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Sêneca – Aproximações

Considerações sobre a Pergunta pelo Viver Bem

 

Alessandra Carbonero Lima

 

Vários são os caminhos que podem nos aproximar de um determinado autor, multiplicidade esta que, se dificulta o trabalho do pesquisador, torna-o também mais interessante. Com Sêneca, filósofo romano do primeiro século da nossa era, não será diferente. Dele podemos nos aproximar de inúmeras maneiras, por exemplo, a partir da análise de uma de suas obras, o que, no entanto, nos abriria outra variedade de caminhos, já que Sêneca escreveu não apenas vários tratados filosóficos, como também nove tragédias, uma comédia, três consolações e 124 epístolas morais, dirigidas a um seu discípulo, Lucilio. Por outro lado, se difícil nos parecer escolher uma única obra para análise, podemos nos aproximar de Sêneca entendo suas ligações com os epicuristas, ou com os cínicos, ou ainda com a doutrina platônica, ou, com os pitagóricos, e, se se quiser podemos ainda explorar suas relações com as idéias aristotélicas. E, se qualquer um desses caminhos não nos parecer interessante, podemos nos aproximar de Sêneca lançando-nos na investigação de sua ligação com o poder, já que foi ele preceptor do jovem Nero, e, ao seu lado esteve nos primeiros anos de governo.

Se outra for a preferência, não menos relevante será explorar suas relações com o estoicismo, escola filosófica da qual Sêneca se concebe seguidor. Mas, se diferente ainda for o gosto, pode-se traçar as linhas que ligam e separam a moral estóica, na leitura de Sêneca, daquela que será oferecida pelo cristianismo. E ainda, mas não como última opção, podemos abordar Sêneca a partir de um tema específico, tarefa esta que, por sua vez, poderia se dar por várias vias, por exemplo, o tema escolhido para nos aproximarmos de Sêneca poderia ser explorado e investigado a partir da análise de uma de suas obras, ou, de duas ou mais, ou, a partir de sua ligação com uma das escolas de filosofia da qual tenha sofrido influência. Ou, se se quiser, podemos também nos aproximar de Sêneca a partir de uma pergunta, como por exemplo, a pergunta pelo viver bem. Para responder a essa pergunta Sêneca dedicou uma de suas obras, A vida feliz (De vita beata), embora tenha tratado desse mesmo tema em outras oportunidades, como por exemplo, em várias das Epístolas Morais a Lucilio. Contudo, mesmo que optemos por esse último caminho, novas redes se abrem quando de uma aproximação à Sêneca. Por exemplo, abordar determinados temas em um filósofo estóico significa esbarrar em algumas questões delicadas, tais como a que se refere à conciliação entre um mundo determinado – como é o mundo do estoicismo - e a liberdade, ou, a que se refere a determinação do que seja o bem, ou, a que se relaciona ao caráter divino da natureza estóica, dentre várias outras. Como então lidar com essas questões delicadas? Afastá-las ou aprofundar-se nelas? Apresentá-las nos moldes dos antigos estóicos, ou, pelos olhos do nosso autor, um estóico já do período romano? [1]

Diante dessa variedade de caminhos e vias, e, porque nos propomos a uma breve aproximação de Sêneca, e, se optamos por fazê-la a partir da pergunta pelo viver bem, o caminho mais adequado parece ser uma apresentação do tratamento que lhe é dado por Sêneca a partir de sua própria perspectiva, atendo-nos, sobretudo, às idéias contidas em duas de suas obras, A vida feliz e Epistolas Morais a Lucilio, recorrendo, contudo, ao antigo estoicismo naquilo que for indispensável. Assim, o que se pretende é um contato com as idéias de Sêneca, um levantamento de alguns elementos expressos no pensamento de Sêneca, necessários para pensarmos a pergunta pelo bem viver em sua filosofia. Finalmente, porque são muito os caminhos que nos levam à Sêneca, e, tendo no horizonte a pergunta pelo viver bem, se experimentará também a aproximação de algumas idéias senequianas com determinados aspectos do tema das virtudes cardeais, tal como foram concebidas por Tomás de Aquino.

Sobre uma concepção de filosofia

Antes de nos atermos a pergunta pelo viver bem, necessário se faz que saibamos quem faz essa pergunta, ou seja, que tradição de pensamento é essa que pergunta pelo viver bem. Ou, mais clara e especificamente, se é Sêneca um filósofo, ou ainda, se a pergunta é feita através de uma reflexão filosófica, resta-nos saber o que aqui se entende por filosofia.

Na cultura helênica, filosofia era concebida não apenas como um sistema de idéias, mas, sobretudo, como um sistema de idéias a ser praticado, ou seja, como uma prática para a vida, como um modo de vida, uma arte, uma técnica de vida. Aderir a uma determinada escola filosófica implicava então na adesão não apenas de idéias, porém sim de um determinado modo de vida.

Mais do que isso, filosofia não se tratava de um mero modo de vida, contudo sim de uma arte de viver que se concebia apta ao alcance de uma vida feliz, de uma vida adequada a realizar as necessidades do homem.

“A filosofia não é uma habilidade para exibir em público, não se destina a servir de espetáculo; a filosofia não consiste em palavras, mas em ações. O seu fim não consiste em fazer-nos passar o tempo com alguma distração, nem em libertar o ócio do tédio. O obejctivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma, em ensinar-nos um rumo na vida, em orientar os nossos actos, em apontar-nos o que devemos fazer ou por de lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de quem flutua à deriva entre escolhos. Sem ela ninguém pode viver sem temor, ninguém poder viver em segurança. A toda hora nos vemos em inúmeras situações em que carecemos de um conselho: pois é a filosofia que no-lo pode dar.” [2] (grifos meus)

Filosofia se dá em atos, não se trata ela de simples reflexões, mas de ações que são conforme essas reflexões, ou, trata-se de um conjunto de idéias que quando praticado dá um rumo ao homem, dá forma às suas ações. Nesse sentido, filosofia é concebida como remédio, como terapia, como um receituário para a ação humana, que se administrado proporcionará ao homem o viver bem, a vida no bem-estar. Portanto, a reflexão filosófica não apenas oferece sua resposta à pergunta pelo que seja o viver bem, como também oferece um modo, uma arte de vida suficiente para proporcionar ao homem esse viver bem.

