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A Formação do Professor -
Função Didática das Histórias
e a Virtude da Prudência

 

Patrícia Colavitti Braga [1]

 

Introdução

A Prudência, mãe de todas as virtudes associar-se-á neste trabalho à formação do professor e à formação do aprendiz. Como virtude singular, acreditamos que no processo de construção do ser social, do cidadão, essa virtude deve ser a mestra das decisões, e, para que assim seja, torna-se interessante e, a nosso ver, fundamental, pensar em sua inserção consciente nas dimensões do processo pedagógico, inicialmente por meio da ação do educador que terá a virtude da Prudência - a arte de tomar a decisão certa, a partir de uma visão do real - como guia de uma ação construtivista e, depois, em função do exemplo, sendo assimilada pelos alunos.

Neste trabalho, pretendemos enfocar como a Literatura e a música popular nos oferecem obras cuja função didática nos ensina a cultivar a virtude da Prudência e alimentar o culto dessa virtude. Por meio do conto maravilhoso “Luas e Luas” e da música-raiz “Couro de Boi”, pretendemos observar como as ações dos protagonistas são concebidas e pautadas nos preceitos da Prudência e como esses podem servir como exemplo para a ação do educador.

Inicialmente, faremos uma análise de como a Literatura eleita exerce a sua função didática e de como essa reflete os preceitos da Prudência, possibilitando ao educador uma série de reflexões sobre como a Prudência é uma virtude essencial em seu processo de formação e em sua prática diária, assim como o é, na formação do aprendiz e nas suas ações no meio em que vive.

A figura central de nossa análise será, em um primeiro momento, a personagem “Bobo da Corte”, pois esse é um virtuoso, já que exercita a Prudência de forma consciente e repetidamente e, diante dos conflitos, sempre pauta suas decisões sobre essa recta, ratio agibilium e com o auxílio da arte - “a reta razão nas coisas que produzimos” – consegue superar a sua realidade. Essa personagem pode ser identificada com a figura do educador que deve pautar suas ações em uma prática prudente, conduzida por uma visão clara da realidade vivida por si mesmo e por seus alunos, e, a partir daí, extrair dessa, decisões retas, construtivistas, libertadoras, criativas, que promovam a autonomia do aprendiz e a concepção de um cidadão também prudente.

A consciência do educador e a construção de ação educativa que busca suas diretrizes na Prudência são importantes, principalmente, pelo fato de que as crianças constróem a sua educação moral muito em função dos referenciais, dos exemplos que recebem dos adultos, principalmente, do seu mestre e a Prudência é o próprio centro da vida moral, segundo o filósofo Jean Lauand [2] .

Em um segundo momento, remeteremos o nosso olhar para a Prudência que se ensaia e se revela nas ações infantis, tanto da Princesa Letícia no conto “Luas e Luas”, quanto o netinho na música “Couro de boi”, de modo que possamos refletir sobre até que ponto a criança pode se mostrar prudente e ser o agente de uma educação que a emerge a partir de situações pré-didáticas.

A Prudência em “Luas e Luas”

“Luas e luas” configura-se em uma história que nos propicia uma leitura pelo viés de uma didática da ilustração, de uma pedagogia da narrativa maravilhosa e permite uma leitura comparada com a educação e com a Prudência, guia e mãe das virtudes, segundo a filosofia de São Tomás de Aquino.

Essa leitura ou “desleitura” mediará uma reflexão sobre a formação e sobre a ação do professor e a consciência que esse deve desenvolver no que concerne à importância da literatura infantil em sala de aula, atuando como mediadora da ação pedagógica e da visão de mundo do aluno e como norteadora de sua vivência como um ser social, que é capaz de sintetizar e superar a realidade por meio da arte, que para São Tomás é “a razão reta nas coisas que produzimos”

Segundo Lauand no ensaio A virtude de Decidir: A arte da Prudência em Tomás de Aquino, para São Tomás, a Prudência “é uma virtude que versa sobre o "aqui e o agora", sobre a realidade contingente, singular, infinitamente variada, com a qual eu me encontro e requer de mim uma decisão. Para decidir corretamente, devo enxergar a verdade, o logos, o que a realidade exige de mim. Trata-se, portanto, antes de mais nada, de uma clarividência, de uma simplicitas, de uma capacidade intelectual de ver o real. Mas não de um real teórico, teoremático; e sim do concreto: saber discernir no "aqui e agora" o que vai me realizar ou o que vai me destruir... Tomás, sempre atento à linguagem, dirá que prudens vem de porro uidens, "ver longe". Nesse sentido, há uma sugestiva expressão que se usa muito em espanhol: "las veo venir", equivalente aos nossos: "já vi esse filme antes", "já dá para ver onde isto vai parar"”.

A real compreensão da Prudência e a sua inserção como uma virtude singular presente na formação do educador, talvez seja um dos caminhos que possibilitem a melhoria nas relações inerentes ao processo pedagógico, como as relações afetivas e de ensino-aprendizagem desencadeadas na relação professor e aluno. Isso porque se o educador, por meio do exercício de buscar ver a realidade das coisas e, somente a partir disso, raciocinar e agir, suas ações serão mais humanas e mais pautadas em preceitos de retidão moral e intelecção, o que torna o processo pedagógico mais equilibrado e sólido. O educador prudente é capaz de inferir, ouvir, calar, espantar-se, enfim, de valorizar a cultura da criança e, a partir da associação dessa cultura e da cultura letrada, promover uma construção do conhecimento.

O Homem prudente é capaz de agir se valendo da docilitas e da justiça, as quais são virtudes constantemente chamadas à tona nas relações pedagógicas, pois essas se compõem de carências, de necessidades e de conflitos; e as suas ausências ou presenças são desencadeadoras de uma didática da formação moral ou “amoral” , na qual o aprendiz há de se espelhar. Dessa maneira, o educador precisa ter mais do que a “boa vontade” como virtude norteadora de suas decisões. É preciso que ele sempre associe a essas virtudes, a Prudência, pois essa será guia das decisões tomadas a partir de uma análise segura do concreto. Pois como afirma Lauand: “(...) digamos, em caso de conflito, ninguém pode tomar uma decisão justa se não conhece a realidade: como as coisas são e em que pé estão. O mais puro desejo de Justiça, a "melhor das boas vontades", a "boa intenção", tudo isto não basta. Antes, a realização do bem concreto pressupõe sempre o conhecimento da realidade. Isso se pode exprimir também do seguinte modo: o agir humano é bom e ordenado quando procede da verdade, que afinal de contas nada mais é que o vir-a-encarar a realidade. E precisamente este é o sentido da Prudência e de sua posição privilegiada: que - tanto quanto possível - vejamos a realidade, que eu veja como realmente são os elementos que compõem a situação que exige de mim uma decisão.”

