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A Cura (Sorge) e a Virtude da Prudentia - a Queda (Verfallen) do Dasein e o Pecado da Acídia

(a ontologia fundamental de M.Heidegger e
o pensamento de Tomás de Aquino)

 

Marcos Oreste Colpo [1]

 

Procuraremos demonstrar nesse artigo que a compreensão da CURA (Sorge) [2] , uma das características ontológicas [3] do ser-aí [4] ressaltada pela ontologia [5] de Martin Heidegger(1889-1976), como a compreensão da virtude da Prudentia, tal como ela se inscreve no pensamento de Sto. Tomás de Aquino(1227-1274), estão implicadas ao desvelamento do sentido daquilo que se apresenta. O termo sentido (Sinn em alemão) quer dizer “(...) indo em uma determinada direção”, “(...) estando a caminho de algum lugar” (BOSS, 163, p.86). O que queremos observar é que o desvelamento do sentido, pode nos orientar em relação às nossas decisões e, como também salienta a ontologia de Heidegger, para a possibilidade do próprio, condição a ser conquistada, uma vez que em Ser e tempo, Heidegger observa que o ser-aí na cotidianidade existe no modo de ser da impessoalidade, ou seja, do próprio-impessoal (das man).

O próprio da pre-sença [6] cotidiana é o próprio-impessoal que distinguimos do si mesmo em sua propriedade, ou seja, do si mesmo apreendido como próprio” (HEIDEGGER, 1988, p.182).

A virtude cardeal [7] da Prudentia, como postula Sto. Tomás de Aquino é uma virtude da inteligência, da ratio, portanto, uma inteligência reta capaz de ver a realidade e tomar uma decisão a partir dessa compreensão. O pensamento de Heidegger pode oferecer uma significativa contribuição à compreensão da virtude da Prudentia, uma vez que para a compreensão do real, está em jogo o desvelamento do sentido daquilo que se apresenta a nós.

“(...) o que num sentido extraordinário, se mantém velado, ou volta novamente a encobrir-se ou ainda só se mostra desfigurado não é este ou aquele ente [8] , mas o ser dos entes (o sentido) [9] ” (HEIDEGGER, 1988, p.66).

Num segundo momento, aproximaremos o pecado ou vício capital [10] da Acídia, que para Sto. Tomás figurava como um dos sete pecados capitais, junto com a vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula. Tal pecado, no entanto, recebeu uma nova interpretação após a Idade Média, sendo compreendido como o pecado da preguiça. Segundo o prof. Lauand, nas suas notas introdutórios da tradução do livro de Sto. Tomás, Sobre o ensino (De Magistro) - Os sete pecados capitais, observa que tal substituição implicou num empobrecimento, pois a acídia medieval em muito contribuiria para a “(...) compreensão do desespero do homem contemporâneo” (LAUAND, 2001, p.66). O pecado ou o vício capital da acídia em Sto, Tomás, nos remete para a dissipação do espírito, voltada para a avidez de novidades, “(...) pela inconstância da decisão, pela volubilidade e pela insatisfação insaciável da curiosidade” (Ibidem), temas estes que são centrais no modo de ser da época atual.

Procuraremos implicar o pecado ou vício da acídia à queda (Verfallen) do ser-aí, uma outra estrutura ontológica de ser do ser-aí. Convém observar, que a noção de pecado é comumente interpretado como uma transgressão de um preceito ou mandamento religioso, sendo que o sentido do pecado como veremos está fortemente implicado a restrição da liberdade do ser-aí.

Demonstraremos tais posicionamentos, orientados pela ontologia de M.Heidegger publicada em 1927 com o título Ser e tempo e outros escritos após 1930, quando se dá uma mudança (Kehre) do seu pensamento, que na verdade são desdobramentos dessa ontologia fundamental de 1927.

Heidegger e Sto. Tomás de Aquino são dois grandes pensadores separados historicamente por sete séculos. Sto. Tomás um dominicano que após quase mil anos da presença do pensamento de Sto. Agostinho (354-430) como balizador  do pensamento cristão, abre novos e significativos desdobramentos para o cristianismo ao implicá-lo ao pensamento de Aristóteles, um filósofo que fora banido pela própria igreja. Heidegger é um pensador inscrito no século 20, talvez um dos maiores pensadores desse século, que salienta-se por propor uma desconstrução do pensamento metafísico. Segundo Heidegger o pensamento metafísico caracteriza-se por interpretar “o ser” de modo objetivado (Vorhandenheit) [11] , ou seja, interpreta-o orientado por um sentido, em que se procura por aquilo que é nuclear, substancial, universal e permanente do ente. O pensamento metafísico ao interpretar o ser nesta perspectiva objetivada elimina a diferença ontológica entre ser e ente, esta é a explicitação do porque Heidegger entende que o pensamento metafísico esqueceu-se da indagação pelo ser e seu sentido. Vamos então à primeira demonstração, ou seja, a implicação da Cura e da virtude da Prudentia à questão do desvelamento do ser (seu sentido).

Nas páginas centrais de Ser e tempo (1927), M.Heidegger reflete sobre a totalidade estrutural de ser do ser-aí (Dasein) [12] como Cura [13] (Sorge). Neste artigo também utilizaremos as expressões: cuidado e preocupação para Sorge, respeitando-se, contudo a diferenciação dos termos conforme observa  Heidegger em Ser e tempo. Em relação ao ser-aí junto aos entes intramundanos, ou seja, daqueles entes imediatamente disponíveis para nosso uso imediato (os úteis), diz Heidegger: “desses entes o ser-aí cuida”, em relação aos outros entes, tais como o próprio ser-aí, ele se preocupa, ou solicita-os. Convém observar que as expressões: cuidado e preocupação não se referem a princípios morais, elas apontam para a condição ontológica do ser-aí, portanto, para as diferentes possibilidades de relação do ser-aí junto às coisas e aos outros. O cuidado apontado por Heidegger contempla o modo positivo de cuidar dos entes implicados ao zelo, à conservação das coisas, como a preservação da história, do patrimônio cultural de um país, das coisas que nos remetem às nossas realizações significativas e afetivas de nossa história pessoal, inclui também o cuidado para com o sentido de certos rituais, práticas e símbolos como da própria linguagem. O cuidado também contempla os modos deficientes, como a negligência, o desleixo, a indiferença, a deturpação, etc. Com relação aos outros, o ser-aí preocupa-se, ou solicita-os, de modo a ter consideração, paciência, expectativas, como cabe também falarmos da indiferença, da dominação, da impaciência, da apatia, da competitividade, etc. Como vemos, o sentido da CURA (Sorge) é amplo e estará fortemente implicado ao sentido que esses entes exibem na nossa existência, sempre implicados ao co-existir, pois o ser-aí é fundamentalmente “ser-no-mundo”.

