Agraphoi Nomoi

 

Gilda Naécia Maciel de Barros
Universidade de São Paulo - gnmdbarr@usp.br

 

A expressão ‘agraphoi nomoi’ comumente é entendida como ‘leis não escritas’ e a primeira lembrança que nos vem à memória refere-se ao famoso passo da tragédia de Sófocles (Antígona 450-59).[1] Nessa peça Antígona desafia determinações de Creonte, o chefe de Tebas, presta honras fúnebres a Polinices, seu irmão, morto em combate com Etéocles, em disputa pelo poder na cidade. A jovem princesa justifica seu ato alegando obediência a normas divinas, eternas e intocáveis, superiores, em seu valor imperativo, à proclamação do rei.[2]

Todavia, embora encontre nessa obra literária uma das mais oportunas e repetidas referências - como se falaria de agraphoi nomoi sem considerar a ‘Antígona’? - a questão em exame comporta um complexo de problemas de grande abrangência, quer consideremos a cultura grega antiga do ângulo histórico ou filosófico.[3] Vamos, a seguir, levantar alguns aspectos mais significativos da matéria.

A crítica a esse respeito depende do famoso estudo do início do século, de Rudolf Hirzel (Themis, Dike und Verwandtes - Ein Beitrag zur Geschichte der Rechtsidee bei den Griechen, Leipzig: Verlag von S. Hierzel, 1907), para quem ‘ágraphoi nomoi’ teria basicamente dois sentidos: 1) costume (ethos) ou direito consuetudinário (Gewohnheitsrecht); 2) direito natural (“die bei allen Menschen geltenden Naturgesetze”). Desde então Hirzel tornou-se, como bem observa Alberto Maffi[4], communis opinio e fonte de consulta obrigatória, da qual partem sempre os estudos posteriores, seja para reafirmá-lo[5] seja para complementá-lo -[6] acomodando-se nessa última orientação, na mesma década, os trabalhos, por exemplo, de J. de Romilly (1971) e M. Ostwald (1973).

J. de Romilly procurou submeter o tema ao crivo da historicidade, e, desde então, não é mais possível falar em agraphoi nomoi sem considerar sobretudo a própria idéia de nomos no contexto de uma evolução cultural.

Dessa perspectiva, caberia distinguir dois momentos - no primeiro, a lei não escrita funda a ordem humana ou a completa, e esta é, de certa forma, um reflexo daquela, e entre ambas a relação é de continuidade. Testemunhos dessa fase encontram-se em Hesíodo (Erga 276), nos círculos órficos (fr. 64), em Ésquilo (Suplicantes v. 673); em Heráclito, (fr. 114; Do Regime I, 11).

Num segundo momento dá-se uma solução de continuidade, a ruptura e oposição, com superioridade para a lei não escrita, que aparece fundamentada na religião ou na moral. Ilustrações desse estágio encontram-se em Sófocles - Rei Édipo, Ájax e sobretudo Antígona (450 et sqs), em Xenofonte, Memoráveis IV, 4, 19, entre outros. Um ponto seria comum a ambos os momentos: de origem divina ou não, as leis não escritas apresentam-se com maior amplitude do que as leis escritas. Diferenciam-se sempre dos costumes, daquelas leis comuns marcadas pela relatividade uma vez que se destinam a um determinado grupo social.[7]

Aprofundando e retomando a questão, Ostwald iria iluminar os vários contextos em que se inserem as expressões agraphoi nomoi ou agrapha nomima, por sua vez considerando o tema irredutível à dicotomia proposta por Hirzel.[8]

Do ponto de vista etimológico, lembra Guthrie que nomos, originalmente, é qualquer coisa que nemetai, que é repartido, distribuído ou dispensado; na época clássica, é qualquer coisa que nomizetai, na qual se crê, é praticada ou tida como boa. Ora, o que é repartido, distribuído e dispensado supõe um sujeito que reparte, distribui ou dispensa, um espírito de onde emana o nomos, que pode, por exemplo, ser a divindade[9]. Lembra, ainda esse autor, que um novo significado, por vezes sinistro, inspirado em um realismo político, será emprestado ao termo, quando a crença nos deuses for minada e não existir mais moeda corrente, cessando, então, a autoridade universal do nomos.