Cada uma das escolas filosóficas da antiguidade oferecerá sua resposta à pergunta pelo viver bem, aderindo Sêneca à resposta oferecida pelo estoicismo. Todavia, há ainda um segundo aspecto, presente em grande parte das escolas de filosofia da antiguidade, que merece destaque, qual seja, filosofia, para escolas filosóficas como o estoicismo, epicurismo, cinismo, cineraismo, entre outras, não implica em inovação, mas sim em assimilação.

Em sendo assim, para os estóicos, mas também para epicuristas, por exemplo, aplicar-se no estudo da filosofia não consistia em propor novas idéias, mas sim em interiorizar as idéias dos mestres, apreender e praticar o ideário de uma escola filosófica, logo, não se exigia de um filósofo que propusesse novas idéias, exigia-se de um filósofo que seguisse o sistema de idéias de sua escola.

É justamente isso o que se propõe a fazer Sêneca [3] , assim, embora em suas obras não seja possível encontrar a exposição sistemática das idéias estóicas, especialmente aquelas relacionadas à física e à lógica, suas obras somente ganham maior força e têm sua profundidade demonstrada quando se compreende o que as sustenta, ou seja, o sentido de suas proposições se explicitam quando as idéias estóicas pressupostas são percebidas.

Em conseqüência, a compreensão das obras de Sêneca exige de seu leitor um conhecimento mínimo do sistema de idéias dos estóicos, sem esse conhecimento, a profundidade e o real sentido do que é por ele dito deixa de ser percebido.

Característica esta que não se traduz em uma falha do texto senequiano, mas que se dá por várias razões, das quais a principal relaciona-se ao convencimento do outro. Melhor explicando: Sêneca parece conceber que os exemplos, que uma linguagem clara e simples é mais apta ao convencimento do outro, é um instrumento mais eficaz no alcance do outro. Não por acaso, seus tratados de filosofia são férteis em exemplos. Ao invés de apresentar uma sistematização de idéias, Sêneca prefere convencer pelo exemplo, pela exposição de fácil compreensão. Dessa forma, por vezes, uma afirmação que pode, a princípio, nos parecer ingênua, além de tocar o leitor, carrega em si uma reflexão filosófica específica e profunda. Portanto, a filosofia que pergunta pelo que seja o viver bem, além de arte de vida, é concebida como assimilação.

Contudo, não se pode ignorar as especificidades de cada um dos períodos da filosofia estóica, arte de viver assimilada por Sêneca, por isso somente nos aproximaremos adequadamente dessa filosofia que pergunta pelo que seja o viver bem, se nela percebemos uma terceira característica. Sêneca se concebe seguindo a filosofia estóica, a arte de viver dos estóicos, entretanto, o estoicismo romano possui suas peculiaridades. Bem explicando: desde a sua fundação, no final do século IV a.C., por Zenão, o estoicismo dividia a filosofia em três partes, moral, física e lógica, dando a cada uma delas igual importância, de tal modo estruturando-se a doutrina estóica, que a compreensão de cada dessas partes dependia da compreensão das demais.

Com os romanos, esta interdependência permanece, todavia o objeto de estudo dos romanos será a moral, não somente Sêneca, mas também Marco Aurélio e Epíteto, os outros dois grandes nomes do estoicismo romano, enfatizarão em suas obras a parte moral da filosofia. Essa idéia de filosofia enquanto arte de vida, quando diante do espírito pragmático do povo romano, faz ganhar ênfase o aspecto moral dessas escolas filosóficas, em conseqüência, nesse período os autores do estoicismo voltam-se, sobretudo, para a reflexão das questões ligadas à moral.

Sabemos então que a filosofia de Sêneca, o “quem” que pergunta pelo que seja o viver bem, pode ser entendida como a assimilação de uma arte de viver, de um modo de vida, no qual o aspecto moral e pragmático ganha maior ênfase.

Razão e virtude

Se a pergunta que nos orienta é a pelo bem viver, para respondê-la há que se buscar um fundamento, esse fundamento para os estóicos e para Sêneca será dado pela natureza humana. Dessa forma, se além de arte de vida, filosofia é compreendia como assimilação, ou seja, se é o caso de seguir os mestres das escolas filosóficas, e, se é isso o que se propõe a fazer Sêneca, pertinente será recorrer ao estoicismo antigo para explicar algumas das afirmações e concepções de Sêneca, ou, pertinente será recorrer ao estoicismo antigo para explicar o que seja a natureza humana. Contudo, no estoicismo precedente à explicação do que seja a natureza humana, está uma explicação do que seja a própria natureza. Em linhas muito gerais, a natureza para os estóicos é tanto o que está contido no mundo, quanto o que produz esses elementos, por isso dizer-se que a natureza é já um modo de ser, um modo de ser que traz em si o impulso, o germe do que existe na natureza, trata-se de uma natureza animada, que faz geminar ela mesma. Por isso, a natureza é tida também como um sopro artesão, um fogo artista que não só a anima, como também lhe dá uma ordenação, ou seja, a natureza não é apenas um modo de ser que traz em si o impulso da produção de si mesma, mas trata-se também de um impulso que é artesão, logo não se trata de um mero fogo, de um sopro qualquer, porém de um sopro que esculpe, que dá uma determinada forma, que ordena.

Há nessa natureza, para os estóicos, dois princípios, um passivo, sem qualidades, a matéria, e, um princípio ativo, que age na matéria e a define, a razão, um princípio que perpassa toda a natureza. Ou ainda, a natureza estóica é concebida não apenas como uma natureza que engendra a si mesma, mas também como uma natureza racional, ou, podemos dizer que a natureza estóica é tal que engendra a si mesma em uma certa disposição, a partir de uma certa racionalidade, por isso, pode-se afirmar também que há em todas as coisas existentes na natureza uma certa ordenação, uma certa racionalidade. Essa é a natureza universal para os estóicos [4] , da qual os homens também fazem parte.