Heidegger indaga-se em Ser e tempo sobre a possibilidade de uma apreensão ontológica do ser-aí que contemple uma totalidade, um todo estrutural, uma vez que nos capítulos precedentes reflete sobre outras características ontológicas ou existenciais do ser-aí, como o compreender (Verstehen), o encontrar-se (Befindlichkeit), a queda, ou sujeição (Verfallen), a espacialidade entre outros existenciais que serão analisados no decorrer de Ser e tempo, como: a angústia, a finitude (ser-para-a-morte), a temporalidade, a culpabilidade e a corporeidade.

Para que possamos acessar o ser do ser-aí que perfaz esta totalidade existencial ou o todo estrutural que caracteriza ontologicamente o existir humano, Heidegger faz-se a seguinte indagação guia: “...queremos apreender ontologicamente a totalidade do todo estrutural”(HEIDEGGER, 1998, p.255) do ser-aí, de modo que suas reflexões avançam nessa direção no parágrafo 41 e 42 de Ser e tempo. Para que possamos explicitar esse percurso e de modo sintético destacaremos uma sentença que nos parece basilar para o encaminhamento dessa questão:

A pre-sença [14] é um ente que, sendo, está em jogo seu próprio ser”(HEIDEGGER 1998, p.256).

Dirá Heidegger, mais adiante, que, com a expressão “está em jogo”, estamos nos referindo às condições em que o ser-aí se projeta para um poder-ser mais próprio. É neste sentido, pois, que a Cura (Sorge) será entendida como este todo estrutural, uma vez que o cuidado e a preocupação acham-se implicadas a essa possibilidade de o ser-aí evadir-se de ser-si-mesmo-próprio ou mesmo de não ir ao encontro dessa possibilidade, enredando-se na impropriedade. O sentimento de angústia no pensamento de Heidegger, mostra-se como sendo um sentimento que abre a possibilidade do ser-aí para o próprio, na medida em que tal sentimento paralisa o movimento da impropriedade, por promover uma desconexão de mundo, ou seja, o sentido que antes vigorava mesmo na impropriedade agora não mais vigora. Há uma retração do sentido, uma experiência do “nada”, fazendo com que o ser-aí fique suspenso num vazio, sem sentido. Mas é justamente por conta dessa retração do sentido alocado na impropriedade é que o ser-aí pode perguntar-se sobre o seu próprio poder de ser. Qual é o sentido da minha vida?  Qual é a minha afinal? Devemos salientar que o próprio diz respeito a uma tomada de decisão, a uma escolha do ser-aí. O ser-aí ao empunhar [15] (eigens ergriffen) uma possibilidade, ele recorta um sentido próprio para a sua existência, de modo que a condição própria não significa uma opção inédita, original e sim diz respeito a uma escolha, a uma implicação.

O que estamos denominando por impropriedade do ser-aí será demonstrado no capítulo quanto de Ser e tempo, onde Heidegger indaga-se sobre “(...)quem é a pre-sença na cotidianidade?” (HEIDEGGER, 1988, p.164). Na indagação de quem é o ser-aí na cotidianidade, Heidegger observa que, sob o ponto de vista ôntico [16] , mostra-se evidente que eu sou um ente distinto dos outros (ser-aí). No entanto, sob o ponto de vista ontológico [17] , tal distinção não se mostra tão evidente ou patente. O que isso quer dizer? Heidegger nos mostrará que o ser-aí na cotidianidade se encontra absorvido pelo ente intramundo do qual ele cuida, com o qual lida e do qual se ocupa, de modo que ele se encontra enredado nas regras de lida e manuseio que pertencem a todos nós (impessoal). Estes entes acessíveis na lida cotidiana dos quais nos absorvermos já estão implicados a uma rede de relações de significação e sentido, inscritos numa cultura e numa época, de modo que os encontramos nos seus para quês, com suas regras de manuseio e de ação, que Heidegger denominou de conexões instrumentais.  Assim, um prego nos remete ao martelo e ao martelar como uma operação que fixa o prego na parede e através dele penduramos um quadro na parede. O quadro na parede também tem seus significados pessoais e públicos, como embelezar o nosso ambiente e/ou ressaltar o nosso gosto artístico, e/ou  salientar nosso poder de compra, entre tantas outras possibilidades de relação com o quadro, que envolvem certamente nosso co-existir. Heidegger quer chamar a atenção para o fato de que os entes já estão inscritos num contexto de significação e sentido que pertence ao público, estão alocados nessa impropriedade, nessa medianidade. 

Na nossa relação com os outros (ser-aí), como já dissemos, o sentido da palavra Cura (Sorge) será ressaltado como preocupação ou solicitude “...Desses entes não se cuida, mas se procura por eles (Fürsorgen)” (HEIDEGGER,1974, p.137). O que se quer dizer com esses termos é que a nossa relação com o outro ser-aí será pautada por expectativas em relação às suas realizações, de sermos pacientes ou impacientes junto aos outros, de termos consideração para com o outro ou de sermos indiferentes. De modo extremado, podemos superproteger (mimar) o outro de modo a não responsabilizá-lo por seus encargos e tarefas, primordialmente da tarefa de cuidar de suas próprias possibilidades de poder-ser. Um outro modo de preocupação para com os outros tem como horizonte o ficar ao lado, acompanhando-o e até relembrando-o daquilo que lhe compete, ou seja, deixando que o outro assuma suas próprias responsabilidades. Este modo de relação será fundamental tanto para o processo educativo como para o acompanhamento psicoterápico e certamente na nossa relação cotidiana com aqueles que estamos envolvidos.