Por sua vez, acompanhando L. Gernet (Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en Grèce, Paris, 1917, pp. 6 e 26), J. P. Vernant também registra esse processo, ao lembrar a intimidade que a noção de nomos guarda com a idéia de repartição, de partilha, que, aplicada à ordem social, refere a distribuição de honras e privilégios entre grupos que se opõem numa comunidade política como se opõem, no cosmo, as forças elementares.[10] Citando E. Laroche (Histoire de la racine NEM en grec ancien, Paris:Klincksieck, 1949) sublinha Vernant o primeiro sentido do termo - religioso e moral, bastante próximo de cosmos, ordem, arranjo, justa repartição.

Considerando a evolução histórica, assinala também a importância dos tempos posteriores aos Pisistrátidas, quando o termo tomará, em Atenas, o sentido de lei política, em substituição de thesmos, graças à sua associação com o ideal democrático da isonomia. Esse caráter distributivo, nomos, enquanto lei da polis o conservará, quer se apóie sobre uma igualdade absoluta ou proporcional. Todavia, se nomos nos remete à idéia de regra, guardará também o significado, mais fraco porque sem valor normativo, de costume, uso, que Heródoto registra tão bem.[11]

Portanto, considerado o problema no domínio da moral e da política, se, primitivamente nomos designa o uso, a tradição, a maneira de fazer que se impõe imperativamente a todos os homens [Hesíodo, Erga, v. 276] (ao menos aos gregos), por vezes até mesmo aos deuses [Píndaro fr. 169], como uma obrigação de natureza superior [Eurip. Hécuba v. 847], designará, em seguida, por oposição à themis oral, a lei escrita cuja publicação assegura a todos justiça igual [Eurip. Suplicantes v. 429]. Nesse processo fortaleceu-se a figura da polis como instituição comunitária de primeira grandeza, uma vez que só nela, no espaço público, pôde realizar-se a síntese da força com o direito, sendo esta síntese, de cuja importância Sólon já se dera conta, a ponte que permitiu o trânsito do primeiro sentido (costume) para o segundo (lei positiva).[12]

Consideremos, agora, a própria expressão ‘leis não escritas’.

O que, logo de início, nos ocorre refere-se ao aparentemente óbvio - a verificação de que o seu emprego supõe necessariamente ‘leis escritas’. Contudo, sob o óbvio subsistem algumas relevâncias.

Partamos de dois fatos. Refere-se o primeiro a esta verdade histórica - a valorização da escrita no que se refere às leis é uma regra que não se aplica a todas as poleis (Esparta é um exemplo disso); o segundo, a esta outra verdade - desde que as leis são escritas associa-se a esta condição o sentimento de salvaguarda e garantia para o indivíduo, e dessa consciência Atenas clássica foi a maior expressão.

Relembremos antes a importância da lei em geral. Todos nós sabemos o quanto os antigos davam valor ao fato de serem tutelados pela lei. Na história de sua cultura, desde Hesíodo ressoava, imponente, o hino à lei e à justiça. Diante do bárbaro, que obedece ao rei e perante ele se curva, o grego, orgulhoso, proclama a sua liberdade, que faz repousar no império da lei. Na Esparta e na Atenas clássicas - não importa a diferença de politeia, a própria idéia de polis como comunidade de homens livres - homoioi - supõe e exige esse império. Se é verdade que o estilo de vida na Lacedemônia dependia substancialmente dos costumes e o espírito da politeia estava aí definido por alguns poucos princípios reguladores, os famosos ordenamentos atribuídos a Licurgo (rethra), a democrática Atenas caracteriza-se como politeia inspirada em uma idéia de Estado de Direito, constituído a partir da participação ativa dos cidadãos nos trabalhos do Conselho (Boulé), do Tribunal de Justiça (Helieia) e da Assembléia (Ekklesía).[13]

Concentremo-nos, pois, na Atenas clássica, uma vez que, como dissemos, ela traduz de forma altamente significativa essa consciência grega da importância da lei escrita. Como se poderia desvendar, em especial nas poleis de perfil político semelhante ao ateniense, essa confrontação entre “leis não escritas”e “leis escritas”?