Em sendo assim, seguir a racionalidade que há na natureza, seguir a ordenação que há na natureza é, em certa medida, seguir não uma natureza que é estranha ao homem, mas é seguir não somente a própria natureza humana, como é também seguir essa natureza universal na qual o homem, como todas as coisas existentes, está integrado. Por isso, afirmarem sempre os estóicos a importância de seguir a natureza, com o que Sêneca não poderia deixar de concordar:

“O nosso objectivo é, primacialmente, viver de acordo com a natureza.” [5]

“... como todos os estóicos, saibas que sigo a natureza” é sábio não se distanciar dela e obedecer a seu exemplo e lei. A vida feliz é, pois, aquela adequada à natureza...” [6]

Seguir essa natureza universal será seguir a ordenação, a racionalidade que há nessa natureza universal, por isso, seguir a natureza será agir a partir da razão, a partir dos ditames da razão. Dito de modo diferente, a natureza humana é tal que o único modo de vida adequado é aquele onde a razão é o guia da ação dos homens, ou seja, porque o homem faz parte dessa natureza universal, ordenada e racional, é essa racionalidade que precisa ser reproduzida na vida do homem, para que sua natureza seja satisfeita. Vale citar, mais uma vez, Sêneca:

“É da natureza que precisamos como mentor e a razão a consulta e por ela se orienta.” [7]

E, quem nos ensina a agir conforme a nossa própria razão, conforme a nossa própria natureza, quem nos exercita nessa ação conforme a nossa natureza racional é justamente a filosofia. Mas se é a filosofia quem nos ensina os meios, os caminhos para vivermos segundo nossa natureza racional, se fará necessário saber qual seja o modo de vida que nos sugerirá essa razão natural. O problema posto, então, é sem dúvidas o do viver bem, ou, como deve agir o homem para que tenha uma vida boa, problema este que implica uma nova questão, ou, que pode ser reformulado em uma outra questão, isto é, qual o bem último do homem.

Trata-se aqui de identificar qual seja o bem que procurado por ele mesmo, e em vista do qual todos os demais bens são procurados, possibilitará a articulação de um modo de vida que seja o mais adequado à natureza do homem, ou, que possibilite o viver bem. Uma vez identificado esse bem [8] , que deve ser conforme a natureza do homem, já que estamos falando do estoicismo, será possível conceber um modo de vida para os homens, onde o viver bem seja alcançado, onde a vida feliz seja possível. E, desta busca também irá nos falar Sêneca:

“Eu busco o bem do homem, não o do estômago, como é provável ocorrer nos animais e nas bestas incapazes.” [9]

Será então consultando a natureza universal, guiados pela razão, que poderão os homens perceber qual seja o bem que se buscado lhes proporcionará o viver bem. Esse bem para os estóicos, adequado a realizar, a satisfazer a natureza do homem pode ser tido como a virtude: “O sumo bem é característica de um espírito que despreza os dons incertos da sorte e se compraz na virtude”.

Ou, se se quiser podemos considerar a virtude não exatamente como um fim, como um bem último a ser alcançado, mas, sobretudo, como uma qualidade para a ação humana, mais do que isso, como um conteúdo para a ação humana, isto é, a ação humana não deve somente ser aquela que se dá em vista da virtude, mas deve ser aquela que é já virtuosa, é a ação na virtude que levará o homem ao viver bem.

A ação que tem a razão por guia, a ação que pressupõe a retidão do juízo [10] é já ela a ação virtuosa, logo a virtude não é apenas um fim a ser alcançado, mas, em especial, um conteúdo, uma qualidade para a ação humana, imprescindível para o viver bem.

Ação virtuosa e ação segundo a razão se identificam, assim a ação virtuosa é a única ação adequada para os homens, a única capaz de permitir-lhes uma vida boa, já que é a única a partir da qual nos orientamos pela natureza universal, e, é a única, portanto, que possibilita a tranqüilidade da alma, estado essencial da vida feliz.         

A ação virtuosa nos protege de uma agitação na alma, nos protege de uma desmedida nas ações, que pode nos causar danos, nos protege do desassossego, da insatisfação, nos protege das ações motivadas pelas paixões.

Não à toa, nas epístolas morais dirigidas a Lucilio, Sêneca irá aconselhar seu discípulo a se afastar de todas as coisas que possam lhe causar agitação na alma. Para exemplificar:

“Queres saber qual é a coisa que com maior empenho deves evitar? A multidão! Ainda não estás em estado de freqüentá-la em segurança. Eu confesso-te sem rodeios a minha própria fraqueza: nunca regresso com o mesmo carácter com que saí de casa; algo do que já pusera em ordem é alterado, algo do que já conseguira eliminar, regressa! O mesmo que sucede aos doentes que uma longa debilidade não deixa ir a parte alguma sem recaída, nos acontece, a nós, cujo espírito se está refazendo de uma prolongada enfermidade. É-nos prejudicial o convívio com muita gente: não há ninguém que nos não pegue qualquer vício, nos contagie, nos contamine sem nós darmos isso. Por isso, quanto maior é a massa a que nos juntamos, tanto maior é o perigo.” [11]

Diferente do que pode parecer em uma primeira leitura, Sêneca não está aconselhando Lucilio a evitar o contato com os homens, diversamente, o que faz Sêneca é aconselhar Lucilio a evitar multidões, ou seja, o que pretende Sêneca que seja evitado é um alheamento de si através das massas, Sêneca não quer que seu discípulo seja guiado pelo que guia as massas, isto é, as paixões.

As multidões contaminam o homem na medida em que lhe oferecem outro guia que não a razão, que não a natureza, justamente o que torna a alma intranqüila. Vejamos:

“Os fatos que se dão nas reuniões da massa e provocam desastres (...) constata-se também em todas as situações da vida (...) Da mesma maneira que a pessoa prefere aceitar a opinião alheia a pensar pelas próprias idéias, ela limita-se a crer antes de avaliar. Assim o erro, transmitido de mão em mão – faz-nos oscilar e em seguida cair fragorosamente; arruinando-nos por imitar os semelhantes. A salvação estaria na competência de nos apartarmos da multidão. Mas a plebe é conduzida, contra a razão, a defender seu próprio mal. (...) Dependendo do caso, aprovamos e condenamos as mesmas coisas; e este é o resultado de qualquer julgamento que siga a opinião generalizada.” [12]

As multidões, as opiniões generalizadas afastam o homem do único índice que lhe é adequado, segundo a sua própria natureza, pois afastam-no da razão e da virtude.

