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Prudentia, virtude intelectual:
"lições de vida"

(Discurso de Paraninfo dos formandos de 2004 da
Faculdade de Educação da USP, 18-02-05)

 

(dedicado à Profa. Dra. Tomázia Dirce Peres Lora - in memoriam)

 

 

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

 

Exma. Profa. Dra. Selma Garrido Pimenta, DD. Diretora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, professores e funcionários homenageados, colegas docentes, senhores pais, queridos formandos.

Esta cerimônia de formatura de uma turma tão especial - especial também porque é a turma dos 70 anos da Universidade de São Paulo - é um convite a uma reflexão sobre a universidade e a vida: afinal, inaugura-se, hoje, uma nova etapa da vida, etapa de maturidade, marcada pela gradução universitária: trata-se de uma formatura, do ato de formar-se.

Diga-se de passagem, que falar em "formatura", "forma" é pagar um tributo a mais ao velho Aristóteles. E o curioso é que, quase 2500 anos depois, as pessoas podem não ter lido Aristóteles, podem nunca ter ouvido falar dele, mas continuam falando em linguagem aristotélica, pensando em clave aristotélica... A peça de publicidade, recentemente difundida à exaustão: "Transforme seu potencial em realidade" joga, pura e simplesmente, com o binômio aristotélico potência/ato, dois dos diversos modos de ser, segundo a sentença tantas vezes repetida na Metafísica do Estagirita. E forma / matéria é outro binômio importante lançado por Aristóteles. Certamente, há diferenças, digamos, de densidade de ser, nesses binômios: há "mais" ser no ato / forma do que na matéria / potência. E "forma", "formando", "formatura" - ao contrário da potência e da matéria - apontam para uma completude.

Nesta breve reflexão, gostaria de chamar a atenção, porém, para um aspecto: as limitações da formação universitária, aquilo que a universidade não ensinou. Por excelentes que tenham sido as aulas e atividades destes anos, a universidade não pode - e nem pretende - ensinar-nos... fórmulas para educar nem fórmulas para bem viver.

Os antigos quando pensavam no agir humano (e, claro, na educação) - o agir que conduz à auto-realização, ao bem viver - pensavam não num saber teórico ou acadêmico, mas antes de mais nada numa virtude, a virtude da prudentia. Um homem bom é - antes e acima de tudo - um homem prudente. E adquirir a virtude da prudentia é o que há de mais importante na educação.

Certamente, o significado dessa prudentia clássica, não tem nada que ver com o que chamamos hoje "prudência": na verdade, está mesmo no extremo oposto. A proximidade entre a nossa língua e o latim de Tomás de Aquino (a quem sigo de perto nesta reflexão) não nos deve enganar: ocorre freqüentemente um conhecido fenômeno de alteração do sentido das palavras que se manifesta muitas vezes quando lemos um autor de outra época. E não só alteração: como mostra C. S. Lewis [1] , dá-se freqüentemente, sobretudo no campo da ética, uma autêntica inversão de polaridade [2] : aquela palavra que originalmente designava uma qualidade positiva, esvazia-se de seu sentido inicial ou passa até a designar uma qualidade negativa.

Foi o que aconteceu, como dizíamos, com as palavras "prudente" e "prudência". Atingidas ao longo dos séculos pelo subjetivismo metafórico e pelo gosto do eufemismo [3] ; "prudência" já não designa hoje a grande virtude, mas sim a conhecida cautela (um tanto oportunista, ambígua e egoísta) ao tomar (ou ao não tomar...) decisões.

Observação similar - "será que a prudência tornou-se uma qualidade negativa?" - era registrada, já em 1926, por Garrigou-Lagrange [4] .

Assim, se hoje a palavra prudência tornou-se aquela egoísta cautela da indecisão "em cima do muro"; em Tomás de Aquino, pelo contrário, prudentia expressa exatamente o oposto da indecisão: é a arte de decidir-se corretamente, isto é, com base não em interesses oportunistas, não em sentimentos piegas, não em impulsos, não em temores, não no politicamente correto, não em preconceitos etc., mas, unicamente, com base na realidade: em virtude do límpido conhecimento do ser. É este conhecimento do ser que é significado pela palavra ratio na definição de prudentia: recta ratio agibilium, "reta razão aplicada ao agir", como repete, uma e outra vez, Tomás.