Descartemos, por ora, o aspecto técnico da questão, que sói ser esclarecido a partir de uma passagem da obra de Andócides, que refere o Decreto de 403 a.C. (Sobre os Mistérios 83-86). Com a democracia restaurada, o colégio de legisladores foi incumbido de fazer uma revisão ampla das leis, selecionando as que deveriam ser consideradas em vigor. A conseqüência imediata desse trabalho veio a consubstanciar-se nesta ordem: “Uma lei não escrita em hipótese alguma deve ser aplicada pelo magistrado.” Supondo que essa lei não escrita passa a integrar o elenco das leis descartáveis, e, então, caducas, a expressão “não escrita”, aqui, traz à colação o tema da vigência das leis, insere-nos no campo jurídico, mais precisamente, juspositivista, e, a ele restrito, não nos seduz, por agora, com algum possível valor heurístico.

Aparentemente, essa proibição imposta ao magistrado se impõe como uma medida saneadora, necessária, pressuposto da harmonia na arquitetônica jurídica. Leis da polis são, pois, as que estiverem leis escritas.

Contudo, a lei, no ato mesmo de manifestar um comando, só o pode fazer por um enunciado geral. É de sua natureza. Ela não pode referir o específico porque não pode prevê-lo, aprisionado que está no contingente, marca impagável de uma série inescrutável, imprevisível e infinita de sucessos.

Aqui, então, a sua maior fraqueza. O defensor, em juízo, pode alegar a contradição entre as leis, ou a sua ambigüidade, ou a sua lacuna. Todas as hipóteses, porém, de restrição à lei em tela, tornam-se menores diante da verificação de que aquele caso, tendo escapado ao legislador, não está contemplado na lei. Não importa de que lado desponte essa limitação, surge o momento em que a lei não fala, ou, se fala, não fala com clareza. Como, então, dizer o direito? Na ausência da lei, manda o juramento dos heliastas, os juízes julgarão pela opinião mais justa .[14] Aristóteles, ao estabelecer os meios de prova em juízo, orienta o defensor: quando ocorre uma lacuna da lei particular escrita, recorre-se à eqüidade epiquéia)[15], o justo superior ao justo particular, específico daquela polis, embora não superior à justiça em si.

Os filósofos do direito não entram em um acordo sobre a questão das fontes do direito na Grécia clássica. Alguns pensam que a lei escrita era o único manancial onde iam beber os juízes - homens do povo, cidadãos leigos, não eram jurisprudentes - ao se depararem com deficiências na lei - ambigüidade, lacuna, contradição. Essa opinião tem sido contestada por outros críticos, que dão aos costumes um grande peso na ministração da justiça, dividindo-se, então, as orientações, basicamente, entre os que julgam que o exercício jurisdicional restringia-se, em caso de lacuna, apenas à tarefa de integração da lei, e os que vão mais longe e chegam a considerar a hipótese da criação do direito.[16]

Nesta alternativa, despontaria, então, a importância das leis não escritas, abrindo-se para os juízes um campo que extrapolaria o âmbito juspositivo, perdendo força a visão do Direito Grego submetido a um rígido formalismo jurídico. A partir daqui, caberia perguntar se os agraphoi nomoi seriam ou não fonte normativa complementar, vinculante. Uma interpretação estreita do texto de Aristóteles, que disciplina a matéria,[17] os veria como regras de costumes referidas a uma ética social e política, ou à equidade, entendida como ordenamento metapositivo (direito natural ou koinos nomos): seriam eles aplicáveis nos tribunais de Atenas como recurso à opinião mais justa, passando, depois, a integrar ou a derrogar a lei escrita (Maffi, p. 246 : tese de Talamanca). Essa compreensão levaria a negar aos costumes o valor de fonte do direito. Em direção oposta a essa, colocam-se os que valorizam no direito ático a matriz consuetudinária e equitativa, considerando que as leis escritas representariam antes o sinal de uma progressiva politização de uma ordem de tipo ‘tribal’, seja devido ao incremento das relações sócio-econômicas, seja devido à alteração do processo de comunicação social (Maffi, p. 252). Aqui enquadra-se A. Maffi, ancorado em Hirzel e Gernet: considerando inaceitável a exclusão de qualquer atividade interpretativa na aplicação da lei [18], pensa ele que, no momento em que a redação escrita da lei dá a possibilidade de criar o direito, o direito consuetudinário para tanto invocado, ao qual a lei se sobrepõe, caracteriza-se como agraphos. O confronto entre o escrito e o memorizado, entre o direito positivo e o consuetudinário ganharia uma dimensão mais apropriada diante deste cotejo: os agraphoi nomoi instalam-se no tempo mítico, enquanto as leis escritas referem um tempo histórico; a sanção daqueles é de ordem moral - no mínimo uma vergonha indiscutida, conforme o mostra Tucídides II 37, 3; a sanção destas é específica, concentrada em valores pecuniários, pronunciada em juízo. À luz dessa exegese, as leis escritas, tão valorizadas em Atenas clássica, guardariam uma relação de complementaridade com as não escritas, conquanto, com o tempo, viesse a impor-se a tendência a uma integração.

