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Nota sobre a Educação,
a Prudência e a Cegueira

(este texto apóia-se nos artigos A Experiência com a Cegueira, de Josef Pieper e Jesus Lúdico – notas sobre a pergunta fundamental de Shakespeare: Who`s there?, de Jean Lauand [1] )

 

Carla Andréa Soares

 

A cegueira

O primeiro ponto que quero sublinhar é a experiência. Josef Pieper comenta em seu texto a passagem bíblica de João 9, na qual Cristo cura um cego de nascença. Sua discussão recai principalmente sobre como este cego, e também seus pais, são insistentemente indagados pelos fariseus a respeito de sua visão e, de quem e como o havia curado. Sua descrença não pairava no fato de que ele agora enxergava, mas no fato de era impossível a um homem fazê-lo, não era uma questão de resultado, mas de como, de explicação. Aquilo não podia ser explicado. Sua razão não admitia aquilo que era evidente como possível.

Pieper descreve, através deste fato uma experiência, uma experiência contínua, que continua. Como diante do cego que recobrara a visão, os olhos daqueles que vêem podem ser cegos. Por muitos séculos, ainda hoje, de muitas formas, a experiência com a cegueira continua. Que cegueira é esta? A cegueira da razão concebida como medida e não como abertura. A razão instrumentalizada, ou seja, que concebe como verdadeiro somente aquilo que experimentalmente, cientificamente se prova.

Ao contrário, a razão é abertura á realidade, a toda realidade, na totalidade de seus fatores, o que muda a postura de quem quer conhecer, liberta-o dos limites da instrumentalização. Lembremos que a verdade, nesse sentido, corresponde à realidade, mas sua manifestação, sua clareza depende da liberdade do ser em aderir a ela ou então a seus próprios pensamentos, idéias. “A verdade de modo algum se impõe”, ela pede a liberdade do homem. Por esta razão a experiência com a cegueira pois não era verdade, não podia ser verdade, diante daquela evidência podia-se negar o acontecido, podia-se não querer enxergar o acontecimento. Clément Rosset [2] , em A inobservância do real, comenta a recusa do homem de reconhecer o real, de como muitas vezes o homem se prende a sua opinião, sua imagem das coisas e “se protege das realidades cujo reconhecimento poderia acarretar um desagrado” (1989:57). “Essa escolha do irreal em detrimento do real, do que não se pode alcançar em detrimento do que se pode alcançar” (1989:64).

Alexis Carrel, em Reflexões sobre a conduta da vida [3] , retrata esta experiência: “Na enervante comodidade da vida moderna, o conjunto de regras que dão consistência á vida se reduziu (...) a maior parte dos esforços que o mundo cósmico impunha desapareceu e com eles desapareceu também o esforço criativo da personalidade (...) A fronteira entre o bem e o mal se desvaneceu, a divisão reina em toda parte(...). Pouca observação e muito raciocínio conduzem ao erro. Muita observação e pouco raciocínio conduzem à verdade”

A “cura” da cegueira está na postura de liberdade com a qual o homem se coloca diante da realidade, diante do objeto a ser conhecido, ou seja, o método é olhar a realidade a partir do que ela é e não o que penso ou espero que ela seja (GIUSSANI, 2000) [4] .

O cego – Who´s there?

A pergunta fundamental de Shakespare Who`s there? é a chave de leitura para o passo seguinte, ou seja, para falarmos de quem, daquele que faz a experiência. Enfrentar a pergunta sobre quem é, ou melhor, sobre quem sou eu implica em estar diante da realidade primeira, diante do ponto central da realidade: eu. Não quero dizer do indivíduo, daquele que só “olha para o seu umbigo”, mas do sujeito que querendo conhecer o mundo, para fazê-lo plenamente deve conhecer-se, encarar suas perguntas elementares: Quem sou eu? Que sentido tem minha existência?