E, por que essas multidões, essas opiniões generalizadas levam o homem à agitação, à intranqüilidade da alma? Porque essas multidões, essas massas são responsáveis pelo estímulo no apetecer bens, apetites estes que por vezes não podem ser realizados, ou, que não podem ser realizados na freqüência e intensidade com que passam a ser desejados, tornando insatisfeito o homem, fazendo-o viver na constante insegurança da satisfação de seus apetites.

É o que se dá, por exemplo, quando levados pelas paixões os homens deixam de possuir, para serem possuídos pelas suas próprias propriedades, ou, é o que ocorre quando o homem, levado pelas paixões passa a cuidar demasiado do corpo, tornando-se escravo do cuidado com o próprio corpo, ou ainda, quando levados pelas paixões os homens tornam-se ávidos de novidades, sem reterem qualquer uma das coisas com as quais tenham tomado contato. Sêneca esclarece:

“... não é pobre quem tem pouco, mas sim quem deseja mais. Que importa o que temos no cofre, ou nos celeiros, quantas cabeças de gado ou quanto capital a juros, se fizermos as contas não ao que possuímos, mas ao que queremos possuir? Queres saber qual a justa medida das riquezas? Primeiro: aquilo que é necessário; segundo: aquilo que é suficiente!” [13] (grifos meus)

Admito que é inata em nós a estima pelo próprio corpo, admito que temos o dever de cuidar dele. Não nego que devamos dar-lhe atenção, mas nego que devamos ser seus escravos. Será escravo de muitos quem for escravo do próprio corpo, quem temer por ele em demasia, quem tudo fizer em função dele. Devemos proceder não como quem vive no interesse do corpo, mas simplesmente como quem não pode viver sem ele. Um excessivo interesse pelo corpo inquieta-nos com temores, carrega-nos de apreensões, expõe-nos aos insultos; o bem moral torna-se desprezível para aqueles que amam em excesso o corpo.” [14] (grifos meus)

 “... eu, de facto, entendo que o primeiro sinal de um espírito bem formado consiste em ser capaz de parar e de coabitar consigo mesmo (...) Estar em todo o lado é o mesmo que não estar em parte alguma! (...) Um alimentos que mal é ingerido imediatamente é “devolvido”, não aproveita nem dá força ao corpo; igualmente nada prejudica tanto a saúde como a freqüente mudança de medicamentos; uma ferida não cicatriza quando se lhe aplicam tentativamente diversos remédios; uma planta nunca se robustece se continuamente a mudamos de lugar; nada enfim, por muito útil, conserva a utilidade em contínua mudança (...) Provar muita coisa é sintoma de estômago embotado; quando são muitos e variados os pratos, só fazem mal em vez de alimentar.” [15]

É da opinião do vulgo que Sêneca quer distanciar Lucilio, vez que o vulgo guiado pelos seus desejos, pelas suas paixões considera como um bem, por exemplo, a busca desmedida pelas riquezas, um cuidado excessivo com o corpo, ou, um gosto desenfreado pelo novo, é da servidão das paixões que Sêneca quer distanciar seu discípulo.

Somente a alma liberta das paixões, que não se deixa guiar pelos excessos e pelas agitações externas, poderá alcançar o viver bem, poderá alcançar a tranqüilidade de alma, sem a qual a vida feliz não é possível.

Há um estado que precisa ser buscado para que o viver bem se realize, esse estado é o de tranqüilidade da alma, contudo essa tal tranqüilidade somente é possível quando o homem, guiado pela razão, tem como conteúdo de suas ações a virtude, realizando sua natureza e libertando-se da servidão das paixões, ou, libertando-se das afecções causadas pela fortuna.

Para tanto, Sêneca considera necessário um específico movimento da alma, do homem, um movimento de retorno a si, tomando-se a si, um reivindicar-se a si mesmo.

“Procede deste modo, caro Lucilio: reclama o direito de dispores de ti” [16]

“Observa-te a ti mesmo, analisa-te de vários ângulos, estuda-te.” [17]

Faz-se necessário então essa tomada de si, essa volta a si que implica em um assenhoramento de si, condição sem a qual não poderá o homem se guiar pela razão.

Quando o homem não reivindica a si mesmo, quando o homem não dispõe de si mesmo, quando não governa a si, significa que é ele governado pelo que lhe é externo, significa que o homem é tomado pelas massas, quem dispõe dele são as opiniões generalizadas, as paixões o governam, as apetências o reivindicam.

Portanto, tomar a si, reivindicar a si mesmo implica em afastar-se das opiniões generalizadas, em negar a opinião das massas, em abandonar as paixões, em renunciar as agitações externas.

Assim, assenhorar-se de si, esse movimento de retorno, de volta a si, onde o homem toma a si mesmo é o movimento pelo qual o homem se afasta do índice das massas, é por meio dele que o homem abandona as opiniões generalizadas e o guia das paixões, logo, somente o homem que reivindica-se a si poderá agir conforme a sua natureza, poderá agir conforme a razão e alcançar o estado de alma tranqüila.

Esse por à si a razão como guia, vivendo na virtude e conforme a natureza, abandonando as paixões, proporcionando à alma humana a tranqüilidade necessária são elementos definidores do que seja o modo de vida adequado para os homens, o modo de vida suficiente e eficaz para proporcionar ao homem o viver bem.

Se quisermos, contudo, nos aproximar de Sêneca um pouco mais de perto, perceberemos que subjacente ao pensamento de Sêneca não se encontra somente uma certa concepção estóica de natureza, outras idéias estóicas não explicitadas também se fazem presente.

Para dar apenas um exemplo, podemos mencionar a idéia estóica de apatia, isto é, diante da fortuna e dos acontecimentos da vida não pode o homem deixar-se afetar, deve o homem ser indiferente diante da sorte, diante do destino [18] :

“... vês a triste e daninha servidão suportada pelo escravo dos prazeres ou das dores, os mais tiranos e caprichosos senhores; necessário é encontrar a via para a libertação. O único meio será a indiferença frente à sorte.” [19] (grifos meus)

“Então, feliz o homem dotado de reto juízo; feliz quem se contenta com seu estado e condição qualquer que seja, e aprecia o que é de sua posse; feliz quem confia à razão a gerência de toda a sua vida.” [20] (grifos meus)

Sêneca está propondo ao homem, tal como faziam os estóicos, uma espécie de apatia diante dos acontecimentos, a qual envolve uma profunda aceitação da sorte que cabe a cada um, uma espécie de sujeição ao destino, mas uma sujeição que pressupõe assentimento.