O ser-com-os-outros cotidiano mantém-se entre os dois extremos de solicitude (preocupação) – aquele que salta sobre o outro e o domina, e aquele que salta diante do outro e o liberta (vorspringend-befreienden)” (SPANOUDIS, 1981, p.42).

Tais preocupações ou solicitudes seguem freqüentemente anseios que são comuns a todos nós, ou seja, esperamos que o cidadão se emancipe, torne-se independente, que ele estude, que consiga um bom emprego, que ele não conte mentiras, que se case, que tenha filhos, entre tantas outras realizações atreladas aos cronogramas públicos (impessoais), já traçados. Nossas expectativas em relação aos outros são as mesmas que pautam o nosso próprio existir. É nesse sentido que Heidegger fala da impropriedade (Verfallen) como um lugar comum, mediano. Tal condição existencial, quando vivida por condicionantes imperativos, como os modismos e tendências uniformizantes, constitui aquilo que se denomina processo de massificação, ou seja, um processo de alienação do ser-aí em relação ao seu poder-ser-si-mesmo-próprio.

Em nossa vida cotidiana, manuseamos objetos, estamos empenhados em resolver problemas práticos, refletimos sobre questões teóricas, fazemos operações matemáticas, falamos com os outros, em conformidade com a situação. Falamos, compreendemos e agimos de modo semi-automático, sem nos darmos conta de como esses comportamentos saem de nós. É como ser falado pela fala comum que nos atravessa, ser agido por modelos de ação que nos comandam. O agir desliza na familiaridade do já sempre conhecido e posto. Nascemos num mundo já interpretado e organizado. Somos introduzidos, pela fala pública, numa dessas formas de organização: sua lógica, seus valores, códigos de ação, esquemas prontos. Quase um script a ser repetido. Aí dentro, submetido aos comandos pragmáticos e valorativos, o estar-aí existe familiarmente abrigado na sua pertença ao público, ao que é de todos. Heidegger diz que vivemos cotidianamente no modo de ser ‘não si mesmo’, isto é, na impropriedade” (OLIVEIRA DIAS, 1984, p.131).

Como ressalta a citação acima, nossa existência mostra-se pautada por esse modo de ser que Heidegger identifica como impróprio, impessoal, no qual estamos estruturalmente implicados desde nosso nascimento (facticidade) [18] . A condição da queda(Verfallen), ou da impropriedade do ser-aí, não deve ser observada depreciativamente. Como nos alerta Heidegger, ela ressalta essa condição estrutural de ser do ser-aí, pois sob essas condições também o ser-aí se organiza no seu co-existir junto aos outros e às coisas. Através desse solo comum encontramos referências e nos situamos, por exemplo: os manuais de utilização das coisas, as regras de trânsito, as regras de um jogo de futebol, o calendário, as leis, as etapas de vida: infância, adolescência, mundo adulto e as responsabilidades que competem a cada momento existencial, etc. O ser-aí encontra-se, assim, abrigado nessa comum pertença, onde ele se comunica com os outros, entende-se e se faz entendido.

Mas, como pudemos observar, essa condição existencial pode abrigar a possibilidade de alienação e extravio em relação ao seu poder-ser-si-mesmo-próprio. Desobrigando-se de seu próprio existir, enreda-se na comum pertença, onde ele se resguarda da responsabilidade sobre sua existência, do confronto com a angústia de ter que ser, num domínio público que lhe protege e o alivia de sua própria culpabilidade (faltas). O movimento próprio está inscrito na senda de um recorte de sentido próprio, o que implicará em decisões e em responsabilidade por sua escolha.

Mas, voltando à sentença guia do inicio de nosso trabalho, quando citamos Heidegger: “A pre-sença é um ente que, sendo, está em jogo seu próprio ser”, a perspectiva do cuidado ou da preocupação(Sorge) deve estar orientada para a realização e desdobramento das possibilidades de ser do ser-aí. A Cura (Sorge) não se realiza somente no sentido de um cuidado para com relação à nossa sobrevivência ôntica, ou seja, das possibilidades e recursos para nossa saúde e sobrevivência. “Também ‘ocupar-se’ da alimentação e vestuário tratar do corpo doente é preocupação”(HEIDEGGER, 1988, p.173). O cuidado, a preocupação  exerce-se fundamentalmente diante das possibilidades de poder ser do ser-aí. O ser-aí é ôntico e ontológico, portanto, o que está em jogo são as possibilidades de realização nesses dois níveis. Na perspectiva de que o ser-aí, segundo Heidegger, existe numa temporalidade primordialmente futura, marcada por uma finitude (ser-para-a-morte), ele se projeta em possibilidades, existe antecipando-se em relação às suas possibilidades de vir-a-ser, quer sejam elas ilusórias, fantasiosas, impróprias ou próprias. È justamente por esse movimento de vir-a-ser, ou de ir-a-si o ser-aí deve decidir-se nessa condição de lançado(ek-sistere) [19] e antecipado em relação às suas realizações. 

A decisão está sob o seu encargo, ou ele “se exime” [20] da responsabilidade, ficando na cola da impropriedade, da impessoalidade que já traçou os caminhos que devem ser seguidos ou o ser-aí assume decisões próprias e corre riscos. Decidir é uma antecipação sem garantias, como vimos sua existência é projeta em possibilidades de poder-ser, nesse sentido, aberto à possibilidade do erro, do engano. As informações sobre o passado (memória), de certo modo, podem balizá-lo, mas não garantem a eficácia futura. Entendo, no entanto, que importa muito o modo como nós decidimos, se realmente empunhados ou ainda ambivalentes e ambíguos com relação ao que na verdade ainda não foi decidido. Nessa condição existencial, do ser-aí projetado em direção a um ‘poder-de-ser’, como pode o ser-aí decidir?