No plano doutrinário, como bem o observou Vernant, a filosofia irá tirar partido dessa distância entre entre o escrito e o não escrito, entre a lei e o costume, e se ouvirá falar, no debate intelectual da ilustração ateniense, numa oposição entre o que é estabelecido pelo nomos e o que é estabelecido pela natureza.

Partindo da leis escritas na cidade, distinguimos, aristotelicamente, um conjunto de regulamentos não escritos, preservados pelo hábito, com algum valor de constrangimento (não discutimos, aqui a força e a natureza desse constrangimento), conjunto restrito, e, pois, particular daquela polis, porque limitado à sua constelação de valores. Platão, ponderando o valor político desses regulamentos, que denomina costumes não escritos (agrafa nomima), e a cujo complexo aplica o epíteto de leis ancestrais (ous patrióus nómous arkhaia nómima), Platão os distingue dos nomoi, sublinhando-lhes o caráter de liame (desmoi) do tecido social.

Deparamo-nos, pois, com mais uma possibilidade de agraphoi nomoi, os patria, as leis não escritas de cada polis.

Contudo, alguns dos princípios que, de certa forma, norteavam a vida grega, eram referidos e respeitados independentemente das fronteiras da cidade. Dentre eles, havia os que nem mesmo tinham força coercitiva, mas produziam o efeito de dar consistência à vida do homem enquanto tal. Funcionavam como princípios reguladores sem maior significado moral, enfeixados como comportamentos próprios de um ser humano, como amar as crianças, temer a morte e outros afins. Ao lado desses, outros, porém, eram vistos perante todos os gregos como leis que lhes eram comuns, não escritas, mas não passíveis de serem violadas sem provocar censura. Tucídides, sobejamente, na sua História da Guerra do Peloponeso, dá uma série de exemplos deles e, também, a própria tragédia grega. Eurípides, frag. 853N2, com clareza os enumera: honrar os deuses, os pais, e as leis comuns da Hélade. Entre estas colocavam-se os preceitos que facilitaram as relações humanas, ou as estreitavam pela amizade (philia), pela doçura e tolerância, fórmulas não escritas de convívio social - a gratidão para com quem nos beneficiou, a solicitude para com os amigos, o socorro às vítimas da injustiça.[19] Algumas parecem já anunciar alguns elementos importantes, embrionários, é certo, em direção a um direito das gentes, destacando-se pela valorização do homem, de seu corpo ou de sua pessoa: contam-se entre estes os que estabeleciam a inviolabilidade do arauto, do embaixador, do prisioneiro que voluntariamente se rendeu, do suplicante; mas, sustentado por valores muito antigos plantados nos domínios do sagrado, sobreleva-se um ordenamento, o preceito que garantia aos mortos honras fúnebres e sepultura.

Detenhamo-nos nesses preceitos não escritos aos quais os próprios gregos atribuíram uma força mais poderosa, um brilho mais intenso, um poder normativo superior. Lembremo-nos do trágico dilema de Antígona, e do alto preço de sua rebeldia. Antígona, espremida pelos laços daquela fé que põe o homem fora da comunidade social e política, fora do contrato social, que o faz confrontar-se com a dimensão superior do justo. Foi Aristóteles que lucidamente o viu: se Antígona não cumpre o édito porque obedece a uma lei natural, lei que obriga sem restrições, absolutamente, violando, é certo, outro ordenamento, proclamado, e nem mesmo escrito.

Não importa a interpretação que se dê à peça: a problemática que ela põe é válida enquanto referida à consciência do homem e ao seu dever.

Assim, somos confrontados com um dado paradoxal. O que valoriza, na tradição ética grega, os agraphoi nomoi, não é o fato de não estarem escritos, mas de não se submeterem nem à imperfeição técnica das leis, nem à sua relatividade e limitação espiritual.