Assim, já podemos começar a vislumbrar a importância das virtudes nas relações de ensino. E, para pô-las em cena de maneira mais figurativa, inicialmente, nos utilizaremos de uma retórica ilustrativa propiciada pela literatura, que é utilizada como suporte da educação para, pelo desenvolvimento e pela convivência com o imaginário e com a criatividade, despertar o gosto pela leitura e pela reflexão, já que essa pode ser instrumento de satisfação do desejo, dissolução de conflitos, de descoberta da importância e do prazer do desafio, de aquisição do poder por meio dos jogos ficcionais, do contato com o imaginário e com o universo da criatividade; do lidar com a possibilidade, com a plausibilidade de realização do sonho, com a retidão moral e com a necessidade da socialização, já que no conto, o herói ou a heroína sempre recebem, por merecimento, a ajuda de um aliado, enfim, os contos propiciam a convivência com o mítico, com o mágico e com o possível.

O conto de fadas “Luas e luas” possibilita uma visita da educação e aflora reflexões mediadas pelo viés pedagógico e filosófico, tanto no que se refere a compreender a relação entre a criança, o real e o imaginário e entre o professor e o aluno.

Dessa forma, à medida que a educação visita essas “luas”, ocorre uma leitura ou “desleitura” do conto que sugere estratégias didáticas pautadas em uma relação dialética e na Prudência, as quais serão elucidadas a seguir.

“Luas e luas” de Marc Simont [3] , nos conta a história de uma princesa e seu desejo “impossível”, o qual adentra no reino das possibilidades por meio da interdição da inacessibilidade, graças à intervenção do Bobo da corte, personagem cuja ação será foco de nosso trabalho.

Ocorreu que em tempo d’era uma vez, a princesa Letícia comeu muita torta de framboesa e adoeceu. Seu pai, preocupadíssimo, ofereceu-lhe tudo o que seu coração quisesse. Assim, a princesa Letícia afirmou querer a Lua e, ainda disse que só ficaria boa quando tivesse a lua.

Como o rei tinha muitos sábios em sua corte, chamou-os para resolver o conflito que houvera se instaurado. Mas os sábios só souberam interditar a dissolução do conflito por meio de uma impossibilidade que crescia a cada sábio que visitava o rei, pois os sábios não conseguiam ou não queriam ter discernimento e “ver as coisas” como elas se apresentavam e, em função disso, não conseguiam agir com Prudência. Tal dificuldade é analisada por Pieper: “Este "ver as coisas", entretanto, não é de modo algum um assunto acessório que se possa considerar com ligeireza. Além do mais, a capacidade de "ver a realidade" é ameaçada de diversas maneiras. Pois não se trata de uma neutra contemplação da natureza, mas da incorruptível "busca da verdade" a respeito de situações nas quais costumam estar fortemente envolvidos fatores de interesse pessoal. O que importa, portanto, é fazer calar nossos interesses - e, talvez também ouvir o outro, possivelmente um oponente. Quem não consegue isto, ou não está disposto a isto, jamais chegará a ver a realidade como ela é. Mas isso é apenas o começo e a primeira metade da Prudência. A outra, bem mais difícil, consiste em transformar aquilo que foi visto, a verdade das coisas, em diretriz do próprio querer e agir. Só então se perfaz a virtude da Prudência, que com razão foi definida como "a arte de decidir-se corretamente". Só quem domina esta arte pode ser considerado um homem moralmente maduro e adulto. Para ele foi cunhada a palavra da Sagrada Escritura: "Se teu olho é simples (simplex), então todo teu corpo estará na luz" (Mt 6,22) ”

Até que o Bobo da corte, personagem de “olho simples e corpo na luz” consegue resolver o impasse com a ajuda da visão de mundo, ou melhor, de lua, da princesa e com os conhecimentos possibilitados, involuntariamente, pelos sábios. Dessa forma, ele manda forjar uma pequenina lua em ouro e pendurá-la numa corrente de ouro.

No entanto, um novo conflito se apresentou: a lua apareceria novamente no céu, problema que, outra vez, foi levado aos sábios, mas que não foi resolvido porque os sábios só usavam o próprio conhecimento para apresentar soluções ineficazes. Então, novamente, o Bobo entra em cena e resolve mediar juntamente com a princesa um meio para a dissolução do problema. E essa lhe responde que era óbvio que a lua aparecia outra vez no céu, pois era como acontecia quando um dente caia ou se cortava uma flor do jardim: nasceria outra vez.

Nos contos de fadas, a didática ou a arte de ensinar se dá pelo viés do símbolo, pois eles se apresentam como uma ponte entre o real e o ideal, entre o abstrato e o concreto. Dessa forma, pretendemos analisar esse conto pelo viés simbólico, filosófico e educacional.

A história se inicia pela apresentação de uma multiplicidade de luas “Luas e Luas”, sugerindo ao leitor, uma visão singular e estranha da lua, pois é fato concreto que só existe uma lua. No entanto, isso se justifica à medida que a história vai sendo narrada, pois se verifica que cada pessoa tem uma visão particular da lua, e essa multiplicidade de sentidos é o que possibilita ao astro essa aura mágica e misteriosa.

Para Chevalier, em seu Dicionário de Símbolos [4] a Lua é símbolo de transfor-mação e crescimento bem como do conhecimento indireto, discursivo, progressivo, frio e como não é mais que um reflexo da luz do Sol, a Lua é apenas o símbolo do conhecimento por reflexo, isso é, do conhecimento teórico, conceptual, racional.

Assim, a lua será protagonista de um impasse: à criança é dada a possibilidade do desejo - a princesa quer a lua - , no entanto, ela deseja o contato com algo que é ao mesmo tempo, um baluarte da inspiração e da magia e também o símbolo do conhecimento racional. Mas a realização do desejo sofre a ação de obstáculos que se impõem a cada tentativa de concretização, pois a menina espera que se instaure uma ponte entre o real e o imaginário e que, por meio disso, ela consiga aquilo que lhe é inacessível, mas que deseja concreto. E o que funciona na história como elemento que faz esse percurso é o símbolo, já que a lua em ouro que o Bobo manda forjar, é apenas uma representação simbólica que evoca a imagem concreta do astro Lua.

Em nossa prática pedagógica, ao lidar com a criança, percebemos a instauração do mesmo impasse: à criança é dada a possibilidade de desejar, e ela vê, na escola, o espaço em que o seu desejo deve ser concretizado, que lhe possibilitará a “cura” de seus males, já que a escola se apresenta como uma possibilidade única de ascensão social, de formação intelectual pela aquisição de um saber institucionalizado como fundamental; e a escola é uma instituição, mas, para a criança, é vista como a ponte entre o real e o mágico (o campo da realização do desejo).