Esse conhecimento da realidade, essa "reta razão" não é acadêmica, mas um conhecimento voltado para tomar boas decisões e bem agir na vida: os antigos falavm de um saber per connaturalitatem, um saber da vida, que mesmo um analfabeto pode ter.

Nesse sentido, é sempre interessante recordar que sapere - "saber" em latim - não por acaso acumula os significados de "saber" e "saborear", saber e sabor: sabe quem saboreia, "quem sabe, sabe!". Ainda hoje, em Portugal e Espanha, mantém-se vivo esse duplo significado de "saber". Assim, a sabedoria depende também de sensibilidade.

Prudentia é ver a realidade e, com base nessa visão, tomar a decisão certa. Por isso, como repete Tomás, não há nenhuma virtude moral sem a prudentia. Com as alterações semânticas, porém, tornou-se intraduzível, para o homem de nosso tempo, uma sentença de Tomás como: "a prudentia é necessariamente corajosa e justa" [5] .

Mas este "ver a realidade" é somente uma parte da prudentia; a outra parte, ainda mais decisiva (literalmente) é transformar a realidade vista em decisão de ação, em comando: de nada adianta saber o que é bom, se não há a decisão de realizar este bem...

O nosso tempo, que se esqueceu até do verdadeiro significado da clássica prudentia, atenta contra ela de diversos modos: em sua dimensão cognoscitiva (contra a capacidade de ver o real, por exemplo, aumentando o ruído - exterior e interior – que nos impede de “ouvir” a realidade) e em sua dimensão prescritiva, no ato de comandar: o medo de enfrentar o peso da decisão, que tende a paralisar os imprudentes (pois, insistamos, a prudentia toma corajosamente a decisão boa!).

A grande tentação da imprudência (sempre no sentido clássico) é a de delegar a outras instâncias o peso da decisão que, para ser boa, depende só da visão da realidade. Há diversas formas dessa abdicação: do abuso de reuniões desnecessárias à delegação indevida de decisões a terapeutas, comissões, analistas e gurus, passando por toda sorte de consultas esotéricas.

Uma das mais perigosas formas de renúncia a enfrentar a realidade (ou seja, a renúncia à prudentia) é trocar essa fina sensibilidade de discernir o que, naquela situação concreta, a realidade exige por critérios operacionais rígidos, como num “Manual de escoteiro ético” ou, no campo do direito, num estreito legalismo à margem da verdadeira justiça. É também o caso do radicalismo adotado por certas propostas religiosas.

O lugar privilegiado dado à prudentia pelos antigos é o reconhecimento de que a direção da vida é competência da própria pessoa e o caráter dramático da prudentia se manifesta claramente quando um Tomás mostra que não há "receitas" de bem agir, não há critérios comportamentais operacionalizáveis, porque - e esta é outra constante no tratado De Prudentia - a prudentia versa sobre ações contingentes, situadas no "aqui e agora".

E é que a prudentia é virtude da inteligência, mas da inteligência do concreto: a prudentia não é a inteligência que versa sobre teoremas ou princípios abstratos e genéricos, não!; ela olha para o “tabuleiro de xadrez” da situação “aqui e agora”, sobre a qual se dão nossas decisões concretas, e sabe discernir o “lance” certo, moralmente bom. E o critério para esse discernimento do bem é: a realidade! Saber discernir, no emaranhado de mil possibilidades que esta situação me apresenta (que devo dizer a este aluno?, compro ou não compro?, caso-me ou não?, devo responder a este mail? etc.), os bons meios concretos que me podem levar a um bom resultado, à plenitude da minha vida, minha realização enquanto homem. E para isto é necessário ver a realidade concretamente. De nada adiantam os bons princípios abstratos, sem a prudentia que os aplica - como diz Tomás - ao "outro pólo": o da realidade (que significa, por exemplo, "amar o próximo" nesta situação concreta?).

