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Entrevista Sergio Rábade Romeo
A Filosofia e a Vida Quotidiana

 

Entrevista com o Dr. Sergio Rábade Romeo, Madrid, 16-4-98. Sergio Rábade, conhecido filósofo e primeiro Reitor da San Pablo, conversa com os Profs. Jean Lauand e Mario Sproviero sobre seu filosofar. Tradução do castelhano e edição: Jean Lauand.


JL: Que temas têm marcado sua trajetória como pensador e quais as pesquisas de que se ocupa no momento?

SR: Profissionalmente, sendo professor de filosofia, minha especialidade é basicamente a teoria do conhecimento, que foi a cátedra que exerci na Universidade Complutense durante trinta anos. Daí que tenha publicado obras sobre os grandes autores da modernidade. Para mim, a modernidade começa no século XIV, concretamente com Guilherme de Ockham, a quem dediquei um livro há muitos anos e, depois, obras sobre Descartes, Espinosa, Hume, Kant e, também, livros específicos sobre teoria do conhecimento.

     Neste momento, concretamente, estou desenvolvendo um projeto, um tanto curioso, que trata do relacionamento da vida quotidiana com o conhecimento. Os filósofos - para usar a frase popular castelhana - nos subimos a la parra, afastamo-nos da realidade, encerramo-nos em uma torre e nos esquecemos de que o homem da rua - o que toma uma cerveja, o que dirige seu carro, o que discute com sua sogra... - tem certos conhecimentos dos quais habitualmente não se ocupa a teoria do conhecimento dos filósofos: estamos mais voltados para o conhecimento científico, para o conhecimento formal, para o conhecimento transcendental... E eu penso que se deve levar a filosofia à sociedade. E a sociedade é um conjunto de indivíduos que andam pela rua, que estão em casa, que têm que comer e fazer uma série de coisas. Isto é o que me interessa.

     Não esqueço que, para mim, os problemas filosóficos devem ser vistos sempre como eles acontecem na história: os problemas filosóficos não surgem do nada; vêm no bojo do fluxo da história e, por isso, grande parte de minha meditação tem se voltado a ver como surgem esses problemas históricos.

     Acho que isto responde, resumidamente, a sua pergunta.

JL: O tema do conhecimento comum, do homem da rua é, sem dúvida, um tema de extrema importância e, além do mais, fascinante. Eu penso, por exemplo, nas pesquisas de um Josef Pieper que chega a afirmar que o que distingue "os clássicos" em filosofia - e aí se incluem não só um Platão ou um Agostinho, mas mesmo um Tomás e até Aristóteles - é a comunicação na linguagem comum...

SR: Conheço esse livro, mas para mim também ele fica ainda um pouco en la parra, não me desce à quotidianidade: em que cenário se desenvolve a vida quotidiana, de onde recebemos esses conhecimentos, que tipo de valor têm, com que crenças agimos... Eu penso que é necessário ir a algo muito mais concreto, quando chegamos realmente à vida quotidiana, do dia a dia, do hora a hora...

JL: ...Nesse caso, a instância concreta seria a linguagem...

SR.: Hombre! O que acontece é que, em boa medida, todos nós vivemos de uma herança de conhecimento e o veículo dessa herança de conhecimento é fundamentalmente a linguagem...

JL: E qual é a metodologia adequada?

SR: A metodologia. Eu começo por analisar, como dizia antes, os cenários. Todos nós vivemos num cenário da natureza, mesmo que seja uma natureza humanizada em alto grau; num cenário sociológico - vivemos numa certa zona social - e num cenário cultural. Então, a partir do estabelecimento dos três cenários, vamos ao indivíduo: a cada indivíduo, a como se arranja nesses cenários. E aqui entra um capítulo sobre os interesses que nos estão fazendo atuar: todos nós estamos - consciente ou inconscientemente - fazendo projetos. E então, o conhecimento da vida corrente não é um conhecimento teórico, é um conhecimento prático. Há muito que investigar nesse campo o que está nos dando muito trabalho, porque não encontro nada feito.

JL: Qual vai ser o título de seu livro sobre este tema?

SR: O título, em princípio, é Conocimiento y vida ordinaria com um subtítulo Ensayo sobre la vida cotidiana.

MS: A ciência tem uma linguagem - ou uma terminologia - necessariamente afastada da linguagem comum, ainda que haja um trabalho de divulgação científica. No caso da filosofia, há épocas em que ela está muito mais próxima da sociedade e épocas - como me parece ser a atual - em que a filosofia se afasta totalmente do homem comum....

SR: É precisamente meu ponto de partida. Inclusive tenho um pequeno artigo, publicado na Revista de Filosofía, sobre a crise da filosofia atual como crise de afastamento da sociedade. E quando os filósofos nos queixamos de que a sociedade não liga para nós, eu devolvo a pergunta, invertendo-a: acaso os filósofos ligam para a sociedade? É preciso encarar este fato e este é um pouco meu caminho. Para os filósofos é muito cômodo encerrar-nos em nosso jargão técnico e ficar falando de "a priori", de "transcendentais" etc. E isto para o homem da rua, como costumamos dizer em Espanha, le suena a chino, "é grego" para ele. Penso que, efetivamente, é necessário um esforço - caso queiramos que realmente a filosofia atinja a sociedade, senão ficamos fazendo filosofia lá em nossos gabinetes, em discussão com nossos estudantes e a sociedade nem toma conhecimento...

LJ: ...O que é muito perigoso para a filosofia e para a sociedade...

SR: Para todos. Porque, sem dúvida, em outras épocas, por exemplo, na Idade Média, com aquela cultura profundamente teocêntrica, a linguagem teológica estava mais perto dos fiéis, que estavam imersos nesse âmbito.

     No caso da modernidade, a filosfia estava próxima da vida ordinária das pessoas cultas. Por que? Porque, na modernidade, o filósofo e o cientista até coincidem na mesma pessoa: Descartes é filósofo e matemático; Leibnitz é filósofo, físico e matemático; Newton era catedrático de Filosofia Natural...

     Então, as pessoas cultas os entendiam. Relativamente, porque é curioso: no século XVIII, em que havia essa idolatria de Newton , em Paris se estabeleciam aqueles salões de tertúlias culturais dirigidos sempre por uma dama de vida duvidosa (quanto mais duvidosa sua vida, maior o sucesso do salão); naqueles salões, discutia-se Newton e as damas não entendiam nada. Então surge todo um gênero literário: "Newton para damas". Há - que eu conheça - doze livros do gênero em francês e seis em alemão. Trata-se precisamente desse trabalho de aproximação daquilo que eles chamavam de Filosofia Natural (e Newton, como lembrávamos, era catedrático de Filosofia Natural)...