Porém, assim como ocorreu à princesinha do conto, muitas vezes, o que a criança encontra é a interdição de suas expectativas, da mediação da construção do conhecimento, feitas por aqueles que deveriam lhe apresentar meios de satisfazer os seus anseios “os sábios”, ou seja, os professores que não são capazes de assumir uma postura prudente e dialética diante do processo pedagógico, e se esquecem dos anseios da criança em função de uma necessidade individual de auto-afirmação de suas capacidades cristalizadas:

- Quero que me consiga a lua – disse o Rei. - A princesa Letícia quer a lua. Ela vai ficar boa de novo quando tiver a lua.

- A lua? _ exclamou o Senhor Camareiro-Mor, arregalando os olhos, o que o fez parecer quatro vezes mais sábio do que realmente era.  (...)

O Senhor Camareiro-mor enxugou a testa com um lenço e depois assoou ruidosamente o nariz.

- Consegui coisas incríveis para o senhor, desde que estou aqui, majestade _ disse ele. - Por acaso estou com a lista das coisas que consegui para o senhor desde que estou aqui.

E puxou um longo pergaminho do bolso (...)

- Eu lhe consegui marfim, macacos e pavões, rubis, opalas e esmeraldas, orquídeas negras, elefantes cor-de-rosa e cachorrinhos azuis, percevejos dourados, escaravelhos, abelhas em gota de âmbar, línguas de colibri, penas de anjo e chifres de unicórnio, gigantes anões e sereias, incenso, almíscar e mirra, trovadores, menestréis e dançarinas, um quilo de manteiga, duas dúzias de ovos e um pacote de açúcar _ desculpe, foi minha mulher que anotou essas coisas aqui.

Esse fragmento nos apresenta dois elementos importantes que se relacionam à educação; o primeiro é o fato de que o sábio, para justificar sua incompetência no presente, apega-se aos feitos maravilhosos que diz ter feito no passado, ou seja, substitui a virtude da Prudência pela da “Memória”, que significa, nesse caso, uma perversão da Prudência, como Lauand com muita propriedade lembra Pieper: "Por memória entende (Tomás) algo mais do que, por assim dizer, a mera faculdade natural de lembrar-se (...). A 'boa' memória, entendida como requisito de perfeição da Prudência, não significa senão uma memória 'fiel ao ser'. (...) O falseamento da recordação, em oposição à realidade, mediante o sim ou o não da vontade, constitui a mais típica forma de perversão da Prudência".

Verifica-se, dessa forma, que antes o sábio tinha motivação para lidar com o maravilhoso, que assumia uma postura de alguém que detinha o poder intelectual e de realização e o usava para satisfazer ao outro e a si mesmo, ou seja, ele tinha meios e motivação para exercer a Prudência e a docilitas.. Anteriormente, sua ação era pautada na realidade que se apresentava e no seu desejo concretizar sonhos, assim o sucesso adivinha disso, mas, agora, o sábio está acomodado “era um homem grande e gordo”, desmotivado a olhar o outro, a ser um virtuoso da docilitas. Dessa maneira, interdita o desejo e centra-se em si mesmo; gerando o insucesso na sua função, permanecendo nela, somente porque possui o título de “sábio”, (ou de professor), bem como elementos externos que lhe proporcionam uma aparente sabedoria que, na essência, não mais existe: “O Senhor Camareiro-Mor era um homem grande e gordo que usava óculos grossos que faziam seus olhos parecerem duas vezes maiores do que realmente eram. Também faziam o Senhor Camareiro-Mor parecer duas vezes mais sábio do que realmente era.”

Um outro elemento importante a se analisar é a banalização de seus feitos aos olhos da sociedade; a função do sábio não é valorizada nem mesmo por sua esposa, já que ela escreve a lista de compras, algo muito trivial e cotidiano, na lista de glórias do marido.

Vale observar que esse sábio, assim como os outros, nem se propõe a tentar:

- Mandei emissários a lugares tão distantes quanto Samarcanda, Arábia e Zanzibar para lhe conseguir coisas, majestade - disse o Senhor Camareiro-Mor. - Mas a lua está fora de questão. Fica a 55.000 quilômetros daqui e é maior que o quarto da princesa. Além disso, é feita de cobre derretido. Cachorrinhos azuis, tudo bem; mas a lua, não dá.

Tal postura é recorrente entre os assessores do rei (Conselheiro-mor, Mago, Matemático), todos tiram de seus bolsos uma lista de seus feitos passados, prática que salienta o fato de que a burocracia disfarça a incompetência; vale observar que esses feitos estão banalizados pela presença de elementos cotidianos, colocados por suas esposas como “um quilo de farinha, um litro de óleo, linha, agulha, etc”.

A diferença entre eles está apenas no que cada um proporcionou ao rei; enquanto o sábio trouxe, para o rei, seres imaginários, já que é sábio e, por isso, sabia onde se encontravam, conhecia o imaginário e, por isso, o dominava; o mago proporcionou ao rei feitos mágicos que modificaram e transformaram a realidade e também e o matemático que muito bem soube como medir a dimensão das coisas, agora não sabe medir sequer a extensão de sua imprudência. É fato também que, para cada um deles, a lua se apresenta de uma maneira e está mais distante, assim como o está a sua capacidade de exercitar a “reta razão de agir”.

Em função de uma problemática que se instaurou e do comportamento daqueles que deveriam resolver o problema, mas somente o agravam e adiam a sua solução, o desejo da criança fica relegado à impossibilidade, mas isso significaria deixá-la padecer, prática inaceitável e imprudente.

Dessa maneira, os sábios e o mago se distanciam do conflito, assim como muitos professores o fazem diante das expectativas de seus alunos: insistindo em sua condição de sábios, eles se apegam a feitos anteriores, que de nada servem para o sujeito que vive agora; pois o saber passado só tem função quando ele se expõe como experiência que sustenta novas realizações, se esse é cristalizado, de nada servirá para situações presentes ou vindouras.

É preciso acordar as possibilidades criativas do sábio (professor) e embasá-lo por meio da relação entre as reflexões de estudiosos, os seus feitos passados e as suas próprias idéias que devem ter liberdade para surgir. No entanto, essa liberdade vem da Prudência e da Arte, da vontade, da busca, da pesquisa, do desejo inerente a sua função: produzir, conduzir, fazer sair, educar; para, somente depois, a partir dessa formação ou reformulação das concepções pessoais sobre si mesmo e sobre a educação e como essa deve ser concebida e transmitida, desenvolver estratégias de ensino.