É essa profunda aceitação da sorte o que exige o estado de tranqüilidade da alma, porém, tanto essa profunda aceitação da fortuna, quanto o estado de alma tranqüila somente são possíveis se o homem estiver liberto das paixões, somente se as paixões não forem um guia para suas ações.

O homem guiado pelas paixões não é capaz de aceitar o destino, o que torna intranqüila sua alma, porque a torna desejosa, tornando infeliz o homem.

Por outro lado, o homem que se guia pela razão, ou seja, o homem que assenhorou-se de si e segue a natureza universal, porque não está sob o julgo das paixões, é capaz de suportar qualquer adversidade, percebendo-a como um movimento dessa natureza universal da qual ele faz parte, não padecendo com o destino, mas consentindo em sujeitar-se a ele, mantendo tranqüila sua alma e nisso alcançando o bem-estar e a vida feliz [21] .

Logo, o bem-estar para um estóico não se traduz em uma vida de prazeres, mas em um estado de ânimo, em outras palavras, o estado de calma, o estado de alma tranqüila. Essas idéias estóicas, embora não ditas de forma sistemática no texto de Sêneca, se fazem sempre presente, e quando não explicitamente, ali se encontram por meio de exemplos e analogias, já que para Sêneca, mais importante do que a exposição de um sistema de idéias, é saber se a forma pela qual é ele exposto é suficiente para convencer o outro:

“Não te estou falado em linguagem de estóico, mas sim em linguagem menos rigorosa. O que nós, estóicos, de facto, afirmamos é que tudo o que nos suscita murmúrios e suspiros não tem a mínima importância e só merece desprezo. Deixemos, portanto, as grandes frases, que, todavia, - ó deuses!, - são bem verdadeiras. Dar-te-ei somente esse preceito: não sejas desgraçado antes de tempo, pois o que tu temes como coisa iminente talvez nunca venha a suceder; pelo menos, é certo que ainda não sucedeu! Certas coisas angustiam-nos mais do que há razão para tal; outras angustiam-nos antes que haja razão; outras angustiam-nos sem a mínima razão. Isto é, ou exageramos o nosso sofrimento, ou o sentimos por antecipação, ou apenas o imaginamos!” [22]

Extremamente pragmático e através de uma linguagem simples o que Sêneca nos diz é que, se não se quiser considerar que há uma natureza universal, na qual está inserido o homem, e, que por isso o único modo de vida adequado ao homem é aquele segundo a razão, para o qual exige-se uma tomada de si, que afasta o homem das agitações externas e das paixões, mantendo tranqüila a alma, e, capacitando-a a manter-se inabalada diante das adversidades, viva de tal modo que perceba que as coisas que afetam o homem, que angustiam o homem, o fazem ou por exagero dos homens, ou por antecipação, ou pela imaginação.

Em outras palavras, se não for o caso de praticar um assentir com o destino, deixando-se levar por ele, o mesmo ou semelhante resultado se obterá, se perceber o homem que as coisas que os angustiam, muitas vezes, são ilusórias, ou passageiras, ou que não implicam em um grande padecimento. O que temos ao final são, portanto, alguns elementos com os quais podemos pensar a pergunta pelo viver bem em Sêneca, os quais não exaurem, mas nos indicam problemas, aspectos sem os quais não se pode, ao menos, apontar para qual seja o modo de vida mais adequado para os homens, a partir da filosofia estóica romana de Sêneca.

Uma outra aproximação

A data de nascimento de Sêneca é incerta, teria ele nascido entre 2a.C e 4d.C, sendo certa, todavia, a data de seu falecimento, 65 d.C., em conseqüência, temos um filósofo contemporâneo de Cristo.

Não são poucos os estudos que consideram que o estoicismo teria como que arado o terreno no qual floresceu o cristianismo, e, talvez a essa tradição de pensamento, deva-se a preservação de boa parte das obras de Sêneca, pois considerou-se longamente durante a Idade Média, ter havido entre o nosso filósofo romano e Paulo de Tarso uma considerável troca epistolar, incentivando então a manutenção das obras de Sêneca.

Tais epístolas, em um número total de quatorze, são consideradas apócrifas pela crítica, entretanto, uma aproximação entre as idéias estóicas e cristãs ainda são cultivadas e, embora, por vezes, algumas ligações não possam ser negadas, ignorar os pontos discordantes é violentar ambos os sistemas de idéias.

Se a questão posta para Sêneca é a que se refere ao viver bem, sua reposta, em uma primeira análise, não parece se distanciar daquela que é dada pelos cristãos, ou seja, ambos parecem concordar que viver bem é sinônimo de vida na virtude, de vida virtuosa [23] .

Sêneca, contudo, não nos dá um elenco fixo de quais sejam essas virtudes que se praticadas pelo homem lhe proporcionarão uma vida feliz, o que não nos impede de identificar algumas delas, das quais quatro, em especial, merecem menção, uma vez que são as mesmas quatro virtudes que comporão o quadro das virtudes cardeais, quais sejam, a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança.

Tanto o sábio cristão, como o sábio estóico devem ser, igualmente, homens prudentes, justos, fortes e temperantes, no entanto, essas virtudes não parecem possuir um mesmo conteúdo, quando concebidas por um cristão, e, quando concebidas por um estóico.

Para os fins do presente, nos ateremos apenas na análise das virtudes da fortaleza e da temperança, por serem nelas onde a discordância entre o conteúdo dado a essas virtudes, por estóicos e cristãos, parece ganhar maior ênfase. Em outras palavras, a fortaleza estóica não é a fortaleza cristã, e, a temperança estóica não é a temperança cristã.

Nesse embate, tomaremos Sêneca como representante do estoicismo e Tomás de Aquino, segundo a leitura de Josef Pieper, como representante do cristianismo.

Da fortaleza

Em linhas muito gerais, Tomás de Aquino concebe que a fortaleza trata-se da virtude, por meio da qual o homem é capaz de aceitar um sofrimento, contudo não só isso, aceita ele um sofrimento na medida em que é este meio para alcançar uma mais profunda incolumidade, ou seja, aqui concebe-se que “a essência da fortaleza está em receber ferimentos na luta pela realização do bem” [24] .