Julián Marías [5] nos adverte sobre os riscos do homem que não conhecendo a si mesmo pode ser levado somente a reagir, a ter as respostas prontas, sem se fazer as perguntas originais, alienando-se de si mesmo: “Há muitas pessoas que estão, diríamos, num estado de passividade, que aceitam o que se recebe como se fosse a própria realidade. Que não a põe em questão e então, evidentemente, deixam que sua vida seja orientada, que seja configurada por influências que são originariamente minoritárias: as pessoas que manejam os meios de comunicação são poucas, muito poucas. Representam um estamento, um grupo, umas quantas pessoas que exercem uma influência enorme e não consciente: a maior parte recebe esta influência com uma espécie de passividade” (MARÍAS, 1998:5).

Conhecer-se é ser sujeito na realidade, constituir-se plenamente como pessoa. Alain Touraine [6] quando trata da sua sociologia da ação nos insere no conceito de sujeito, “sujeito como capacidade e vontade de ser uma pessoa”. Ser uma pessoa – realização plena da experiência humana; capacidade e vontade – atributos do sujeito de história que se relaciona com a realidade de maneira dinâmica, bucando o significado de tudo, dando significado a tudo, a todos os fatos com os quais se depara.

 

A educação e a cegueira

O terceiro passo consiste em apontar, na realidade, o caminho desta experiência do eu: educere, educar.

A educação é algo fundamental na vida humana e para a convivência social, é um caminho do amadurecimento à vida, percurso para se tornar plenamente homem - física, mental, moral, material e espiritualmente. A família é a primeira célula social na qual o homem é acolhido integralmente. Na experiência educativa a família dá continuidade às suas tradições, valores e princípios. A educação introduz o ser na história, ajuda-o na busca dos significados e, sobretudo, a conhecer-se como homem, com um rosto – feições de um pertencer, marcas de uma trajetória, escolhas e dúvidas, certezas e desejos .

Educar o homem implica, portanto, muito mais do que ensinar-lhe a ler escrever, fazer contas ou mesmo atribuir-lhe os conteúdos formais de uma profissionalização, [ou seja, não é prepará-lo para adentrar o mercado de trabalho], é ajuda-lo a constituir-se sujeito na realidade. Implica, pois, um relacionamento com este homem, um apego a seu destino mais do que minha pretensão sobre o que ele deve ser, além de fascínio pelo conhecimento, pela apreensão de significados, tradição, valores.

Juliám Marías, em seu Tratado sobre a Convivência [7] , chama a tenção ao fato de que não nos relacionamos com uma coisa (com o que), mas com uma pessoa (um quem). Sendo assim, a educação é um relacionar-se com este quem, é conviver com ele e ajudá-lo a abraçar a realidade, amar a verdade mais do que o que pensa sobre ela e, sobretudo, para que este conheça a verdade é necessário que conheça a si mesmo.

Tarefa árdua para a educação atual, para quem seriamente pretende educar o homem. Primeiro porque hoje em dia o professor precisa dar muitas aulas, em lugares diferentes, para poder gerir materialmente sua vida - qual o tempo da convivência? Contudo, este relacionamento vai além do fator tempo. O relacionamento nasce no comunicar-se de si diante de um outro que deseja conhecer-se e conhecer a realidade. O educador enquanto transmite um conteúdo, comunica a si mesmo, seus valores, princípios, e está diante de um sujeito diferente dele e que ao mesmo tempo carrega as mesmas exigências de verdade, de beleza, de justiça. Sendo assim, aquele que não vive como sujeito na realidade, não educa, não se relaciona com seus alunos compreendendo-os como sujeitos, tampouco, ajuda-os na descoberta de si, daquilo que os interessa, na busca do conhecimento da realidade. Quem não se relaciona com a realidade com potência de si não consegue educar, impõe conteúdos, não apresenta significados, está cego e não permite que os outros enxerguem.

Neste sentido coloca-se a relação educativa: valores e ideais não são assimilados através de exposições teóricas, mesmo que brilhantes: são descobertos, vivenciados no relacionamento pessoal, na relação professor-aluno. Ou seja, a relação educativa é decisiva para a formação integral do aluno. Este é um problema que a prática educativa deve enfrentar para que de fato o ensino na escola não seja tão somente instrumental, mas uma proposta para a vida, para viver a realidade, um espaço de participação desses sujeitos.