Salientamos no início que a CURA (Sorge), enquanto estrutura de ser do ser-aí, responde pela totalidade estrutural do ser-aí e realiza-se no âmbito ôntico e ontológico, portanto, implicada num horizonte de possibilidades de ser, tendo que decidir, que engajar-se numa escolha. Para tanto, a questão do ser e de seu sentido revelam-se como um eixo orientativo fundamental para qualquer tomada de decisão, perguntas como: Qual é o sentido dessa minha escolha? Que rumo e em que direção o decidido aponta? Essa direção que eu estou dando à minha existência contempla possibilidades que me são próprias? Que perdas e ônus, estarei disposto a arcar? O sentido desvelado me concerne ou ele está ancorado em expectativas públicas, impessoais?

O acesso ao ser dos entes, ou seja, ao sentido daquilo que a nós se apresenta, dependerá de um olhar atento e implicado àquilo que se mostra, tal como se mostra (fenômeno). O acesso não será mediado por “a priori” conceituais ou teóricos e sim pela busca da palavra íntima, de uma proximidade com o vivido de modo a realizar essa possível intimidade reveladora e singular (Zu handen) e não ser pautada pela tentativa de controle e domínio do ente.  Como exemplo, cito o sonho de um jovem estudante de medicina que vive um grande conflito que culminará num surto psicótico, do qual ele se recupera posteriormente. Esse cidadão sonha que um homem enorme, vestido com um avental branco que está portando em uma de suas mãos um gigantesco bisturi. Com um golpe certeiro ele corta a base da torre de uma igreja próxima ao sonhador, que desaba sobre ele, momento em que ele acorda sobressaltado. A indagação sobre o significado desses entes que comparecem no sonho é realizada fenomenologicamente de modo que o homem de branco grande era seu professor de anatomia, um professor brilhante e competente. Esse professor era usualmente muito irônico diante do cadáver que ele dissecava durante as aulas e fazia observações do tipo: aonde há lugar para a alma, o homem é como um tubo onde entra alimento de um lado e sai fezes do outro. Nosso jovem médico começa a viver um conflito intenso, pois mesmo não sendo religioso, tinha uma visão do homem para além da sua condição material, olhava para o homem como um ser transcendente implicado a uma espiritualidade e a um projeto de comunhão com tudo – “religare.  O sentido desse sonho desvela-se de modo claro no corte da torre da igreja, portanto, no corte de sua religiosidade, desabando sobre si suas esperanças e convicções. É claro que não era somente a figura do médico a realizar esse corte em suas possibilidades de ser, algo ali no mundo da medicina estava conflitando com suas convicções e esperanças em relação a um homem transcendente. Com esse exemplo, podemos demonstrar, que o sentido daquilo que se mostra precisa ser acessado respeitando o que se mostra tal como se mostra, sem deformações interpretativas que poderiam nos distanciar do fenômeno enquanto aquilo que foi vivido por esse sonhador.

O ser-aí na cotidianidade acha-se enredado no modo de ser da impropriedade, de modo que a compreensão do real como a de si mesmo(selbst   ), está ancorada nas referências impessoais, que também realizam-se através de referências psicologizadas e cientificistas. Tal condição testemunha a necessidade de uma aproximação do fenômeno sem intermediários, visando buscar o sentido daquilo que se mostra dentro de um horizonte pessoal, singular. Creio que esta condição será balizadora das nossas decisões e dos caminhos a serem trilhados.

“(...) Esse ser quem somos, próprio, precisa ser aprendido, isto é, precisamos aprender a deixar de ser quem somos, impropriamente, para apreendermos a ser quem, propriamente, podemos ser. Aprender a ser quem nós mesmos, propriamente, podemos ser: apesar, independentemente, ou mesmo por causa dos outros. O encontro ou a aprendizagem de ser quem propriamente nós somos é um acontecimento que se abre como uma compreensão, como um dar-se conta em de que fomos o que outros (quaisquer, definidos, vários, inclusive em situações peculiares, personais ou institucionais) quiseram, determinaram que fôssemos, influenciaram-nos” (CRITELLI, 1996, p,123).

A compreensão de si-mesmo do ser-aí como vimos, está enredada à condição da impropriedade, portanto, marcada pela superficialidade da falação (das Gerede), da avidez de novidades (die Neugier) e da ambigüidade (die Zweideutgkeit), que segundo Heidegger, são os três modos como o ser-aí pode decair [21] (Verfallen) na impessoalidade. Os três modos implicados caracterizam-se por tratar tudo de modo superficial, ou seja, com ausência de aprofundamento e de fundamento. Assim falamos sobre tudo sem nos determos sobre o falado e, assim, a superficialidade se cristaliza de tanto se repetir, e acaba por tornar-se verdade. Por esses caminhos da linguagem, ou melhor, da falação, o ser-aí compreende o mundo, os outros e a si mesmo de modo impróprio.

O caráter negativo da impropriedade pode se configurar nesta condição existencial de alheamento de si mesmo. A impropriedade explicita a possibilidade do engano à respeito das coisas e do auto-engano, ou seja, do ignoramento em relação a nós mesmos. Nenhuma prática, quer seja clínica ou educacional, pretenderia eliminar a condição imprópria do ser-aí. Isto seria um desconhecimento grasso de entendimentos do ser-aí como ser-no-mundo e de sua facticidade.

No mesmo contexto da falação o ser-aí mostra-se ávido por novidades, talvez, quem sabe, para levar a termo o projeto último, o de um dia encontrar-se e conciliar-se. Mas, a curiosidade tem um modo característico de ser na queda do ser-aí, é justamente a falta de paragem e de permanência que a caracteriza. Ávido por novidades, o ser-aí se desloca de uma possibilidade para a outra num movimento frenético, compulsivo, conciliado não consigo mesmo, mas com o que o mundo dos modismos e do consumo já lhe prepararam. O encontro consigo mesmo, com possibilidades que lhe são próprias, são subvertidos pela adrenalina dos esportes radicais, dos novos lugares e pontos de encontro, das drogas e de outros coadjuvantes que produzem êxtase (fora de si).

