimbra, 1997, ela diz: “sugestiva imagem eucaristica amorosa” (p. 44)

[17] Ideia de Peter E. Russel, mencionada no prólogo à edição da Celestina: Fernando de Rojas, Comedia o Tragicomedia de Calisto y Melibea, Edicion de Peter E. Russel , Clásicos Castalina, Madrid, 1991

[18] Por isso, apesar de algumas vezes ser possível a identificação de certas personagens das novelas com personagens reais, não me parece muito frutífero seguir esse caminho que também no caso da Menina e Moça foi demasiadamente tentador, já que estas identificações não nos ajudam muito no entendimento das mensagens dessas obras (embora considere o Clareo y Florisea um caso excepcional) e talvez possam estorvar outros caminhos mais interessantes.

[19] João Palma Ferreira afirma que o pastoralismo português, embora obedeça a um gosto “classicizante”, em certos autores pouco tem a ver com as tradições clássicas: refere-se especialmente a Usque e à “sentimentalidade da novela berdarnina” que diz ser “muito afastada do bucolismo propriamente dito”. (João Palma Ferreira, Temas de Literatura Portuguesa, Editorial Verbo, Lisboa, 1983, p. 97. Na minha opinião, estes dois não são os únicos autores em relação aos quais se pode dizer isso.

[20] Ideia que remete à imagem do Psalmo Super flumina Babylonis que o mesmo Montemayor também parafraseou (El Segundo Cancioneiro espiritual de Iorge de Monte Mayor, Anvers, 1558), como mais tarde o fez Camões. Sobre este tema veja-se o artigo de Marcel Bataillon: Études sur le Portugal au Temps de l’Humanisme, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português, Paris, 1974

[21] Jorge de Montemayor, Los Siete Libros de la Diana, Edición, prólogo y notas de Enrique Moreno Báez, op. cit., pp. 146-147

[22] Quintus Horatius Flaccus, Carminum Liber I, XXII, 1º verso

[23] Quem mais pode representar a esfera divina é realmente a figura de Arima na Menina e Moça. Na Diana porém a própria Diana parece ter pelo menos três identidades: a deusa da caça aparece como escultura no alto, a Lua dá luz na escura noite quando Belisa relata a sua história triste e a Diana pastora – mulher terrena é uma mulher semelhante a Aónia, amada de Bimarder: alguém que não foi capaz de desempenhar o seu papel redentor na vida do seu amado, Sireno.

[24] “Merece la pena subrayar la importancia que las descripciones iniciales en una y outra novela, tienen, el paisaje es, también, alegoría del amor frustrado o no correspondido.” em: Prólogo de José Francisco Ruiz Casanova, à edição de Diego de San Pedro: Cárcel de amor / Arnalte y Lucenda / Sermón, Catedra – Letras Hispánicas, Madrid, 1995, p.38

[25] Diego de San Pedro: Arnalte y Lucenda, em: Diego de San Pedro: Cárcel de amor. Arnalte y Lucenda. Sermón, ed. op. cit., p. 234

[26] Fernando de Rojas, La Celestina, op. cit., decimonono auto, cena 3ª, p. 570

[27] Não só foi parafraseada por Camões e Montemayor, mas também está presente na Consolaçam de Samuel Usque: “...daa licença aos rios que daltas montanhas com espantoso rumor vem quebrar suas escumosas aguas em baixo, que detendo o seu arrebatado passo, com manso e lamentoso riodo acompanhem o continuo curso de minhas lagrimas...”, Samuel Usque, Consolaçam às Tribulaçoens de Israel, Ferrara, 1553 (reimpr. por Mendes dos Remedios, Coimbra, 1906), I, folio II r.

[28] Psalmus 68:1-4 “Salvum me fac, Deus, / quoniam intravenerunt aquae usque ad animam meam. / Infixus sum in limo profundi et non est substantia. / Veni in altitudinem maris; et tempestas demersit me...” citado por Alan Deyermond, no seu artigo: Old Testament Elements in Two «Cantigas de Amigo», in: Studies in Portuguese Literature and History in Honour of Luís de Sousa Rebelo, ed. by Helder Macedo, Tamesis Book Limited, London, 1992