No que superaram o episódico e circunstancial, os agraphoi nomoi apontam em direção ao homem mesmo, confrontado com a suas limitações definidoras e definitivas. Seja porque há uma legislação de ordem superior e divina (Antígona), seja porque o uso artístico de uma peithó laicizada garante, pelo livre debate, o acordo das consciências, há regras que falam por si, e se impõem com seu discurso que ecoa ao infinito, alcançando-nos onde estivermos, e obrigando-nos a enfrentar a nossa consciência. Seja por um instinto, por um sentimento inato, ou, quem sabe, pelo puro exercício da razão, elas apontam ao homem o caminho do bem e do justo. Elas o fazem ver, na esteira de um Hípias, que integramos uma fraternidade universal, de um Alcidamas, que nascemos todos livres, como Antifonte, que não há gregos e bárbaros, e, finalmente, como Licofrão e Eurípides por seus personagens, que não há nobres de origem.

Assim, a compreensão dos agraphoi nomoi logrou superar, na Grécia antiga, as fronteiras da cidade-estado, e, em o fazendo, deixou para trás o que se desvanece com as brumas do tempo, retendo valores com pretensão de validez universal, ganhando, a partir dos quadros políticos e espirituais do helenístico, uma avaliação nova. Desde que Aristóteles logrou ver na idéia de lei natural a forma maior de lei não escrita, universalizante e universal, foi captada toda a pujança da polêmica crítica dos sofistas às limitações da lei positiva (nomos), e o pensamento ocidental apropriou-se de um valioso recurso para, doravante, reformular sua idéia de koinonía. A polis, e, com ela, o polites instalam-se num cosmos mais amplo, que pode dar conta de todo o humano; a philia particularista cede lugar à filantropia e não há mais bárbaros em terras geograficamente demarcadas e a razão, que se pensava grega, pensa-se agora cosmopolita e, não sem ousadia, alguns filósofos vão aplicá-la a toda a natureza, estendendo a todos o básico impulso da amizade e solidariedade.

Nessa amplitude abissal porque abissal é o homem, por que não haveria de ser revitalizada aquela fé em leis intemporais, que jamais poderemos escrever - talvez porque escrevê-las seria limitá-las, e, então, abafá-las, enredando-as em uma estreita sintaxe de negação? Que outra expressão não tem tido a aventura espiritual do homem senão a fidelidade a certos valores, que não sabemos de onde vieram, que supomos fundadores, a que nos agarramos como prancha de salvação nos naufrágios periódicos que nos ameaçam com o mergulho na barbárie?

Para salvar-nos como humanidade é preciso crer. Crer absolutamente, sem hesitação. Em que havemos de crer? Que regra iluminará nossos dias escuros, e nos livrará da funesta noite que surpreende o homem sem luz? Que nos diriam nossos maiores? Que nos diriam nossos homens sábios? Ouçamos a voz de Roma, ouçamos Cícero:[20]

“Existe uma lei verdadeira, é a reta razão, conforme com a natureza espalhada em todos os seres, sempre de acordo consigo própria, não sujeita a perecer, que nos chama imperiosamente a preencher nossa função, nos interdiz a fraude e dela nos afasta. Jamais o homem honesto é surdo as suas ordens e proibições; estas não têm ação sobre o perverso. Nesta lei, nenhuma emenda é permitida, não é lícito revogá-la totalmente ou em parte. Nem o Senado, nem o povo podem dispensar-nos de obedecê-la e não há necessidade de procurar um Sextus Aelius para explicá-la ou interpretá-la. Esta lei não é uma em Atenas, outra em Roma, uma hoje, outra amanhã, é uma única e mesma lei que rege todas as nações em todos os tempos: há para ensiná-la e prescrevê-la a todos um deus único... quem não obedece a esta lei ignora-se a si mesmo, e, porque ignorou a natureza humana, sofrerá por isso mesmo o maior castigo, mesmo se escapar aos outros suplícios”(III, XXII, p. 163)

Bibliografia

Eric A. Havelock - A revolução da Escrita na Grécia (e suas conseqüências culturais), trad. de Ordep José Serra, SPaulo-Unesp; R.Janeiro:Paz e Terra, 1996.