A ambigüidade, como terceiro modo da sujeição, da queda do ser-aí, resulta da pretensão de que tudo é acessível e já se sabe do que se trata em qualquer caso ou assunto. Nessa uniforme medianidade  não se pode mais decidir o que é efetivamente compreendido e o que é meramente repetido e tornado verdade por força impositora do clichê.

Tudo tem o aspecto de genuinamente compreendido, captado e dito e, no fundo, não o está; ou não tem tal aspecto e no fundo, está” (HEIDEGGER, 1974, p.193).

Na ambigüidade a indecisão mostra-se presente e o ser-aí fica em cima do muro, como se diz na gíria brasileira, ora privilegia-se um aspecto do real , ora outro, sem decisão e sem o aprofundamento da questão.

Com essa breve e resumida exposição sobre algumas indicações significativas da ontologia de M. Heidegger, pudemos compreender que a CURA (Sorge) se mostra como sendo a condição existencial do ser-aí que, antecipando-se a si mesmo, pode zelar por suas possibilidades de poder-ser. Cuidar de poder ser é a condição estrutural de ser do ser-aí.

Sobre a virtude da prudentia

Sto. Tomás de Aquino, ao falar da virtude Prudentia, ressalta-a como uma virtude que pertence ao intelecto:

“(...) a Prudentia é uma virtude intelectual; seu princípio é a inteligência reta, o olhar límpido capaz de ver a realidade e, com base na realidade vista, tomar decisão boa , para fazer a coisa certa’” (LAUAND, 2002, www.hottopos).

A virtude da Prudentia em Sto. Tomás, está implicada num atributo do intelecto, portanto, está inscrita na ordem de um entendimento sobre o real. A Prudentia consiste na lucidez de “ver” [22] a realidade, para que, baseado nesta compreensão do real, possa se tomar decisões e fazer escolhas. Mas, quando Sto. Tomás fala da “lucidez em ver a realidade”, ele está observando que nem sempre o real se dá, se mostra ao homem, ou melhor, que o homem se engana à respeito do real. De que real e realidade estamos falando? É claro que não estamos pensando o real na perspectiva de uma ordem consensual, o real como aquele que todos vêem, estamos nos reportando à capacidade de ver (compreender) os limites e as possibilidades desse real dentro de uma situação concreta, com a qual estou já envolvido, essa é nossa condição como existentes. Estamos, pois, falando da possibilidade do engano, da desfiguração do real ou mesmo de seu ocultamento.

A indagação que surge é: como será possível o engano, e mesmo o engano em relação à compreensão de nós mesmos (selbst)? Heidegger pode, no entanto, contribuir mais fortemente com essa nossa reflexão quando no parágrafo sétimo de Ser e tempo, onde ele reflete sobre o método de investigação fenomenológico, dizendo:

Ora, o ente pode se mostrar por si mesmo de várias maneiras, segundo sua via e modo de acesso. Há até a possibilidade de o  ente se mostrar como aquilo que ele não é. Neste modo de mostrar-se, o ente ‘se faz ver assim como (...)’. Chamamos de aparecer, parecer e aparência a esse modo de mostrar-se” (HEIDEGGER, 1988, p.58)

Sem dúvida, o que está em jogo neste modo de mostrar-se do ente é a possibilidade do engano, do ocultamento ou de algo que se anuncia, mas que não se mostra em sua totalidade como ocorre com os sintomas, com os símbolos, com os ícones e outras indicações. Mais adiante, nesse mesmo parágrafo sétimo, Heidegger ressaltará:

“(...) No entanto, como se mostrou nas considerações precedentes, o que, num sentido extraordinário, se manteve velado ou volta novamente a encobrir-se ou ainda só se mostra desfigurado não é este ou aquele ente, mas o ser dos entes. O ser pode-se encobrir tão profundamente que chega a ser esquecido, e a questão do ser e de seu sentido se ausentam” (Idem, p.66).

Creio que esta indicação será fundamental para entendermos o processo de ocultamento ou de engano tanto em relação ao real, quanto em relação a nós mesmos. O que se encobre não é este ou aquele ente, mas o ser dos entes, o qual se mostra durante nosso existir através do sentido, assim é a respeito do sentido que nós podemos nos enganar. O sentido é que pode ser distorcido, não acessado (estar ocultado) ou mesmo anunciado [23] .

A Prudentia, tal como a estrutura ontológica da Cura ( Sorge), ancora-se na possibilidade desse ver que se antecipa, que saca, de modo que o ser-aí compreende-se e se situa à partir daquilo que se apresenta, segundo o seu modo de acesso àquilo que se mostra. Dissemos, no início de nosso trabalho, que “(...)o ser-aí é um ente que, sendo, está em jogo seu próprio ser” , e o que está em jogo é o próprio sentido que pode decair na condição da impessoalidade, da impropriedade (Verfallen), e pode ser também ser esquecido, desfigurado ou mesmo anunciado.

“(...) O sentido não aparece por si mesmo, não tem esse poder, mas precisa de muitas e muitas aparências para poder manifestar-se” (CRITELLI, 1996, p.136).

A concepção de fenômeno para a fenomenologia em Heidegger abre caminho para entendermos a possibilidade do engano e do auto-engano. Entendo que, quando Sto.Tomás vincula a virtude da Prudentia como sendo um atributo do intelecto, da ratio, tal indicação ressalta a faculdade de julgar que caracteriza o ser humano. “(...)A capacidade de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é o que propriamente se denomina o bom senso ou razão” (JAPIASSÚ & MARCONDES, 1996, p.229). A ênfase a essa faculdade intelectiva não se estreita a uma razão discursiva, articulada a conceitos e proposições para depois extrair conclusões de acordo com princípios lógicos. Entendo que esse compreender inscrito na faculdade da razão em Sto. Tomás contempla o que Heidegger denomina como sendo uma outra estrutura de ser do ser-aí que é o compreender (Verstehen). Tal compreender originário do ser-aí diz respeito a uma “pré-compreensão”, na qual o ser-aí se situa a respeito do real. Assim como, o bebê compreende algo junto de sua mãe, se esta lhe acolhe de modo amoroso ou se o seu toque é ríspido e ansioso, do mesmo modo compreendemos algo quando sentimos “o clima” de uma festa, nos sentimos familiarizados, aconchegados ou não, se por acaso o contexto se mostrar hostil, pesado. Nossa compreensão é modulada por nossa disposição de ânimo, por nosso humor (encontrar-se). 