Falamos, portanto, de um homem que é vulnerável, que pode se ferir, e, que porque é forte, aceita esse ferimento, ainda que lhe custe a vida, desde que o alcance do bem, ou, de uma incolumidade mais profunda esteja pressuposta.

Ao pesar o mal que se sofrerá e o bem que se realizará, o homem forte é capaz de entregar-se a um holocausto de si próprio, na expressão de Pieper.

Portanto, porque procede a uma pesagem do mal a ser sofrido e do bem que se realizará, a virtude da fortaleza, envolve de alguma maneira, uma apreciação racional desse agente, contudo, não se trata de uma apreciação racional que afasta as paixões, em outras palavras, o homem forte não é aquele que não teme.

A ação guiada pela virtude da fortaleza não é aquela que, se faz possível porque realizada por um homem que não teme, que não é afetado pelo medo. Vale citar:

“O homem forte vê; reconhece que o ferimento que aceita é um mal. Não falseia a realidade nem inverte seu valor, saboreia-a como ela realmente é: não ama a morte, não despreza a vida. A fortaleza pressupõe, em certo sentido, que o homem tema o mal; a sua essência não está em não experimentar qualquer sensação de medo, mas em não se deixar dominar por ele ao ponto de chegar a abster-se de realizar o bem.” [25]

“Portanto, fortaleza não significa ausência de medo. É forte todo aquele que, embora sentido medo de males não extremos e transitórios, não se deixa convencer a renunciar aos bens últimos e intrínsecos e aceita incondicionalmente a coisa que teme.” [26]

A virtude da fortaleza para o cristianismo de Tomás de Aquino não exige, portanto, o afastamento das paixões, uma vez que, o homem forte, assim o é justamente porque em sendo vulnerável, ou seja, em estando suscetível à dor, ao sofrimento, ao padecimento, aceita-o, apesar das paixões que o afetam e que poderiam afastá-lo dessa aceitação.

O homem forte o é, aqui, especialmente porque em sendo afetado pelas paixões, como o medo, ainda assim é capaz de aceita a dor em razão da realização de um bem. As paixões são, portanto, um elemento fundamental para o exercício da virtude da fortaleza do homem cristão, realizar um bem, mesmo na aceitação de um ferimento, apesar das paixões é o que faz de um homem forte, nos moldes cristãos.

Pois bem, embora se exija do sábio estóico a virtude da fortaleza, a fortaleza estóica terá um conteúdo diverso da cristã.

A virtude da fortaleza no sábio estóico também se manifesta pela aceitação de um ferimento, todavia, essa aceitação não se dá para o alcance de um bem, diferentemente, essa aceitação é já uma ação segundo o bem.

Em outras palavras, o sábio estóico é aquele que aceita o destino, a fortuna, ainda que envolvam um ferimento, uma adversidade, entretanto, eles assim o fazem porque compreendem que este destino, que esta fortuna é expressão do movimento de uma natureza universal racional na qual eles estão integrados. Logo, se sujeitar ao destino, com ele consentindo, ainda que se expresse ele por uma adversidade é já agir conforme essa natureza, ou, é já agir conforme a razão, ação esta que é, portanto, para a escola estóica, conforme o bem. Aceitar o destino é então já a realização do bem.

Não só, essa ação que aceita a adversidade, trazida pelo destino, somente se pode dar quando é ela conforme a natureza, conforme a razão, todavia, se é ela conforme a razão, no estoicismo, assim o é porque se dá na ausência dos efeitos causados pelas paixões.

Ou seja, o sábio estóico é forte não apesar das paixões, mas sim na ausência dos efeitos das paixões.

A aceitação do destino, no estoicismo, somente pode-se dar em um específico estado de ânimo, qual seja, o de tranqüilidade da alma, o qual, por sua vez, somente é possível quando a ação humana é não só guiada pela razão, mas também e por isso, não é afetada pelas paixões.

Fundamental parece ser frisar que, a ação guiada pela razão é aqui concebida como aquela que nos protege dos efeitos das paixões, que nos torna imune às paixões, portanto, o homem forte não é apenas aquele que não se deixa guiar pelas paixões, mas, sobretudo, aquele que não se guia pelas paixões porque não se deixa afetar por elas.

Logo, o sábio estóico não teme, mais do que isso, é forte porque não teme a adversidade, e não a teme porque em sendo ela expressão da natureza universal da qual ele mesmo faz parte, aceitá-la e com ela consentir é já a ação no bem, e, é já guiar-se pela razão, único guia suficiente para proporcionar à alma o estado de tranqüilidade, sem o qual o viver bem não é possível.

Assim, enquanto a fortaleza cristã é aceitação de um ferimento, com vistas a um bem, apesar das paixões, a fortaleza estóica é a ação no bem que aceita a adversidade porque guiada pela razão e não afetada pelas paixões.             

Da temperança

Grosso modo, a temperança, conforme pretende Tomás de Aquino é um determinado estado, um estado de quietude de ânimo, uma espécie de ordenação interior que proporciona um estado de tranqüilidade de ânimo. Vejamos:

“O fim da temperança é a ordem interior do homem, o equilíbrio interno, donde, e só dali, flui toda aquela ‘quietude de alma’. Temperança significa: realização da ordem e do equilíbrio em si próprio.” [27]

Em sendo assim, a temperança implica na prática de um determinado retorno a si próprio que ordena o ânimo, ou ainda, que dispõe as paixões do homem em uma certa ordem, de tal forma que possam ser fruídas na medida e na forma que beneficiam o homem.

“A temperança por isso disciplina e corrige todas as perversões egoístas da ordem interior, sobre a qual a pessoa moral se fundamenta e vive agindo.” [28]

Mais ainda, agir pautados de acordo com a temperança não implica em uma negação das paixões, ou, de abster-se o homem das paixões, trata-se, por outro lado, de ordená-las, de moderá-las na conformidade do bem.

Para o cristianismo é válida a dualidade entre corpo e alma, por isso aquilo que tem origem no corpo, as apetências que nos são causadas pelo sensível, as paixões do corpo fazem parte do homem, da natureza do homem, por isso não fará sentido, para o cristianismo de Tomás de Aquino, conceber o ânimo temperado como aquele onde as paixões estão ausentes.