A condição humana é tal que - muitas vezes - não dispomos de regras operacionais concretas: sim, há um certo e um errado objetivos, um “to be or not to be” pendente de nossas decisões, mas não há regra operacional. Tal como para o bom lance no xadrez, há até critérios gerais objetivos... mas não operacionais concretos!

Nessa mesma linha, está a agudíssima página de Guimarães Rosa - todo um tratado de filosofia da educação moral nas palavras do jagunço Riobaldo:

"Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa - a inteira - cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver - e essa pauta cada um tem - mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto: mas, fora dessa conseqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador - sua parte, que antes já foi inventada, num papel..." [6] .

Trata-se assim de uma "inteligência" moral, a insubornável fidelidade ao real, que aprende da experiência e, portanto, requer a memoria como virtude associada: não a memória que decora telefones, mas a memória fiel ao ser. Precisamente no artigo dedicado à virtude da memoria, no "Tratado sobre a Prudência" da Suma Teológica, Tomás de Aquino observa que não pode o homem reger-se por verdades necessárias, mas somente pelo que acontece in pluribus (geralmente).

Note-se que esta é também a razão da insegurança em tantas decisões humanas: a prudentia traz consigo aquele enfrentamento do peso da incerteza, peso que tende a paralisar os imprudentes [7] .

É essa dramática imprudência da indecisão, que expressam alguns clássicos da literatura: do "to be or not to be..." de Hamlet aos dilemas kafkianos (nos quais o remorso impõe-se a qualquer decisão), passando pelo "Grande Inquisidor" de Dostoiévski, que descreve "o homem esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher" [8] e apresenta a massa que abdicou da prudentia e se deixa escravizar, preferindo "até mesmo a morte à liberdade de discernir entre o bem e o mal" [9] . E, assim, os subjugados declaram de bom grado: "Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis" [10] .

Quando pensamos a prudentia no quadro geral da antropologia filosófica (e esta é uma observação fundamental também para a Filosofia da Educação) encontramos, como pano de fundo, os dois elementos-chave de Tomás: mistério e liberdade.

Afirmar a prudentia é afirmar que cada pessoa é a protagonista de sua vida, só ela é responsável, em suas decisões livres, por encontrar os meios de atingir seu fim: a sua realização. Esses meios não são determináveis "a priori"; pertencem, pelo contrário, ao âmbito do contingente, do particular, do incerto do futuro e, necessariamente, a prudentia se faz acompanhar da insegurança, da necessária insegurança que acompanha toda vida autenticamente humana. Afinal, para Tomás, o que o conceito de pessoa acrescenta à essência humana é precisamente a individualidade concreta: "alma, carne e osso, são configuradores do homem (sunt de ratione hominis); mas esta alma, esta carne e estes ossos são configuradores deste homem (sunt de ratione huius hominis) e assim 'pessoa' acrescenta à configuração da essência os princípios individuais" [11] .

Vem ao encontro dessas considerações - e com isso voltamos à metáfora do xadrez - a seguinte reflexão do psiquiatra Viktor Frankl:

Vejamos o que se pode fazer quando um paciente pergunta qual é, afinal, o sentido da sua vida. Duvido que um médico possa responder esta questão em termos genéricos. Isto porque o sentido da vida difere de pessoa para pessoa, de um dia para outro, de uma hora para outra. O que importa, por conseguinte, não é o sentido da vida de um modo geral, mas antes o sentido específico da vida de uma pessoa em dado momento. Formular esta questão em termos gerais seria comparável a perguntar a um campeão de xadrez: 'Diga-me, mestre, qual é o melhor lance do mundo?'. Simplesmente não existe algo como o melhor lance ou um bom lance à parte de uma situação específica num jogo e da experiência humana. O mesmo é válido para a existência humana. Não se deveria procurar um sentido abstrato da vida. Cada qual tem sua própria vocação ou missão específica na vida; cada um precisa executar uma tarefa concreta, que está a exigir realização. Nisto a pessoa não pode ser substituída, nem pode sua vida ser repetida. Assim, a tarefa de cada um é tão singular como sua oportunidade específica de levá-la a cabo. [12]

Qualquer atentado contra a prudentia tem como pressuposto a despersonalização, a falta de confiança na pessoa, considerada sempre "menor de idade" e incapaz de decidir e, portanto, devendo transferir a direção de sua vida para outra instância: a igreja, o estado, o partido etc. Em qualquer caso, isso é sempre muito perigoso...