Atualmente, é muito comum encontrarmos professores ávidos em busca de “receitas de boas aulas”, ou seja procura-se, com muito boa vontade, algo de fora, com vistas à resolução de problemas externos. No entanto, é preciso compreender que as possibilidades desses manuais se esgotam e, muitas vezes, não apresentam os resultados esperados, já que as soluções apresentadas surgem em função de problemas atuais e singulares que, nem sempre, podem ser relacionados a toda situação semelhante e, isso, acaba por deixar o professor diante de outros conflitos como indisciplina, desmotivação por parte dos alunos, sérias falhas de aprendizagem, rompimento de vínculos afetivos, críticas, entre outros que, fatalmente, geram a desmotivação do professor e a conseqüente falência do ensino e da aprendizagem.

Sendo assim, a falta de Prudência e comprometimento daqueles a quem cabe a função de exercer o saber, causa a manutenção da situação em que a criança fica alheia ao processo de produção e construção do conhecimento.

E, na história, o Bobo percebe isso e utiliza uma perspectiva prudente e dialética de lidar com o problema, ele parte da situação presente, real, e não se apega a seus feitos passados, ou seja, não tenta substituir a virtude da Prudência pela da “memória”, aliás não há, na história, qualquer referência se existiram ou não feitos passados atribuídos ao Bobo, pois a preocupação de sua prática é com o problema presente, com a decisão que deve conduzir sua ação; ele entende que o sujeito principal do processo não é ele e, por isso, não tem que se colocar como protagonista, mas sim se preocupar com a situação instaurada e tem como foco o verdadeiro protagonista do conflito: a princesa doente.

Esse personagem, cuja ação, inicialmente, nos remete ao pitoresco, à simplicidade, ao lúdico, é, na verdade, o homem Prudente, verdadeiro sábio, possuidor de uma atitude racional que utiliza a docilitas e despoja-se da soberba inerente aos sábios, mantendo o coração puro. Segundo Lauand: “esse caráter dramático da prudentia manifesta-se no fato de que ela, sim, é uma atitude racional, é a limpidez da inteligência que vê o real (e isto é uma qualidade moral: só o homem de coração puro vê o real).

A fim de ressaltar o conceito de docilitas é preciso remeter a Pieper: “Sem docilitas não pode haver Prudência perfeita. Mas a docilitas não é evidentemente a submissão e o zelo superficial do 'bom discípulo'. O que o termo designa é aquela disponibilidade leal que, em face da multiplicidade realista das coisas e das situações experimentadas, renuncia a refugiar-se estupidamente na absurda autarquia dum saber fictício. O que o termo designa é aquela capacidade de se deixar ensinar, capacidade que brote, não de uma vaga modéstia, mas simplesmente do desejo verdadeiro - o que já, de resto, necessariamente, contém a autêntica humildade. A falta de abertura e a auto-suficiência intelectual são, no fundo, formas de resistência à verdade das coisas reais; ambas assentam na incapacidade de o sujeito conseguir fazer calar o seu 'interesse'- condição imprescindível da apreensão da realidade.” [5]

A partir disso, surge uma reflexão importante: se o professor se colocar como o protagonista e utilizar seu espaço, o momento em que ele tem para apresentar resultados, produzir conhecimento para se auto-afirmar e se eximir em função do que foi no passado, de exercer a sua condição de ser competente, não haverá espaço para a existência do outro e nem do ensino; assim, os problemas da educação e do ensino, continuarão acontecendo: a criança continuará almejando feitos que os educadores não querem e não podem produzir e continuará “doente por desejar”. É fato que essa metáfora se transfigura em algo muito concreto: a interdição da cidadania, a interdição da leitura, da criatividade, da aprendizagem, do domínio da linguagem, da razão e da Prudência.

É importante que se entenda que as soluções devem ser buscadas no interior da dimensão pedagógica inscrita, nos sujeitos envolvidos nas relações em sala de aula. Se o professor desenvolve sua capacidade criativa e artística, se fundamenta sua prática com estudos constantes, as resoluções de problemas inerentes ao percurso pedagógico virão de sua própria observação do problema e das ações advindas de um sério processo de reflexão para ação. Dessa maneira, as possibilidades do professor serão infinitas e, muitas vezes, ele encontrará no “improviso” (colocamos essa palavra entre aspas, pois os “insights” que o professor tem, quase sempre são resultados de experiências teóricas e práticas acumuladas) a sua própria experiência estética, o seu espanto.

Leontiev e Luria [6] (1968) resumem, em um ensaio sobre as idéias psicológicas de L.S. Vigotsky, alguns aspectos da educação em sala de aula, os quais também norteiam nossas reflexões sobre o processo educativo e suas conseqüências para o aprendiz: “O processo de educação escolar é qualitativamente diferente do processo de educação em sentido amplo. Na escola a criança está diante de uma tarefa particular: entender as bases dos estudos científicos, ou seja, um sistema de concepções científicas. Durante o processo de educação escolar, a criança parte de suas próprias generalizações e significados; na verdade, ela não sai de seus conceitos mas, sim, entra num novo caminho acompanhada deles, entra no caminho da análise intelectual, da comparação, da unificação e do estabelecimento de relações lógicas. A criança raciocina, seguindo as explicações recebidas, e então reproduz operações lógicas, novas para ela, de transição de uma generalização para outras generalizações. Os conceitos iniciais que foram construídos na criança ao longo de sua vida no contexto de seu ambiente social (Vigotsky chamou esses conceitos de “diários” ou “espontâneos”, espontâneos na medida em que são formados independentemente de qualquer processo especialmente voltado para desenvolver seu controle) são agora deslocados para um novo processo, para nova relação especialmente cognitiva com o mundo, e assim nesse processo os conceitos da criança são transformados e sua estrutura muda.”

O Bobo inicia, então, uma performance em que sua postura diante do rei é extremamente prudente, pois busca a visão clara do real, atua como mediador, e não como detentor de conhecimentos plenos e valiosíssimos e sua busca é ajudar o rei a encontrar uma maneira de dar à filha aquilo que a curaria de sua doença; e, nesse momento, ele nos ensina, sem tentar afirmar sua capacidade; partindo de questionamentos - o que é função básica do educador – a agir a partir da contemplação de dados concretos, teorias propostas pela experiência e de sua própria capacidade de pensar e tomar decisões. Ele é consciente de que a protagonista dessa situação é a criança, porém, também sabe que é preciso sua intervenção como mediador e que, como tal, precisa recorrer às “sabedorias prévias”; e, por isso, assume uma postura prudente e dialética, promovendo uma relação entre o seu saber, o saber dos sábios, o qual inferiu mesmo a partir da imprudência demonstrada pelos mesmos, e o saber da criança. Essa decisão se mostra acertada, pois: “Daí que, no art.3 (sempre em II-II,49), dedicado à outra parte quase integral da Prudência, a docilitas, Tomás afirme a necessidade dessa disposição de abertura e acolhimento para aprender, a que se opõem a auto-suficiência e a indiferença negligente (ad 2). O Aquinate volta a lembrar que a Prudência tem por objeto ações particulares e que estas se dão em diversidade praticamente infinita (quasi infinitae diversitates). Assim, para exercer a Prudência, não pode um indivíduo sozinho, em pouco tempo, considerá-las todas. Tomás conclui, remetendo ao cabedal da experiência coletiva: "É necessário considerar atentamente (attendere) as opiniões e sentenças (mesmo não demonstradas) dos anciãos e dos experientes, não menos do que as verdades demonstradas, pois, pela experiência, eles penetram nos princípios". [7]

- O que posso fazer pelo senhor, majestade? - perguntou o Bobo da Corte.