L. Gernet - Droit et Institutions en Grèce Antique - Paris: Flammarion, 1982.

W.K.C. Guthrie - Les sophistes, Paris:Payot, 1976. Mario Untersteiner - I sofisti, Torino:Einaudi Editore, 1949

R. Hirzel - Ágraphos Nómos. Abh. S. G. W., Ph. Hist. K1 XX Leipz, 1903, pp. 3-98.

Pierre Maxime Schuhl - Essai sur la formation de la pensée grecque (Introduction historique a une étude de la philosophie platonicienne). PUF, 1949.

J. de Romilly La loi dans la pensée grecque des origines à Aristote, Paris - Les Belles Lettres, 1971; - La Grèce antique à la découverte de la liberté, Paris:Éditions de Fallois, 1989 ; - La douceur dans la pensée grecque, Paris: Belles Lettres, 1979.

M. Ostwald - Was there a Concept agraphos nomos in Classical Greece? In Exegesis and Argument. Studies in Greek Philosophy pres. to G. Vlastos, Assen 1973.

W. Nestle - Historia del Espiritu Griego (Desde Homero hasta Luciano) - trad. de Manuel Sacristán, Barcelona-Caracas-Mexico: Ed. Ariel, 1981

Karl Reinhardt - Sophocle, trad. de Emmanuel Martineau, Paris:éd. Minuit, 1971.

Maria Helena da Rocha Pereira - Estudos de História da Cultura Clássica, Lisboa-Gulbenkian,1976.

Alberto Maffi: Recensioni Critiche, pp.130-38 (sobre Triantaphylopoulos J., Das Rechtsdenken der Griechen [Muenchener Beitr. zur Papyrusforschung und antiken Rechtsge., 78] (Muenchen, Beck, 1985) In:IVRA (Rivista Internazionale di Diritto Romano e Antico, estratto dal vol. 36 (1985) [pubbl.1988], Editore Jovene - Napoli

Alberto Maffi - Rassegna bibliografica da obra de Mario Bretone-Mario Talamanca - Il diritto in Grecia e a Roma, Bari, Laterza 1981, in: Quaderni di storia 17 gennaio-giugno 1983 (estratto), Edizioni Dedalo, pp. 245-262

Dicionários e enciclopédias:

Der kleine Pauly,Band 1, v. ágraphoi nómoi

Dictionnaire de la civilisation grecque, Paris:Larousse,1985, v. nomos

Textos antigos:

Hesíodo - Teogonia vv 65-67

Sófocles - Antígona (vv. 449-470;em especial Aristóteles, Retórica 1275a; 1373b)

Platão - Leis 793 b 5-8; 880 a

Aristóteles - Retórica (capítulos 13 e 15). Passos:

1318 b (lei particular e lei comum); 1374 a-b (generalização acerca do comportamento humano: o que é correto); 1374 a23 (exemplo de lei não escrita); 1374 a 29-30 ?); passos para exegese: 1368 b7 x 1373 b4 (Hirzel)

- Ética a Nicômaco V, 14 (1137 a et sqs)


[1]. Conforme adverte a Profª Mª Helena da Rocha Pereira, citando Bernhard Knox (The Heroic Temper, Studies in Sophoclean Tragedy, University of California Press, reimpr. 1966, pp. 94-98; n. 24 da p. 183), a palavra usada nessa passagem - - significava ‘costume’e não ‘lei’, no séc. V a.C., referindo-se, então, Antígona, a práticas para com os mortos consagradas pelo uso, embora no verso 519 a princesa utilize a palavra , ‘lei’ (Estudos de História da Cultura Clássica, vol. I Grécia, Lisboa:Gulbenkian, 1976, p. 356-7)

[2]. “Creonte: É ousaste, de verdade, tripudiar sobre as leis? Antígona - ‘É que essas não foi Zeus que as promulgou,/ nem a Justiça, que coabita com os deuses infernais,/ estabeleceu tais leis para os homens./ e eu entendi que os teus éditos não tinham tal poder que um mortal pudesse sobrelevar os preceitos não escritos mas imutáveis dos deuses./ Porque esses não são de agora, nem de ontem, mas vigoram sempre, e ninguém sabe quando surgiram./ Por causa das tuas leis, não queria eu ser castigada/ perante os deuses, por ter temido a decisão/ de um homem.”(vv. 450 et sqs, trad. de Mª Helena da Rocha Pereira, Hélade)

[3]. No caso da ‘Antígona’, o próprio eixo da discussão poderia ser deslocado, uma vez que se poderia alegar que em sua defesa Antígona opõe, não tanto uma lei escrita a outra, não escrita, uma vez que o édito de Creonte é um pregão, uma proclamação oral, mas uma regra humana, falível, de ‘hoje’, a preceitos relativos a práticas imemoriais, que não se enfraqueceram por não estarem escritos, uma vez que sua validez é inferida de seus fundamentos, que são divinos.