Dentro do que pudemos observar, o acesso ao ser dos entes, portanto, ao sentido daquilo que se mostra, implicará num certo exercício, num olhar que “desconstrói [24] , as tendências objetivadas e o acesso será dado pela busca da palavra (logos) íntima, singular, desatrelada dos contextos generalizantes e uniformes.

Uma decisão estará certamente vinculada ao modo como compreendemos  o real, àquilo que se apresenta a nós e no o seu sentido. Uma vez que o sentido (Sinn) é aqui aproximado como direção do existir, qualquer decisão terá implicações no nosso existir, o que inclui certamente os outros. Essa é certamente uma outra e significativa questão, pois ser-aí é ser-no-mundo e nossas decisões estão implicadas pelos outros e também por todos os entes. O impacto social, cultural e ambiental causado por certas decisões, testemunham o quanto nossas decisões estão implicadas a uma totalidade de relações de co-existência.   

“(...) Escolher ser isto ou aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal, o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós que não seja para todos...Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve toda a humanidade” (SARTRE, 1973, p.13).

É neste contexto que nossas decisões devem contemplar a abertura de possibilidades para que os outros possam realizar suas própria possibilidades, de modo a preservar esse espaço de liberdade. Verdades legisladas de modo imperativo, absoluto, tais como ocorrem nos pensamentos totalitários e no processo de massificação restringem as possibilidades de ser do ser-aí. Convém observarmos que para Heidegger, “(...)a essência da verdade é a liberdade” (HEIDEGGER, 1970, p.30),  sendo que “(...)a liberdade se revela então como o que deixa-ser  o ente” (Idem, p.32).  

Uma decisão prudente implica em lucidez para ver a realidade. Muitas vezes decidimos levando em conta nossos interesses, e estes podem driblar o real, na medida que não enxergarmos implicações que se mostram danosas, ou mesmo quando fazemos uma avaliação tendenciosa. Outras vezes, diante de situações embaraçosas decidimos emocionalmente, evitando confrontações não desejadas.

Outros modos de engano a respeito do real estão inscritos no pecado. Devemos, no entanto, observá-lo existencialmente, à luz de um impedimento que não permite a abertura do ser-aí para outras ricas possibilidades de poder-ser. Desta forma, o pecado ou vício nos remete a uma restrição das possibilidades do ser-aí, portanto, a uma restrição de sua liberdade.

Nesse sentido, os vícios capitais são sete vícios especiais, que gozam de uma especial ‘liderança’. O vício (e o vício capital compromete muitos aspectos da conduta) é uma restrição a autentica liberdade e um condicionamento para agir mal” (LAUAND, 2001, p.67).

O vício ou o pecado se inscrevem no modo como existimos e ele aponta conforme a citação a uma “restrição a autêntica liberdade e um condicionamento para agir mal”. O sentido do radical grego “pathos, presente na palavra patologia nos remete à limitação, à restrição das possibilidades do ser-aí, tal como ocorre no vício ou pecado.

É interessante observarmos que as referencias iniciais que colaboraram  para a realização de uma doutrina dos pecados capitais em Sto. Tomás, foram obtidas por volta dos anos 400, época em que João Cassiano “(...)percorreu os desertos do Oriente para recolher – em ‘reportagens’ e entrevistas as experiências radicais vividas pelos primeiros monges” (LAUAND, 2001, p.65). O fato de que o procedimento metodológico tenha sido realizado através de entrevistas e reportagens testemunha a necessidade uma verdadeira “fenomenologia descritiva”, portanto, a preocupação com o vivido, com o caráter existencial, deve se ater a narrativa da experiência concreta desses monges. A doutrina do pecado tem na sua origem não uma referência teórica conceitual, erigida através de um pensamento abstrato e especulativo como ocorre com o pensamento metafísico. De fato é espantoso falarmos de uma fenomenologia que se esboça tão distante do tempo de seu criador nos séculos 19 e 20 por Edmund Husserl (1859-1938).

Em sua doutrina sobre os pecados capitais – ou vícios capitais - , Tomás repensa a experiência acumulada sobre o homem ao longo de séculos. Se o filosofar do Aquinate é sempre voltado para a experiência e para o fenômeno, mais do que em qualquer outro campo é quando trata dos vícios que seu pensamento mergulha no concreto, pois citando o sábio (pseudo-) Dionísio, `malum autem contingit ex singularibus defectis – para conhecer o mal é necessário voltar-se para os modos concretos em que ele ocorre. Assim é freqüente encontrarmos nas discussões de Tomás sobre os vícios – para além da aparente estruturação escolástica – expressões de um forte empirismo como: `Constingit autem ut in pluribus...’(o que realmente acontece na maioria dos casos...)”(LAUAND, 2001, p.65).

Será, portanto, à partir desse olhar aberto ao vivido que a doutrina dos pecados será desenvolvida, visando um sentido prescritivo, pedagógico de orientar os homens  na condução de sua existência.

“(...) no que diz respeito aos vícios, surge a doutrina dos pecados capitais, que encontra sua máxima profundidade e sua forma acabada no tratamento que lhe dá Tomás. Essa doutrina – que, como tantas outras descobertas antropológicas dos antigos, está hoje esquecida – bem que poderia ajudar o homem contemporâneo em sua orientação moral e antropológica (Idem, p.66).

Vamos nos deter ao significado do pecado da Acídia, que passou a ser interpretado como preguiça, como salientamos no inicio deste trabalho. Encontramos o seguinte significado para a acídia.