- Ninguém pode fazer nada por mim. A princesa Letícia quer a lua, e ela não vai ficar boa enquanto não a tiver, mas ninguém pode consegui-la. (...)

- De que tamanho lhe disseram que é a lua? _ perguntou o Bobo da Corte. _ E a que distância fica?

- O Senhor Camareiro-Mor disse que fica a 55OOO quilômetros e que é maior que o quarto da princesa Letícia - disse o Rei. _ O Feiticeiro Real disse que fica a 250000 quil6ometros e que é duas vezes maior que esse palácio. O Matemático Real disse que fica a 50000 quilômetros de distância e que tem metade do tamanho deste reino.

O Bobo da Corte dedilhou seu alaúde durante um certo tempo.

- São todos sábios -disse ele- e todos devem estar certos. Se todos estão certos, então a lua deve ter exatamente o tamanho e a distância que cada um acha que tem. A questão é descobrir de que tamanho a princesa Letícia acha que ela é, a distância que se encontra. (...)

- Vou lá perguntar a ela.

Por meio de um pensamento prudente, o Bobo recorre a uma espécie de lógica do universo e, ao contrário dos sábios que sabem a distância e a matéria da lua, mas falta-lhes motivação para buscá-la (como ocorre com alguns professores que sabem o que é um processo pedagógico eficiente, mas falta-lhes motivação para percorrer a distância que os separa) toma a decisão de consegui-la, a partir da reta razão da menina. Assim, o Bobo também enfatiza a importância de inserir a criança como sujeito atuante, agente da construção do conhecimento. Então, esse sujeito, representante do lúdico _ que, tantas vezes, é tido como elemento alienável e que pode ser excluído _ parte para sua investigação, pois ele sabe, que, para alcançar êxito, é preciso conhecer e inserir em sua atuação o universo da criança.

Poderíamos corroborar o acerto dessa atitude do Bobo por meio das reflexões de Vigotsky [8] para quem a concepção de ser humano do é a concepção do ser criativo, que se relaciona com o mundo de forma dialética, demonstrando que a linguagem, o próprio meio através do qual a reflexão e a elaboração da experiência ocorrem, é um processo extremamente pessoal e, ao mesmo tempo, um processo profundamente social; bem como defende uma metodologia que privilegia a mudança e evidencia que a cada estágio do seu desenvolvimento, a criança adquire meios para intervir de forma competente no seu mundo e em si mesma.

Então, intervindo em seu mundo, a partir de suas experiências, capacidade de observação, reflexão e espírito criador, a princesinha dialoga como Bobo:

- “Você trouxe a lua para mim? _ perguntou ela.

- Ainda não _ respondeu o Bobo da Corte - mas vou consegui-la agora mesmo. De que tamanho você acha que ela é?

- É só um pouquinho menor que a unha do meu dedão - disse ela - porque, quando a coloca na frente da lua, ela a cobre direitinho.

- E a que distância ela está? - perguntou o Bobo da Corte.

- Ela não fica mais longe que árvore grande do lado de fora da minha janela - disse a Princesa, porque às vezes ela fica presa nos galhos mais altos. (...)

- A lua é feita de quê, Princesa? - perguntou ele.

- Oh! disse ela. - De ouro, é claro, bobinho.

De posse dessas informações, o Bobo da Corte precisa imitar e sintetizar essa realidade, é nesse momento que a Prudência se associará à Arte, e “a reta razão de agir” será a condutora da “reta razão de produzir”. Então, sua opção é recorrer à arte, pois essa é mimese, síntese e superação da realidade; busca o joalheiro real, artista exímio capaz de “construir a lua” por meio de sua arte; dessa forma, o ourives utiliza a arte, como “a faculdade de produzir coisas boas” para auxiliar o Bobo na conquista do seu intento: curar a menina.

Estando a lua pronta, o Bobo a leva para Letícia, que de posse da convivência com esse objeto de arte que ela mesma ajudou a produzir por meio da sua atuação essencial na construção do conhecimento (a concepção da lua que deveria ser dada), cura-se, superando, dessa forma, sua realidade.

Assim, o Bobo e a Princesa nos mostram o quanto é importante que, num processo de construção do conhecimento e na busca de resultados satisfatórios no interior da dimensão pedagógica, estabeleça-se uma relação dialética, em que se valoriza o real e se atribui importância a todos os sujeitos envolvidos, pois cada um deve dar a sua contribuição, pois é parte integrante e fundamental do tecido que se concebe.

Talvez seja possível associar o processo de construção do conhecimento ao próprio processo de escrita de um texto e sua leitura. Imaginemos um texto, cada personagem tem sua função na história, sendo protagonista, antagonista, adjuvante ou coadjuvante, cada personagem é “linha que forma o tecido” e sua ausência implicaria no prejuízo do objeto, sua ação descomprometida ocasionaria defeito. Suponhamos que a linha resolvesse não querer se relacionar com o narrador, se recusasse a se enlaçar às outras, de forma oposta, não se conceberia uma dialética (relação entre universos opostos para a formação de um todo), assim o tecido não se sustentaria, o objetivo não seria atingido, pois a história não se constituiria e os personagens não superariam sua condição individual e, portanto, não poderiam se desenvolver em profundidade, já que a profundidade da personagem se dá pela relação com o universo em que ela está inserida. A história não aconteceria, e, portanto, não poderia ser lida, já que os personagens recusaram-se a interagir para construírem um todo.

Dessa forma, o que restaria ao leitor, se não somente um desfile de seres individuais que estão preocupados com a manutenção da sua própria condição? Ou seja, o processo de leitura estaria também fadado ao insucesso.