[4]. Rassegna bibliografica da obra de Mario Bretone-Mario Talamanca - Il diritto in Grecia e a Roma, Bari:Laterza, 1981. In: Quaderni di storia 17 gennaio-giugno 1983 (estratto), Edizioni Dedalo, p. 253.

[5]. Maffi, op. cit., p. 253

[6]. Destaquem-se : J. de Romilly La loi dans la pensée grecque des origines à Aristote, Paris - Les Belles Lettres, 1971; em especial: La Grèce antique à la découverte de la liberté, Paris:Éditions de Fallois, 1989 e M. Ostwald - Was there a Concept agraphos nomos in Classical Greece? In Exegesis and Argument. Studies in Greek Philosophy pres. to G. Vlastos, Assen 1973. J. de Romilly utiliza outra obra de M. Ostwald: Nomos and the beginnings of the Athenian Democracy, Oxford, 1969.

[7]. Cf. La loi dans la pensée grecque ..., ed. cit., p. 36

[8]. Cito M. Ostwald apud Maffi, op. cit., p. 253.

[9]. cf. Heráclito, fr. 114: as leis humanas apoiam-se numa única lei divina. Assim também Hesíodo, Erga 276, Sófocles, Antígona; Tucídides III 82. 6; Górgias fr. 6

[10]. Cf. Mito e Pensamento entre os Gregos, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 366. Na mesma direção o já citado L. Gernet. Conferir deste, também, Droit et Institutions en Grèce Antique, Paris: Flammarion, 1982, p. 290.

[11]. Cf. J.P. Vernant,op. cit. p. 366, n. 51.

[12]. Cf. P.M. Schuhl, Essai sur la formation de la pensée grecque, Paris:Puf,1949, p. 354-5. Cf. também, a esse respeito, W. K.C. Guthrie, Les sophistes, Paris:Payot, 1976, p. 63 et sqs.

[13]. Cito uma passagem das Suplicantes, de Eurípides (vv. 426-441), que traduz com rara felicidade a importância das leis escritas na concretização da isonomia democrática: “Para um povo, nada de pior existe do que um tirano. Nesse regime, não há leis que valham para todos. Um só homem governa e a lei é sua posse exclusiva. Então, não há mais igualdade, enquanto, sob o império das leis escritas, pobre e rico têm os mesmos direitos. O fraco pode responder ao insulto do forte e o pequeno, se tem razão, pode vencer o grande. Quanto à liberdade, ela se encontra nestas palavras: ‘Quem quer, quem pode dar um conselho sábio a sua pátria? ‘Cada um, então, de acordo com sua vontade, pode luzir... ou calar-se. Pode imaginar-se mais bela igualdade?” (palavras de Teseu ao arauto; grifo nosso)

[14]. Cf. Demóstenes XX 118

[15]. Cf. Retórica I 13 1374 a 20 et sqs.

[16]. Cf. Maffi, op. cit.

[17]. A passagem de Aristóteles em questão encontra-se na Retórica 1374 a 18 et sqs (sobre delitos não previstos pela lei).

[18]. Alberto Maffi: Recensioni Critiche, pp.130-38 (sobre Triantaphylopoulos J., Das Rechtsdenken der Griechen [Muenchener Beitr. zur Papyrusforschung und antiken Rechtsge., 78] (Muenchen, Beck, 1985) In:IVRA (Rivista Internazionale di Diritto Romano e Antico, estratto dal vol. 36 (1985) [pubbl.1988], Editore Jovene - Napoli, p. 136.

[19]. cf. J. de Romilly - La douceur dans la pensée grecque, Paris: Belles Lettres, 1979.

[20]. Os fundamentos morais da república ideal. Philus, no diálogo (livro III), vai defender, apenas para possibilitar a discussão, a tese de que justiça - e o direito portanto - é coisa social, e não natural, que como tal varia conforme o povo e varia num mesmo povo, através do tempo (VIII a XI, pp. 145/9). É o interesse que comanda os homens. A essa posição, Cícero opõe, por intermédio de Lelius, a lei moral, que deve ser o fundamento do Estado.