Porque fazem parte da natureza do homem, que não é só alma, mas é também corpo, as apetências decorrentes do sensível não podem ser estirpadas do homem, diferentemente, devem ser moderadas, ordenadas.

O homem temperante, para os cristãos, é então aquele capaz de retornar a si e ordenar, moderar suas apetências. Exemplo disso é o tratamento dado por Tomás de Aquino aos desejos sexuais, aqui reconstruído por Pieper:

“A insensibilidade (insensibilitas) total aos desejos sexuais, que certamente muitos há que consideram, ou gostariam de considerar, como ‘verdadeiros’e perfeito ideal segundo a doutrina cristã, é julgada na Summa theologica não só como um defeito, mas até classificada como um vício verdadeiro e próprio (vitium).” [29]

Não se trata, portanto, de cultivar uma insensibilidade às paixões, ou, como no exemplo, aos desejos sexuais, trata-se, por outro lado, de dar-lhes uma ordem, de moderá-los, conforme o bem.

Do sábio estóico também se exige uma moderação nas ações, um agir conforme a temperança, para o que exige-se também um retorno a si, contudo, para os estóicos a temperança não será uma virtude que busca dar às paixões uma certa ordenação.

Temperante, para um estóico, também é o homem cujo o ânimo [30] se encontra em tranqüilidade, cuja alma alcançou um específico estado, ou seja, o de quietude, de tranqüilidade.

Ainda, de igual forma, o sábio estóico para alcançar esse estado de alma tranqüila precisa proceder a um retorno a si, mais do que isso, a um assenhoramento de si, a uma reivindicação de si, ou seja, o sábio estóico é aquele que ao retorna a si, toma a si, impondo-lhe uma determinada ordenação, uma determinada disposição para a ação.

No entanto, a ordenação buscada pelo sábio estóico não se trata da ordenação de suas paixões.

Para um estóico o estado de tranqüilidade de alma somente é possível quando o homem segue a natureza, não qualquer natureza, mas a natureza universal racional da qual ele faz parte, portanto, também a sua própria natureza. Seguir essa natureza, que é universal e que lhe é própria, é também, para um estóico, como já se mencionou, seguir a razão, já que há uma racionalidade permeando toda essa natureza universal, na qual está integrado o homem.

Porém, para seguir essa natureza, essa racionalidade que permitirá ao homem o estado de alma tranqüila, ele somente o pode fazer se retornar a si, se se assenhorar de si, é nesse assenhoramento de si que o homem pode lhe por como guia a razão.

E, esse movimento do homem que toma a si implica, no estoicismo, no abandono das agitações externas, das agitações causadas pelo sensível, ou seja, implica no abandono das paixões, implica em uma negação das paixões, em um afastamento das paixões, o que também já se expôs.

Dada a natureza do homem, tal como a concebem os estóicos, a ação racional é da natureza do homem, contudo, a ação passional não, dito de outro modo, quando o homem age conforme as paixões não age ele conforme a sua própria natureza, por isso, não é suficiente para um estóico a moderação de suas paixões, como o era para o cristianismo, onde as paixões faziam parte da natureza do homem.

Para um estóico, a ação conforme a natureza, a ação temperada, a ação ordenada, que leva ao estado de alma tranqüila é somente aquele que afasta as paixões, que nega as paixões, que abandona as paixões e pauta-se somente pela razão.

Logo, se para os cristãos a ação temperante é aquela que, visando à quietude de ânimo, ordena as apetências do sensível, moderando-as, de outra parte, para um estóico, a ação temperante é aquela que, visando a tranqüilidade da alma, abandona as paixões, guiando-se somente pela razão.

O que temos então é a explicitação de que, cristãos e estóicos parecem querer um mesmo resultado, ambos parecem propor a vida na virtude como o modo de vida mais adequado aos homens, no entanto, não só o meio de alcançar uma ação virtuosa é distinto, como, sobretudo, o próprio conteúdo do que seja a ação virtuosa é diverso, o que, embora possa marcar pontos de distanciamento, por outro lado, torna ambos os sistemas de idéias mais instigantes por si mesmos.

Inegável é, todavia, a pergunta comum, a pergunta pela qual buscamos nos aproximar de Sêneca, a mesma, aliás, que o aproxima e o afasta do cristianismo, qual seja, a pergunta pelo viver bem.

Considerações finais

O texto de Sêneca não deixa de ser um jogo, um jogo de idéias que ora se escondem, mas deixando-nos pistas, indícios, e, que ora se mostram, porém mostrando-se à maneira senequiana, ou seja, por meio de uma apresentação pragmática, direta, simples, quase banal, fingindo uma superficialidade que não lhe é própria.

Aproximarmos de um texto assim, exige-nos então que participemos do jogo de Sêneca, que estejamos atentos as pistas que ele nos deixa, que aprendamos a ler seus indícios, e, sobretudo, que não nos deixemos levar por seu discurso leve, de aparente descompromisso.

Estaremos diante de um texto que se presta ao convencimento, preocupado com a conversão do outro e, que por isso, por vezes, esconde-se propositalmente, no entanto, não estaremos diante de um texto ingênuo, cujas afirmações não merecem uma análise mais detida. Nisso a importância de rastrearmos as pistas que Sêneca nos deixou, são elas afinal que nos revelam o texto senequiano, mais do que isso, são elas que de fato nos aproximam das idéias de Sêneca.

Será então, jogando com as palavras e com as idéias que irá Sêneca apresentar-nos seu pensamento, assim quando perguntado pelo bem viver, os elementos necessários para pensar a questão do bem viver em Sêneca, não se encontrarão rigorosamente organizados, sistematicamente expostos, nem mesmo n’ A vida feliz, porém, ainda que brincando com as idéias, Sêneca não deixa de apresentar quais sejam esses elementos, por exemplo, o viver bem não pode ser pensado em Sêneca afastado das idéias de uma vida conforme a natureza, de um necessário estado de alma tranqüila, de um assenhoramento de si, permitindo-nos então a reconstrução do seu pensamento, e uma aproximação de sua filosofia, permitindo-nos enfim o contato com suas idéias.  

 

Referências bibliográficas

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[1] O estoicismo é uma escola filosófica que surge no final do século IV a.C., com Zenão, e, é dividida tradicionalmente em três períodos: o estoicismo antigo, o médio e o estoicismo romano. Sêneca será um autor do estoicismo romano.