Assim é a educação, se os sujeitos envolvidos no processo se recusam a se relacionar de maneira dialética, se não valorizam a sua individualidade, mas permitem a montagem de um simulacro da composição de um todo, o que se vê é um mascaramento da verdadeira função da educação: “educare” para a formação de um sujeito integral. E veremos que, embora existam sujeitos pertencentes ao processo pedagógico, ele não se constrói corretamente, não se sustenta no universo, não tem solidez, fica como o tecido em que as linhas recusaram o entrelaçar. E, aí, fica relegada, ao estudioso da educação, a condição de espectador de um desfile de aparições individuais, superficiais e imprudentes.

Essa relação dialética com o real, a busca da superação das representações do mesmo, por parte do aluno, e o conseqüente desenvolvimento das capacidades criativas e criadoras do sujeito, devem ter a arte como mediadora, pois, segundo Buoro [9] : “A vida adquire sentido para o ser humano à medida que ele organiza o mundo. Por meio das percepções e interpretações, os sistemas externos da realidade são mapeados nos sistemas internos do ser e o cérebro humano vai também se desenvolvendo no contato com essa realidade. (p.19).

Na sua obra La Imaginación y el Arte em la infancia, Vygotski [10] discute algumas idéias sobre o desenvolvimento da imaginação criadora, assim como seus mecanismos de funcionamento. Segundo o autor, a percepção interna e a externa são o começo de um processo que serve de base para nossa experiência criativa. Os primeiros pontos de apoio que a criança encontra para sua futura criação advêm do que ela vê e ouve, acumulando materiais que usará para construir sua fantasia. Como pudemos observar, a performance da Princesa se desenvolveu justamente a partir de sua relação com o universo, pois a partir dessa, é que pôde gerar o conhecimento e facilitar a decisão do para o Bobo de modo que ele finalizasse sua atuação e lhe conseguisse a lua.

A princesa sabe o tamanho da lua porque o experimentou, ela vivenciou, construiu o tamanho da lua à medida que tentou tocá-la e o relacionou com o seu próprio universo: a “unha do dedão”; ela sabia a distância porque investigou “não fica mais longe que a árvore grande do lado de fora da minha janela” e depois tirou conclusões “porque, às vezes, ela fica presa nos galhos mais altos da árvore”. A princesinha criou conceitos esponte vivenciou o que Amélia Domingues de Castro [11] alude como situação pré-didática, nas “quais se aprende, sem que ninguém tenha ensinado, por aquela espécie de impregnação à qual se refere (ao fazer uma leitura comparada com o poema “A educação pela pedra” de João Cabral de Mello Neto) como a nostalgia do sertão”: “lá a pedra entranha a alma”. Sentimentos e convicções são adquiridos, “entranhando a alma”. Para a autora: “(...) as crianças descobrem, por si mesmas, graças à sua interação com o mundo físico e social, uma enorme quantidade de informações que vão se coordenando no decurso da construção de sua inteligência. Descobrem propriedades dos objetos e características do comportamento humano, inclusive do seu próprio. Têm concepções acerca da natureza e da vida que são sujeitas a modificações, sem que percam sua origem espontânea.”

Enfim, a menina construiu seu conhecimento, e, depois, para torná-lo concreto, necessitou de um mediador que possibilitasse sua interação com o objeto desejado, o qual vai se valeu da arte para transformar “o ouro em lua” a “água em vinho”.

Para Vigotski [12] :, “o milagre da arte lembra antes outro milagre do Evangelho – a transformação da água em vinho, e a verdadeira natureza da arte sempre implica algo que transforma, que supera o sentimento comum, e aquele mesmo medo, aquela mesma dor, aquela mesma inquietação, quando suscitadas pela arte, implicam o algo a mais acima daquilo que nelas está contido. E este algo supera esses sentimentos, elimina esses sentimentos, transforma a sua água em vinho, e assim se realiza a mais importante arte. A arte está para a vida como o vinho para a uva – disse um pensador, e estava coberto de razão, ao indicar que a arte recolhe da vida o seu material mas produz acima desse material algo que ainda não está nas propriedades desse material.

Verifica-se, deste modo, que o sentimento é inicialmente individual , e através da obra de arte torna-se social ou generaliza-se (...) Devemos reconhecer que a ciência não só contagia com as idéias de um homem toda uma sociedade, que a técnica não só prolonga o braço do homem; do mesmo modo, a arte é uma espécie de sentimento social prolongado ou uma ‘técnica de sentimentos’. A arte, deste modo, surge inicialmente como o mais forte instrumento na luta pela existência, e não se pode admitir nem a idéia de que o seu papel se reduza a comunicar sentimentos”, ela os supera.

Resolvido o primeiro impasse, pois, na manhã seguinte, a princesinha estava curada, um outro surge_ assim como ocorre na dimensão pedagógica_ a lua apareceria novamente no céu quando chegasse a noite. Então, como o rei não tinha a compreensão que quando sua filha pediu a lua e a sugeriu pequena, de ouro e em um cordão, ela estava, na verdade, imitando, sintetizando e superando o real que ora se apresentava, preocupou-se muito com o que aconteceria quando a filha visse a lua no céu outra vez.

O Rei chamou todos os sábios que, novamente, trataram o conflito com distanciamento e a Princesinha como um sujeito passivo e pouco importante enquanto ser humano e social, alguém a quem deveria ser atribuídas interdições: não poder ver com uns óculos escuríssimos, não poder respirar, pois o castelo deveria ser coberto com uma lona, não poder dormir, pois se “apagaria o escuro e a lua” com fogos de artifício.

Essa situação também pode ser comparada à educação pois, muitos professores, por não estarem motivados para atuar de maneira dialética, interditam seus alunos de todas as maneiras possíveis; pois para que o aluno não veja as falhas do seu processo educativo, impossibilita ao “aprendiz” a capacidade de ler o universo, de se relacionar com o mundo das idéias, com o mundo do sensível sobre o qual falava Platão, de pensar sobre esse e sobre o real também, de exercer sua cidadania.

- O Senhor Camareiro-Mor tamborilou com os dedos na testa pensativamente e disse:

- Já sei. Podemos fazer uns óculos escuros para a princesa Letícia. Eles podem ser tão escuros que ela não vai conseguir ver absolutamente nada com eles. E aí ela não vai ver a lua brilhando no céu. (...)

- Se ela usar óculos escuros, vai esbarrar nas coisas disse ele - e vai ficar doente outra vez.  (...)

- O Feiticeiro Real plantou uma bananeira e encostou a cabeça no chão; depois ficou de pé outra vez.

- Já sei o que vamos fazer - disse ele. - Podemos colocar cortinas de veludo negro na ponta dos mastros. As cortinas vão cobrir todos os jardins do palácio como uma tenda de circo, e a princesa Letícia não vai conseguir ver através delas, e, assim, não verá a lua no céu. (...)

- As cortinas negras não vão deixar o ar passar (disse o Rei). (...)

O Matemático Real andou em círculos, depois em quadrados, e finalmente parou (...).