A acídia manifesta-se assim diz Tomás primeiramente na dissipação do espírito (a sua segunda filha é o desespero e isto é muito elucidativo). A dissipação do espírito manifesta-se por sua vez, na tagarelice, na apetência indomável de se sair da torre do espírito e derramar-se no variado, numa irrequietação interior, na inconstância da decisão e na volubilidade do caráter e, portanto, na insatisfação insaciável da curiositas (da curiosidade)” (LAUAND, 2001, p.69).

A ênfase dada por Sto. Tomás recai para a dissipação do espírito, através da tagarelice, derramando-se no variado e pela insatisfação insaciável da curiosidade. Quando abordamos a estrutura de ser do ser-aí da queda ( Verfallen), observamos que a impropriedade se dá  através da falação, da avidez de novidades e da ambigüidade. Esses são os três modos de como o ser-aí decai, perde-se no todos nós...ninguém, vimos também que esse modo de ser constitui o ser-aí em sua cotidianidade. O ser-aí está mergulhado nesse comum pertencimento, enredado no modo de ser mediano e até massificado ele encontra  nessa condição existencial abrigo, acolhimento e evade-se da possibilidade do próprio, ou seja, de escolher, de decidir engajando-se numa possibilidade pessoal. Estamos, pois, falando de uma restrição a autêntica liberdade de ser do ser-aí O pecado da acídia, se inscreve plenamente na impropriedade, os três modos de como a impropriedade se dá caracterizam-se por uma relação superficial, portanto, sem aprofundamento e sem apropriação em relação a tudo que encontramos. A falação como dissemos caracteriza-se por circunscrever o falado no âmbito das repetições sem base e se consolida como verdade por força das repetições. São clichês de entendimentos sobre o real e sobre nós mesmos sem qualquer criatividade e aprofundamento. A avidez de novidades, creio que mais fortemente se aproxima da acídia, caracteriza-se por uma falta de paragem, como disse L.Binswanger [25] numa existência saltitante, pula-se de uma possibilidade para outra num movimento frenético de busca incessante, alimentada por uma insaciável curiosidade. Os modismos contemporâneos e a indústria do entretenimento são competentes em criar novas possibilidades para o ser-aí. Movido pela ilusão de que por esse meio ele poderá conciliar-se,  encontrar-se o ser-aí pula de uma possibilidade para outra sem paragem, sem implicação e vínculo maior.. 

A avidez de novidades não se apropria daquilo que vê e experimenta, não se aproxima das coisas em duradoura compreensão.

“(...)Busca o novo só para saltar dele para um outro novo (...) Neste não demorar-se junto ª.., a avidez de novidades caracteriza-se pela dissipação. Não importa se, pelo deslumbramento, é levada à incompreensão, pois não faz caso de compreender mesmo e quer apenas ‘ficar por dentro’” (HEIDEGGER, 1974, p191)   

É justamente na fuga do próprio, de encarregar-se de si mesmo que o ser-aí se lança num movimento frenético e compulsivo de busca e de estimulações. Os esportes radiais são mais radicais na proporção direta à quantidade de adrenalina que são capazes de gerar. A ditadura dos modismos, as festas, as casas noturnas itinerantes, o corpo sarado e condizente com os padrões estéticos de um contemporâneo, são alguns entre tantos outros apelos que se inscrevem no nosso cotidiano. Deste modo também o ser-aí alivia-se do tédio de uma existência sem sentido, marcada pela falta de apropriação e aprofundamento de modo a não mais se espantar, ou se encantar com a implicação de um aprofundamento de um olhar detido sobre o real. Dissipado de si mesmo e de uma relação mais envolvida e implicada com o mundo, o ser-aí foge do tédio através da avidez de novidades.

O mais grave disso tudo é que a angústia, que poderia paralisar esse movimento da impropriedade, através da vivência de uma radical desconexão de mundo, justamente porque o sentido se retrai, esse sentimento é também vivido no seu modo impróprio, ou seja, através do medo. O medo como sabemos diferentemente da angústia, elege um objeto, há um de que se teme. Testemunha-se essa condição existencial do homem contemporâneo nas diferentes fobias que são diagnosticadas, sendo que a síndrome do pânico, constitui um conjunto de sintomas de maior relevância na clínica atual. Lembremo-nos de que ao falarmos do pecado da acídia, o prof. Lauand refere-se que “a sua segunda filha é o desespero”.

Bibliografia

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[1] Psicólogo Daseinsanalista, prof. da PUCSP e doutorando em Filosofia da Educação na FEUSP. Seminário apresentado na disciplina ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Jean Lauand – Educação para as Virtudes na Tradição Ocidental.

[2] A expressão alemã Sorge é também traduzida por cuidado, preocupação e solicitude. Com relação aos entes intramundanos o ser-aí cuida e em relação aos outros o ser-aí preocupa-se. 

[3] “(...)Para Heidegger, ser é maneira como algo se torna presente, manifesto, entendido, percebido, compreendido e finalmente conhecido para o ser humano, para o ser-aí ou Dasein. As características fundamentais que possibilitam as varias maneiras de algo se tornar manifesto, realizado, são aquilo a que chama ontológico. As características ontológicas do ser humano (ser-aí) são também chamadas ‘existenciálias’, ou seja, características ontológicas da existência”(SPANOUDIS, 1981, p.11).

[4] Optamos por traduzir neste artigo Dasein por ser-aí. O Da (aí) do Dasein”(...) significa não um advérbio que localiza ou fixa algo em algum lugar, mas para mostrar o estado de aberto que coloca ‘homem e ser’ na correspondência de uma unidade, assim como para circunscrever o lugar do aparecimento e manifestação das coisas” ( MICHELAZZO, 1999, p..127).    

[5] Estamos nos referindo a ontologia fundamental desenvolvida em Ser e tempo, publicada em 1927.