A segunda dificuldade encontra-se no fato de que o nosso tempo é um tempo de muitas incertezas, num tempo em que a ideologia prevalece sobre a realidade. “Paradoxalmente, se pisam no nosso pé no metrô ou na escola, estamos prontíssimos a reagir, a ficar cheios de raiva; se, ao invés disso, acontece, como realmente acontece, que aquilo que venha a ser totalmente esmagado, literalmente suprimido ou tão intimidade a ponto de ficar como que apalermado seja a nossa personalidade, o nosso eu, isto nós aguentamos tranqüilamente todos os dias” (GIUSSANI, 1996:12) [8] .

 

Esquadros, Adriana Calcanhoto

Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu nem sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo, cores
Passeio pelo escuro,
eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca,
uma cápsula protetora
eu quero chegar antes
pra sinalizar o estar de cada coisa,
filtrar seus graus
Eu ando pelo mundo divertindo gente
chorando ao telefone
E vendo doer a fome dos meninos que têm fome

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle.....

Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para que?
As crianças correm para onde?
Transito entre dois lados de um lado
Eu gosto de opostos
Exponho meu modo, me mostro
Eu canto para quem?
Pela janela do quarto........

 

Há de se convir a grande influência dos meios de comunicação na e para a compreensão ou velação da realidade. “Nada é plenamente público se não adquire o relevo necessário, se não é ‘notificado’ à sociedade em seu conjunto, e isso não se limita à imprensa escrita, mas ainda mais ao rádio e à televisão” (MARÍAS, 2003:152). O desafio está, então, em conceber educação não como transmissão de conteúdos, o que pode levar à homogenização, mas como espaço de diversidade. Assim como a biodiversidade é necessária à existência humanidade, a diversidade cultural é também essencial para a vida humana, para a flexibilidade e agilidade de raciocínio, pensamento ação e convivência, é educativa para o homem pois, o ajuda a aprender a dialogar com o diferente, a relacionar-se com outros sujeitos, mesmo que não torçam pelo mesmo time, mesmo que não “curtam” o mesmo gênero musical, mesmo que não tenham as mesmas crenças. Esta é a proposta de exercitar seu eu, sua liberdade, de aderir à realidade na totalidade de seus fatores, sem negar nada, sem excluir nada.

Não se trata de colocar tudo “dentro do mesmo saco”, crenças, tradições, gostos, costumes, valores, princípios e dali tirar “aspectos agradáveis” a todos, ao contrário, o educador deve ajudar o sujeito a aprofundar sua história, sua tradição para então aprendera valorizar a cultura, a postura do outro e dialogarem - perceber que toda realidade carrega valor e significado.

A pergunta permanece como possibilidade de tornar-se realidade:

Como a educação pode ser um espaço de formação do humano que existe em nós?



[1] http://www.hottopos.com.br/videtur12/cegueira.htm e http://www.hottopos.com/geral/jeanwho.htm respectivamente.

[2] ROSSET, Clément O princípio de crueldade. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

[3] Citado por Luigi Giussani em O Senso Religioso.

[4] GIUSSANI, Luigi O Senso Religioso. São Paulo: Nova Fronteira, 2000.

[5] MARÍAS, Julián Moralidade coletiva. Ed. Trad. Sylvio R. G. Horta. Conferência proferida em Madri, no Instituto de Espanha, em 1998.

[6] TOURAINE, Alain A sociologia da ação. Uma abordagem dos movimentos sociais. In: Anais do Seminário O retorno do ator – França-Brasil. Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo, São Paulo, Feusp, 1991.

[7] MARÍAS, Julián Tratado sobre a convivência: concórdia sem acordo. São Paulo: Martins Fontes, 2003

[8] GIUSSANI, Luigi Em busca do rosto do homem. São Paulo: Editora C.I., 1996.