[29] Este paralelo é destacado por Alan Deyermond, ibidem

[30] “Si je retiens ce seus, la terre, loin de manifester de la compassion envers l’ami, se comporte en tyran inacessible à la pité... La terre est donc bien plus qu’un simple mot dans Menina e Moça, c’est une véritable obsession. Le drame de Bernardim Ribeiro est peut-être d’avoir une conscience si vive de l’absurdité de la condition humaine, de l´écrasante solitude de l’homme sur la terre, qu’il lui est difficile d’admettre, comme la plupart de ses contemporains, que notre monde est gouverné par une divinité miséricordieuse.” opinião de Anne-Marie Quint-Abrial: Reflexions sur quelques ambiguïtes de la Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, em: Arquivos do Centro Cultural Português, XXIII – 1987, pp. 499 e 503. Esta explicação porém não parece resolver a questão.

[31] Tanto na IVª écloga como no Romance «Ao longo duma ribeira» de Bernardim, o deserto, o lugar solitário é procurado pelo eu poético como possível sítio de acontecimentos espirituais, sendo este uma atitude mais “à moda” do Antigo (e Novo) Testamento do que à moda do Cristianismo do séc. XVI. Embora no bucolismo este comportamento seja largamente conhecido, normalmente se liga mas a uma problemática já tratada por Virgílio e Horácio e, no séc. XVI, por Sá de Miranda: trata-se do afastamento do poeta por razões políticas/moralizantes: neste sentido o eu poético encontra aquela justiça e paz no seio da natureza que não conseguiu encontrar na cidade ou na corte.

[32] Não concordo com a opinião de Maria Paula Lago que associa este tempo ao amor divino: “Por outro lado, a referência à Paixão não deixa de ecoar uma estética petrarquiana do amor profano como integrando, em várias dimensões, o próprio amor divino...” estudo op. cit., p. 71

[33] Naceo e Amperidónia, op. cit., p. 31

[34] Ibidem

[35] Jorge de Montemayor, Los Siete Libros de la Diana, Prólogo, edición y notas de Francisco López Estrada, Espasa-Calpe S.A., Madrid, 1946, Prólogo, p. LXII

[36] Veja-se o artigo de Marcel Bataillon, Alonso Nuñez de Reinoso y los marranos portugueses en Itália, Varia Lección de Clásicos Españoles, Madrid, Gredos, 1964, p. 73

[37] “La singularidad de los encuentros entre Arnalte y Lucenda (la primea vez, disfrazado el caballero de mujer; esta segunda, escondido en un confesionario) son algunas de las razones por las que R. Langbehn-Rohland mantiene que Arnalte es un personaje cómico.”, Diego de San Pedro, Arnalte y Lucenda, op. cit., nota de José Francisco Ruiz Casanova, p. 203

[38] Também é esta a interpretação de Cristina Almeida Ribeiro, veja-se: Diálogo em Presença e Diálogo na Ausência nas Novelas de Diego de San Pedro, em: Literatura Medieval – Vol. II, Actas do IV Congresso da Associação Hispânica da Literatura Medieval, Lisboa 1-5 de Outubro 1991, Edições Cosmos, 1993

[39] É P. E. Russel que chama a nossa atenção a esse facto no seu Prefácio à Celestina: Fernando de Rojas: Comedia o Tragicomedia de Calisto y Melibea, op. cit.

[40] "Quien procure interpretar estas novedades acudiendo a la sensibilidad neo-cristiana del autor há de pensar no sólo en la desazón de los cristianos peninsulares, sino en la multisecular herencia de melancolía del pueblo judío, adiado en la amrgura del destierro..." Marcel Bataillon, ¿Melancolía Renascentista o Melancolía Judía?, in: Vara Lección de Clásicos Españoles, Madrid, Gredos, 1964, p. 40

[41] Ver 1ª nota

[42] Considera-se a Fiammetta (Elegia di Madonna Fiammetta) de Boccaccio um precursor das novelas sentimentais, embora Maria Paula Lago no seu livro (op. cit.) também enquadre as traduções das Heroides de Ovídio feitas por Afonso X e Juan Rodriguez del Padrón neste sentido.

[43] Sobre a sua origem: E. Cotarelo, Nuevos y curiosos datos biográficos del famoso trovador y novelista Diego de San Pedro, in: Boletín de la Real Academia Española, XIV, pp. 305-326. A edição das suas obras que consultámos  (op. cit.) não faz referência a esta suposição.