[6] Na tradução de Ser e tempo (Sein und Zeit) para a língua portuguesa, Márcia de Sá Cavalcantii optou por traduzir Dasein por pre-sença. Nós mantivemos a citação tal como ela se apresenta no parágrafo 27 de Ser e tempo.

[7] Cardeal (Do latim cardinale) significa principal, fundamental.

[8] Ente é tudo o que é. A cadeira é, o céu é azul, Deus é pai, minhas fantasias são, com relação ao ser diz-se dá-se. Ser como doação salienta esse espaço de abertura, de disponibilidade para alocar o ente num horizonte de sentido. Quando dizemos que a água é H2O, estamos indicando que o sentido desse ente está configurado, entorno daquilo que é substancial, nuclear e permanente do ente. Esse é o modo metafísico de interpretar o ser à luz de uma propriedade, de uma essência que é universal e permanente. 

[9] A explicitação é minha.

[10] Capital (Do latim  capitale) Relativo à cabeça. Principal, essencial, primário

[11] “(...)Vorhanden no alemão, ou o Present at hand segundo a tradução inglesa. Refere-se ao estoque, àquilo que, afastado do vivencial, torna-se objetivado: os objetos de estudo como têm que acontecer para o empirismo e para as ciências exatas” (SPANOUDIS, 1981, p.16-17). Há, porém, um outro modo de relacionamento com os entes e que Heidegger considera primordial que é o relacionamento pautado por um envolvimento significativo (Zu handen).

[12] Dasein é freqüentemente explicitado no pensamento de Heidegger através da metáfora da clareira, ou seja, é na abertura de uma clareira que o ente se mostra em seu ser. Será neste espaço de luminosidade que as coisas podem se mostrar, mas de que espécie de clareira ou de luminosidade nós estamos falando? “(...)Posto que não é nenhuma ‘luz ocular’ (dos sentidos), nenhuma luz divina ou racional, trata-se tão-somente, da luminosidade do sentido (da significação)” (PESSANHA, 2001, p.56).   

[13] Cura refere-se a uma das características ontológicas do ser-aí e diz respeito à condição do ser-aí cuidar, zelar, por suas possibilidades de poder-ser. Tal cuidado também diz respeito ao cuidado para com a saúde, para com o corpo, para com os entes que nos servem cotidianamente. O cuidado também envolve os seus modos deficientes como a negligência, o desinteresse, a indiferença.

[14] Ver nota (8).

[15] Realmente empunhado: em alemão – eigens ergriffen. “...Foi traduzido na verão espanhola por realmente empuñado. Adotou-se essa tradução por familiaridade de uso e pelo que sugere no sentido de um agir ‘próprio’, com garra, como nas expressões: ‘empunhar a bandeira’ ou ‘ de próprio punho’ que implica em responsabilidade, autoria, e comoção. Em alemão, griffen (ou ergriffen) tem o sentido literal tanto de agarrar, segurar, empunhar, como o de estar tocado” (OLIVEIRA DIAS, 1984, p.178).

[16] ôntico – “Tudo o que é percebido, entendido, conhecido de imediato, é ôntico” (SPANOUDIS, 1981, p.11). Ver também nota (3).

[17] Ver nota nº (3). Ontológico diz respeito às possibilidades e como algo pode ser presentificado, desvelado para o ser-aí.

[18] Facticidade refere-se à condição em que o ser-aí é lançado num ‘mundo’ já dado, pronto, interpretado, com seus códigos, leis, modos de ser, num momento histórico. Nasce numa determinada família e com as expectativas que já se forjam antes mesmo do nascer.

[19] Existência vem do verbo ek-sistere; ek-sistênciaé algo que emerge, se manifesta em sentido transitivo.

[20] Sartre vai observar com propriedade que a não escolha também é uma escolha, portanto o homem está condenado a escolher.

[21] A palavra alemã Verfallen, foi traduzida para o português por: queda, decair, sujeição , impropriedade ou  o impessoal (das man).

[22] O sentido da visão, o ver realiza-se plenamente na tradição ocidental como metáfora da compreensão. Na “Alegoria da Caverna” presente no livro República, de Platão, os homens viviam  amarrados numa caverna escura, onde viam as coisas através de sua sombras – simulacros do real graças à presença de uma  pequena fogueira. O homem liberto das amarras dirige-se em direção à luz do sol, onde poderá ver (compreender) as coisas na sua verdade, na sua exatidão (Orthótes). Segundo Heidegger é nesta alegoria que ocorre uma mudança na doutrina da verdade, antes a verdade era aproximada por alétheia, passando a ser entendida como precisão (Orthótes).

[23] Heidegger refere-se a três modos privativos do fenômeno se mostrar: parecer ser, aparência e mera aparência. Podemos entender o parecer ser como o equívoco, o engano, por exemplo, na ilusão de óptica. Com relação à aparência ela não trata de um engano, pois, na aparência algo se anuncia, mas não mostra o fenômeno na sua totalidade. Como exemplo, podemos observar o sintoma de febre, ele não é enganoso, pois algo é anunciado através desse sintoma, mas é preciso desvelar outras manifestações para que possamos compreender a totalidade daquilo que se ainda se oculta.

[24] O sentido da “desconstrução em Heidegger, precisa ser compreendido não como uma negação do pensamento metafísico, como se ele nada mais tivesse a nos dizer. A palavra alemã Verwindung, realiza bem esse sentido em Heidegger, ou seja, seu significado é de aceitação, aprofundamento e mesmo de convalescimento, como se convalesce de uma doença. O pensamento metafísico está aí na plenitude de sua consumação nos séculos 20 e 21, que Heidegger denomina por “Época da Técnica Planetária”. Podemos pensar, numa ultrapassagem do pensamento metafísico e não numa superação nos moldes da modernidade, a diferença é que a tarefa da desconstrução em Heidegger é a de rememorar (an denken), de re-visitar o próprio pensamento metafísico a fim de  desvelarmos o que lhe ficou impensado a partir do modo como o sentido do ser foi sendo interpretado.

[25] Psiquiatra suíço, iniciador da Daseinsanalyse, da implicação do pensamento de Heidegger na psiquiatria.