- Vamos queimar fogos de artifício nos jardins todas as noites. Vamos fazer muitas chuvas de prata e cascatas de ouro e, quando elas explodirem, vão encher o céu tantas faíscas que vai ficar claro como o dia, e a princesa Letícia não vai conseguir ver a lua.

(...) Os fogos de artifício não vão deixá-la dormir. (disse o Rei).

Como pudemos observar, os sábios, embora tivessem possibilidades de criar competências para resolver esse novo problema, não o fazem, pois suas performances estão completamente vinculadas ao concreto, o que é estranho, pois suas funções consistem em justamente lidar com o contrário, com o abstrato, ou pelo menos em associar os dois. Essa situação alcança a sua concretude total, no momento em que o Feiticeiro encosta a cabeça no chão, justamente o elemento que deveria estar em contato com o mundo das idéias, é relegado ao mais espaço concreto, como se fosse preciso, para resolver problemas, algo além de estar com os “pés no chão” - forma popular de se chamar a razão à tona - como se fosse preciso estar com a “cabeça no chão”.

Assim sendo, a lua nasceu no céu e novamente o Bobo intervém, do mesmo modo que o fizera antes, valorizando o conhecimento científico dos sábios sem se esquecer da importância de Letícia enquanto agente do processo e enquanto produtora do conhecimento almejado:

- Olhe! Gritou ele. - A lua já está brilhando no quarto da princesa Letícia. Quem vai explicar por que a lua brilha no céu se está pendurada numa corrente de ouro em volta do pescoço dela?

O Bobo da Corte parou de tocar seu alaúde.

- Quem soube dizer como conseguir a lua quando seus sábios disseram que ela era grande e distante demais? Foi a princesa Letícia. Portanto, a princesa Letícia sabe mais que seus sábios e conhece melhor a lua do que eles.

E assim fez o Bobo, mas esse acabou sendo surpreendido com a Prudência e com o poder da princesa de solucionar e superar o real - sofreu uma experiência estética, um espanto - o qual é também possibilitado ao leitor quando da leitura do texto. E quando relacionamos essa história à educação, podemos também vislumbrar que esse espanto estético, também é experiência vivida pelo professor quando, por meio de sua mediação, o aprendiz vence as interdições propostas pelo real e consegue se revelar como sujeito reflexivo, sábio, sensível, social, prudente.

“-Diga-me, princesa Letícia - disse ele pesarosamente - Como a lua pode brilhar no céu se ela está pendurada numa corrente do ouro em volta do seu pescoço?

A Princesa olhou para ele e riu.

- É fácil, bobinho - disse ela. - Quando cai um dente meu, cresce um novo no lugar, não é?

- Claro - disse o Bobo da Corte. - E quando o chifre do unicórnio cai na floresta, nasce outro no meio de sua testa.

- Certo - disse a Princesa. - E quando o Jardineiro Real colhe as flores dos canteiros, outras flores brotam em seu lugar.

- Eu devia ter pensado nisso - disse o Bobo ca Corte, pois acontece a mesma coisa com a luz do dia.

- E com a lua também- disse a princesa Letícia, - Acho que é assim com todas as coisas.

Sendo assim, esse conto nos leva a refletir sobre a necessidade de se proporcionar uma educação pelo viés da Prudência e da dialética, pois assim, se permite à criança participar como sujeito ativo dos processos educacionais que se instauram. É preciso também abrir possibilidades para a exposição da lógica infantil, possibilitada por um espírito livre, inventivo, que muitas vezes, cumpre uma função singular dentro da educação: que é revelar ao professor a sua importância enquanto mediador da construção do conhecimento.

O educador deve se inserir dentro da dimensão pedagógica como um sujeito reflexivo, pesquisador, e que como afirma Guimarães Rosa “mestre não é aquele que sempre ensina, mas que, de repente, aprende”.

Há ainda que se pensar que também a leitura das histórias deve ser feita por meio de um procedimento dialético, artístico - já que o leitor também é um criador- para que o texto possibilite imitação, síntese e superação da realidade, e que isso contribua para sua formação humana e profissional, e, dessa forma, possa aceitar os desafios que se mostram e que renovam o aprender, com o surgimento de uma “nova lua” ou de “muitas luas”. E, para compreender ou explicar o porque dessa nova aparição, seja capaz de reconhecer o poder mágico dado pelas explicações infantis, pela imaginação que se renova, seja capaz de criar estratégias baseadas na ciência, no lúdico e na arte, para tornar a sua Didática a verdadeira ciência e arte de ensinar e associá-la a prudência: a arte de decidir.

Dessa maneira, a leitura deve se mostrar como convite, pois como afirmou Tatiana Belink: “não se deve impor, deve-se expor a leitura”, como um meio para que tanto o educador como o educando possam reconhecer, no texto, as palavras mágicas capazes de transformar a realidade, assim como ocorreu nessa história em que sua singularidade está na mágica que não é proferida por um agente externo como uma fada com poderes sobrenaturais, mas pela própria criança, que atua como um dos atores protagonistas da dissolução dos conflitos tão adiados e agravados por aqueles que eram intitulados “sábios”, uma criança que com a sua cultura supera a cultura letrada dos sábios. E é especial a mágica também contida e revelada na Prudência do Bobo, na simplicidade genial de sua prática baseada no pensamento e na decisão de propor uma relação dialética entre a cultura dos sábios, a sua própria e a cultura da criança e, assim, a resolução das dificuldades instauradas.

O saber da criança e o saber do professor: atando as duas pontas da vida

O conto “Luas e luas” coloca em cena a “criança Prudente” que estende a sua reta razão para conduzir a reta razão de agir do Bobo. Essa criança que ensina por meio de um conhecimento adquirido de maneira espontânea ou pré-didática, nos remete a outra criança que também constrói sua educação de maneira pré-didática: o neto do senhor que foi expulso de casa pelo filho ingrato, o qual corrobora por meio da didática ilustrativa propiciada pela narrativa do cancioneiro popular, o provérbio popular “Dizem que um pai cria dez filhos, mas dez filhos não criam um pai.”

Nessa história, mais uma vez a narrativa cumpre a sua função didática de nos conduzir para a assimilação das virtudes, em especial, da Prudência e da Justiça. E, por meio da Prudência da criança, instaura uma educação moral contra a ingratidão para com os idosos, pois essa é abominável já que “a gratidão é o valor árabe supremo” [13] .