[44] Fernando de Rojas foi um converso da 4ª geração como nos informa Peter E. Russel na sua edição, mencionando o facto de o escritor se ter casado com uma conversa (Leonor Álvarez de Montalbán), cujo pai foi duas vezes processado pela Inquisição. Sobre a sua condição de converso Russel escreve assim: “A pesar de la aparencia de una vida tranquila y relativamente próspera de burgués profecional y de católico español de la época de Carlos V que estos datos parecen confirmar, sin duda tienen razón los estudiosos modernos que nos recuerdan que, como cristiano nuevo y con un suegro que todos sabían había sido condenado dos veces por la Inquisición, Rojas siempre debía estar receoso de que un azar imprevisible o una denuncia injustificada viniera un día a hundir todo el edificio de su vida.”, Fernando de Rojas, Comedia o Tragicomedia..., ed. op. cit., Prólogo de Peter E. Russel, p. 35

[45] No caso de Bernardim Ribeiro há ainda polémica, muitos estudiosos até optam por evitar a questão por não a considerar relevante. Segundo os nossos conhecimentos adquiridos até agora não há dúvidas acerca da origem de Bernardim, pelo discurso que apresenta nas suas obras tem que ser de origem sefardita.

[46] Veja-se o artigo de Marcel Bataillon, Alonso Nuñez de Reinoso y los marranos portugueses en Itália, op. cit.

[47] Prefácio da edição: Jorge de Montemayor, Los Siete Libros de la Diana, Edición, prólogo y notas de Enrique Moreno Báez, op. cit.

[48] Acerca da suposta origem judaica de Montemayor veja-se: Marcel Bataillon, Études sur le Portugal au Temps de L’Humanisme, op. cit., p. 169

[49] Sobre este tema veja-se: J. Costa Pimpão, Bernardim Ribeiro - Uma fraude documental, in: Biblos, XVI, 1940

[50] Francisco de Sá de Miranda faz referência a ele com anagrama, Reinoso chora-o (provavelmente) a ele quando chora a morte duma ninfa (Capítulo XXI), Fernão Álvares do Oriente também se refere a ele (ao meu ver) na sua obra A Lusitânia Transformada quando fala de dois mestres seus e até o chama de Ribeiro.

[51] Artigo op. cit. (Alonso Nuñez de Reinoso), Marcel Bataillon acha possível que Bernardim não se tenha chamado assim e apenas adoptou o nome que figura no fim dum Romance Castelhano incluído no Cancioneiro de Romances de Amberes (folios 258-259)

[52] Samuel Usque dedica a sua Consolaçam às Tribulaçoens de Israel também a esta senhora nascida em Lisboa que acabou desterrada em Constantinopla

[53] Não só a novela bernardina, mas as éclogas também carecem de dedicatória – embora outros poetas tenham tido o costume de endereçar as suas obras a pessoas altamente colocadas, como faz por exemplo Sá de Miranda. A falta de dedicatórias na obra de Bernardim é realmente algo bastante estranho e ainda não explicado (embora não deixe de ser, nos nossos olhos modernos, muito simpático).

[54] “Algûs señores quiserom dizer antes que soubesem minha razam, que fora milhor auer cõposto em lingoa castelhana, mas eu creo que nisso nam errey, por que sendo o meu principal yb«ntento falar cõ Portugheses e respresentando a memoria deste nosso desterro buscarlhe per moitos meos e longo rodeo, algum aliuio aos trabalhos que nelle passamos, desconueniente era fugir da lingoa que mamey...” Samuel Usque, Consolaçam às Tribulaçoens de Israel, op. cit.* iii

[55] "Sobre los ríos tristes nos sentamos / de Babilonia, a quien com nuestros ojos / la impetuosa corriente acrecentamos. / Alli mil desconsuelos, mil enojos / nos dieron a entender muy claramente / que de la guerra fuimos los despojos. / No vimos de los ríos la corriente, / no del alta arboreda la verdura, / que a la tristeza vimos solamente." El Segundo cancioneiro espiritual de Iorge de Monte Mayor, Anvers, 1558

[56] A história da rainha Ester foi muito popular nesta altura entre os judaizantes, como o prova o facto de Salomón Usque ter escrito uma tragédia bíblica acerca dela

[57] Pinharanda Gomes, História da Filosofia Portuguesa, Porto, Lello & Irmão, 1981, 1º vol. –A Filosofia Hebraico-portuguesa