Um outro aspecto relevante é que os antigos estendem a prudentia para além da vida pessoal, atingindo também cada comunidade importante - como a nação, o exército etc. - que se torna objeto de uma prudentia específica: prudentia politica, prudentia militar, prudentia futebolística (diríamos hoje, pensando no técnico e nos jogadores)... Pode-se falar também de uma prudentia escolar, educativa...

Com isto se diz que a boa condução da educação depende de uma virtude pessoal, da qualidade de homem que se é e, portanto, voltamos ao começo... Dizíamos, no começo, que se tratava de algo que a universidade não pode dar, que "a universidade não pode - e nem pretende - ensinar-nos fórmulas para educar... nem fórmulas para bem viver". Esta formulação, porém, precisa ser um pouco corrigida: a formação universitária - tanto nas aulas e atividades como no simples convívio com os colegas e professores - possibilita - especialmente aqui na FEUSP (eu estava redigindo este discurso quando chegou a notícia do falecimento da querida Profa. Tomázia Dirce Peres Lora, um incomparável exemplo de mestra dessas "lições de vida" de que estamos a falar) e particularmente no âmbito dessa turma que hoje se forma -, oferece as condições uma imensa abertura de horizontes e uma possiblidade de profundo conhecimento da realidade - que, se não pode ser traduzido em receitas, contribui sem dúvida para as nossas decisões éticas na construção de nosso autêntico ser e de uma sociedade mais justa e solidária.

Junte-se a isto aquela outra formação que recebemos de nossos pais e no convívio dos amigos e teremos completa a base essencial sobre a qual vamos construir a nossa virtude pessoal, a nossa realização, aquele "Torna-te o que és" do poeta grego Píndaro.

Desse modo, quase sem reparar, acabamos recordando o significado profundo da gratidão dos formandos a seus pais, professores, colegas e amigos aqui presentes e, por outro lado, o conteúdo essencial de nossas felicitações aos formandos. As duas palavras que mais serão ouvidas nesta noite e com as quais encerro esta breve reflexão: "Parabéns" e "Muito obrigado".



[1] . É o tema de fundo de seu clássico Studies in Words, Cambridge at the Univ. Press, 1960.

[2] . "The remarkable tendency of adjectives which originally imputes great goodness, to become terms of disparagement" op. cit., p. 173.

[3] . Ibidem, cap. I. Cfr. também  COPLEY, J. Shift of Meaning, London, Oxford University Press, 1961.

[4] . "Une étude sur la prudence ne présente au premier abord pour beaucoup de lecteurs qu'un médiocre intéret. Plusiers pensent peut-être à monsieur Proudhomme, d'autres songent à une vertu qui consiste surtout à ne pas agir, dès qu'il y a quelque risque à courir: 'Soyons prudents, pas d'affaires'. Et de fait, dans plusieurs dictionnaires, la définition qui est donnée de la prudence fait penser à cette sorte de vertu toute négative, qui n'a guère de la vertu que le nom. La prudence serait-elle une qualité negative?". GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald  "La prudence - sa place dans l'organisme des vertus"  Revue Thomiste, École de Théologie Saint-Maximin (Var), Année XXXI, Nouv. Série IX, 1926, p. 411.

[5] . Nec prudentia vera est quae iusta et fortis non est. I-II, 65, 1.

[6] . Grande Sertão: Veredas, Rio de Janeiro, José Olympio, 5a. ed., p. 366.

[7] . Como indicávamos, curiosamente, a prudentia, virtude da decisão, converteu-se na atual "prudência" indecisa...

[8] . DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os Irmãos Karamázovi São Paulo, Ouro, s.d., p. 226.

[9] . Ibidem, p. 225.

[10] . Ibidem, p. 224.

[11] . I, 29, 2 ad 3.

[12] . Em busca de sentido, Petrópolis/São Leopoldo, Vozes/Sinodal, 16ª edição, 2002, p. 98.