Esse provérbio, fruto de uma sabedoria popular, nos remete aos provérbios árabes, que originaram a Pedagogia do Mathal [14] , a qual também é uma forma de didática da ilustração que se concebe agora, não mais pelo viés literário, mas pela sabedoria expressa pela linguagem popular. Essa linguagem, segundo Lauand, merece o respeito de São Tomás: “Tomás tem um enorme respeito pela linguagem do povo “Multitudinis usus, quem in rebus nominandis sequendum”, “o uso comum do povo que deve ser seguido...”, assim começa a Summa Contra Gentiles. A linguagem comum é, até mesmo, por ele considerada depositária de sabedoria, quando devidamente trabalhada, garimpada e, eventualmente, corrigida.”(p.15)

Para Lauand, “assim como a prudentia – virtude intelectual, informa o bem agir, realizando uma ponte entre o abstrato e o concreto, precisamente esta também é uma função dos amthal: a realidade vivida transforma em experiência e essa condensa-se em provérbio que, por sua vez, volta para a realidade, iluminado-a e permitindo sua leitura.”

Abaixo, apresentamos a letra da canção a que nos referimos:

 

Couro de Boi

 

Declamando:
Conheço um velho ditado que é do tempo do Zé Gaio
Diz que um pai trata dez filhos, dez filhos não trata um pai
Sentindo o peso dos anos sem poder mais trabalhar
O velho peão estradeiro com seu filho foi morar
O rapaz era casado e a mulher deu de implicar
Você manda o velho embora se não quiser que eu vá
E o rapaz coração duro com seu velho foi falar”.

Cantando:
Para o senhor se mudar meu pai eu vim lhe pedir
Hoje aqui da minha casa o senhor tem que sair
Leva este couro de boi que eu acabei de curtir
Pra lhe servir de coberta onde o senhor dormir

O pobre velho calado pegou o couro e saiu
Seu neto de oito anos que aquela cena assistiu
Correu atrás do avô seu paletó sacudiu
Metade daquele couro chorando ele pediu

O velhinho comovido pra não ver o neto chorando
Partiu o couro no meio e ao netinho foi dando
O menino chegou em casa, seu pai foi perguntando
Pra que você quer este couro que seu avô ia levando
Disse o menino ao pai um vou me casar
O senhor vai ficar velho e comigo vem morar
Pode ser que aconteça de nós não se combinar
Esta metade do couro vou dar pro senhor levar.

Essa composição nos traz do cancioneiro popular um grande exemplo de exercício da Prudência por parte da criança que observa os fatos injustos e apesar de estar emocionalmente envolvida com eles, consegue fazer com que a razão, condutora das retas ações, dirija sua decisão.

Enquanto o pai do menino age de forma condenável, rompendo laços familiares, expulsando e abandonando o pai que lhe criou e agora está idoso e dependente, por conta de uma chantagem da esposa e dando para o seu próprio filho um exemplo de incorreção moral, o neto, menino de coração puro, nos mostra que muito podemos aprender com a Prudência da criança, pois seu poder de decisão, vence qualquer imprecisão que pudesse desviar sua conduta, como a ameaça de um castigo, e então ele vai até o avô e pede-lhe o couro que figuraria como elemento concreto para dar uma lição de Prudência ao pai.

Assim, é importante que o educador se permita agir com a humildade de quem não tem uma resposta pronta, que saiba ouvir, calar, espantar-se, que busque sempre a lucidez para ver a realidade e tomar as decisões corretas e seja, assim, Prudente; bem como, quando se fizer necessário, que a sua Prudência lhe permita aprender com seu aluno e acatar suas retas razões de agir, suas decisões, pois muitas vezes, em função de uma pseudo-autoridade comete-se injustiças e se abdica da razão e de enxergar a realidade tal qual ela é.

A criança, muitas vezes, mostra ao educador o desvio do curso dos rios, no momento em que se caminha com ela, e o conduz para o norte certo de maneira simples e definitiva, superando os pseudo-sábios, aqueles que estão com a vista turva por conta das reminiscências inefáveis do passado, como pudemos observar por meio da didática das duas narrativas eleitas.

Dessa maneira, educador deve inspirar suas ações nos ensinamentos de São Tomás que diz: “aquele que ensina deve tocar o sentimento, mover ao afeto e isto acontece quando faz com que o discípulo ‘seja movido ao amor das realidades significadas pelas palavras e queira pô-las em prática: e isto ocorre quando a formulação é tal, que o ouvinte se emociona’ (quod aliquis amet ea quae verbis significantur, et velit e a implere: quod fit dum aliquis sic loquitur quod auditorem flectat)”.

Referências Bibliográficas

AQUINO, S.T. Questão 57: a Distinção da Virtudes Intelectuais, artigo 4. (no prelo).

BUORO,A.B. O Olhar em construção. São Paulo: Cortez,2000.

 ____________Olhos que pintam:        a leitura da imagem e o ensino da arte. São Paulo: Educ/Fapesp/ Cortez,2002.

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[1] . Profa. Graduada pela UNESP- São José do Rio Preto. Mestra em Teoria Literária, pela Unesp São José do Rio Preto. Doutoranda em Educação na USP- São Paulo. Professora de Linguagem – Prática de Textos e Didática na UNICERES- São José do Rio Preto e professora de Literatura e Redação nos Colégios Anglo, Objetivo e Coc, na região de São José do Rio Preto. e-mail: colaviti@terra.com.br

[2] LAUAND, J.L.Notas de aula. Curso de Filosofia Medieval. USP,2003.

[3] SIMON, M. Luas e Luas. São Paulo: Ática, 1993.

[4] CHEVALIER, J. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,

 figuras, cores, números). Jean Chevalier, Alain Gheeerbrant, com a colaboração de:

André Barbault... [et al.}; coordenação Carlos Sussekin; trad. Vera da Costa e

Silva...[et al.]. 11ª ed. Rio de janeiro: José Olympio, 1997.

[5] PIEPER, Josef Virtudes Fundamentais, Lisboa, Aster, 1960, p. 26.

[6] LEONTIEV,A.N. E LURIA,A. R. “The psychological ideas od L.S. Vygotski”, em B.B. Wolman, ed., historical Roots of Contemporany Psychology, N. York, harper anda row,1968,p.338-367.

[7] LAUND,J.L. A Arte de Decidir: A Virtude da Prudentia em Tomás de Aquino.

[8] VIGOTSKY. L.S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes,2000.

[9] BUORO,A.B. O Olhar em construção. São Paulo: Cortez,2000.

[10] VYGOTSKI,L.S. La imaginación y el Arte em la infancia. Madri, Akal, bolsillo, 1982. P.31.

[11] CASTRO, A.D. Ensinar a Ensinar- Didática para o ensino fundamental e médio. São Paulo: Pioneira Thomson Learning,2002.

[12] VIGOTSKY. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes,1998.

[13] LAUAND, J. Prefácio in: Provérbios e Educação Moral. São Paulo: Série Acadêmica,1997.

[14] Idem.