[2] Sêneca, L. A. Cartas a Lucilio. carta 16, 3. p. 55.

[3] Sêneca, em mais de uma de suas obras, afirma-se um estóico, concebe-se, portanto, como seguidor da Stoa, contudo outras influências filosóficas são evidentes em suas obras, como a do epicurismo, dos pitagóricos, e, até mesmo algumas idéias aristotélicas e platônicas, aproximando-o de um ecletismo para alguns comentadores. Não só, mesmo que o consideremos, de fato, um estóico, o que parece mais acertado - já que as demais influências filosóficas das quais ele se apropria, parecem lhe ser interessantes, especialmente, na medida em que corroboram ou, de alguma maneira, se articulam com as idéias estóicas -, não há como ignorar algumas novidades introduzidas por Sêneca no estoicismo, inovações estas, entretanto, controvertidas, por vezes concebidas como contraditórias ao próprio sistema estóico, e, por vezes concebidas somente como sutis alterações, próprias do estoicismo romano. Questões estas complexas, cuja discussão não será aqui desenvolvida.

[4] A natureza estóica não é somente uma natureza que engendra a si mesma em uma certa disposição, é ela também a divindade, é comum dizer-se dos estóicos que naturalizam eles a divindade e divinizam a natureza, pois é justamente isso o que fazem, a natureza para o estoicismo é já a divindade, e, a divindade é já a natureza.

[5] Sêneca, L. A. op. cit. carta 05, 4. p. 11. 

[6] Sêneca, L. A. A vida feliz. III. p. 27.

[7] Idem, ibidem. p. 33.

[8] A discussão que pergunta pelo bem último foi melhor desenvolvida por outros autores, como Platão e Aristóteles. Segundo Aristóteles, por exemplo, existem bens que são procurados por eles mesmos, como aqueles que o são em vista de outros bens, contudo, existiria um único bem que é procurado pelos homens por ele mesmo e, em vista do qual todos os demais também o são, esse é o bem último, no caso de Aristóteles, a eudamonia, o bem-estar. E, será no horizonte desse bem último que se pensará no melhor modo de vida para os homens.

[9] Sêneca, L. A. op. cit.. IX. p. 36.

[10] Cabe frisar, que a ação virtuosa para o estoicismo não é simplesmente aquela que é guiada pela razão, mas sim a que é guiado por um juízo reto, por um juízo retamente orientado, contudo a ênfase em tal distinção nos traria questões que não se pretende abordar no presente.

[11] Sêneca, L. A. op. cit.. carta 07, 1-2. p. 14-5.

[12] Sêneca, L. A. op. cit. I. p. 25.  Faz-se necessário mencionar que tais afirmações de Sêneca não se contrapõem a idéia de filosofia como assimilação de uma doutrina, primeiro porque o que Sêneca está criticando são as opiniões do vulgo, as quais porque não tem por guia a razão, são arrastadas de um lado a outro conforme suas paixões, ora sustentando uma posição, ora pendendo para outras. Segundo porque para um estóico a compreensão de uma idéia como verdade depende de seu assentimento a essa mesma idéia, logo não faria sentido para um estóico propor-se a assimilação da doutrina de seus mestres, se estas não lhe parecessem de fato corretas, ou seja, não se trata aqui de seguir os ensinamentos de uma escola simplesmente porque foram propostos por um especifico mestre, mas também porque esses ensinamentos são percebidos como verdadeiros pelo seguidor.

[13] Sêneca, L. A. op. cit. carta  02, 6. p. 04.

[14] Sêneca, L. A. op. cit. carta 14, 1-2. p. 44.

[15] Idem, ibidem. carta  02, 2-4. p. 03-4.

[16] Sêneca, L. A. op.cit. carta 01, 1. p. 01. 

[17] Idem, ibidem. carta 16, 2. p. 55. 

[18] Várias discussões envolvem essa simples afirmação, por exemplo, surge com ela a questão do determinismo e do fatalismo estóico, isto é, como sustentar a necessidade de uma moral qualquer em um mundo onde todas as coisas estão já determinadas, ou, em que medida o homem pode se considerar livre diante dessa concepção de mundo, questões estas que ultrapassam os limites do presente trabalho.

[19] Sêneca, L. A. op. cit. IV. p.  29.

[20] Idem, ibidem. p. 31.

[21] Aí me parece estar a liberdade para os estóicos. Mais do que estar liberto das paixões, ser livre para um estóico é dar seu assentimento ao destino, é não ser arrastado pelo destino, é deixar-se conduzir por ele, por isso, não se trata de mera sujeição, de mera submissão, porém sim de uma sujeição com consentimento, ainda que seja esta uma fórmula paradoxal. Somente o homem liberto das paixões é capaz de tal movimento. Daí se dizer que o lugar da moral estóica está, sobretudo, voltada para a intenção do sujeito e não para a ação. 

[22] Sêneca, L. A. op. cit. carta 13, 4-5.p. 40.

[23] Faz-se necessário ressaltar que, a vida de fato feliz para um cristão é somente aquela alcançada na vida eterna, o que, no entanto, não impede uma reflexão sobre o viver bem nesta vida, ponto onde se encontram cristianismo e estoicismo, já que o último não concebe o que seja o viver bem fora do horizonte de uma vida atual e imanente.

[24] Pieper, Josef. As virtudes fundamentais. p. 179.

[25] Pieper, J. op. cit. p. 185.

[26] Idem, ibidem. p. 187.

[27] Pieper, J. op. cit. p. 215.

[28] Pieper, J. op. cit. p. 219.

[29] Idem, ibidem. p. 223.

[30] Ao tratarmos da virtude da temperança em Tomás de Aquino importante era na discussão mantermos o uso do termo “ânimo”, já que com ele designa-se algo mais específico do que com o termo afim “alma”, ou seja, como nos explica Pieper, com ele se designa o centro das faculdades intelectuais e volitivas do homem, ou, o livre arbítrio. Todavia, uma tal distinção não parece fazer sentido para o estoicismo, esse centro de faculdades intelectuais e volitivas não deixa de ser, de alguma maneira, já a alma para a escola estóica, o que nos permite usar ambos os termos como sinônimos para o tratamento do estoicismo.