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Dois Sermões de Agostinho -
Estudo Introdutório

extraído do livro: Jean Lauand (org.) Cultura e Educação
na Idade Média
, São Paulo, Martins Fontes, 1998 

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Prof. Dr. Jean Lauand

 

A função educadora do sermão

Atualmente, a palavra "sermão" já se pode entender simplesmente como um "arrazoado longo e enfadonho com que se procura convencer alguém" ( [1] ). Nosso tempo, mais voltado para o visual, para os "efeitos especiais", para o imediato, e menos propenso ao ouvir e à reflexão, mal pode imaginar o que representavam para o povo os sermões de pregadores geniais como Agostinho, Crisóstomo, Bernardo, Tomás de Aquino e outros grandes mestres antigos e medievais.

O sermão complementava as leituras litúrgicas da missa. Enquanto pregação oficial da Igreja, expressava também seu caráter hierárquico: era o bispo quem falava de sua cátedra ( [2] ), em geral sentado. Os fiéis o ouviam em pé ( [3] ), muitos deles munidos de um cajado para apoiar-se ( [4] ).

Logo cedo, normalmente aos sábados e domingos, o bispo vinha ao encontro da elite espiritual de seus fiéis. O povo, como era costume na Antigüidade, várias vezes aplaudia e aclamava o pregador ao longo do sermão. Mostrava desse modo que estava entendendo uma alusão mais sutil, ou que concordava com uma admoestação, ou que se lembrava da explicação dada num sermão anterior, ou que considerava uma sentença particularmente feliz.

Os sermões podiam durar dez minutos ou duas horas, dependendo da conveniência pastoral, do número e da formação dos assistentes, da ocasião litúrgica, da complexidade do tema, da disposição do pregador, ou mesmo do calor. O próprio Agostinho freqüentemente manifestava sua intenção de não se prolongar por muito tempo e chegava a pedir "um pouco mais de paciência" quando o desenvolvimento do sermão o obrigava a demorar-se.

De qualquer forma, os assuntos doutrinais e teológicos continham para aqueles ouvintes um significado único. Não eram vistos como uma coisa acessória ao cotidiano mas como algo vívido e vivido, de profundo alcance existencial. Só levando em conta este vínculo entre religião e vida é possível compreender o impacto educacional que a homilética de então provocava. O último camponês analfabeto e o trabalhador mais rústico podiam estar destituídos de tudo. Tinham, porém, uma riqueza inalienável: a de encontrar na Igreja (e na igreja) a abertura da alma para a grandiosidade, tanto arquitetônica e plástica ( [5] ) como a da inteligência e a da palavra.

O valor pedagógico da memória na pregação

O principal interesse do bispo de Hipona era pastoral e não retórico, embora, precisamente por isso, apresentasse discursos de inesquecível beleza. Voltava-se para o homem comum, apoiando-se - aliás, como fazia todo o educador da época - na sensibilidade e na memória de seus ouvintes.

Ao contrário da pedagogia atual, que não valoriza e até chega a desprezar a memória, Agostinho e todos os grandes medievais sabiam reconhecê-la como o tesouro por excelência, como um precioso dom de Deus. A memória, muito mais do que a mera faculdade natural de "lembrar-se" ou o exercício de habilidades mnemônicas, era vista como a base de todo o relacionamento humano com a realidade. "A memória é, para S. Agostinho, a primeira realidade do espírito, a partir da qual se originam o pensar e o querer; e assim constitui uma imagem de Deus Pai, de quem procedem o Verbo e o Espírito Santo" ( [6] ).

Além disso, devemos considerar também o fato de que a época carecia de recursos de escrita (até a escrita manual era dificultosa). A memória, portanto, era o principal instrumento de quem aprendia, e muitos sabiam de cor os sermões de Agostinho! Que professor ou que pregador hoje em dia atrever-se-iam a sugerir que alguém literalmente decorasse um discurso de uma hora de duração? Para os antigos, porém, esse pedido fazia sentido.

O sermão se dirigia mais a lembrar verdades já sabidas do que a transmitir novos ensinamentos. E Agostinho não se importava de repetir certas idéias todos os anos, o que fazia os ouvintes mais afoitos anteciparem-se ao sorridente pregador.

O estilo de Agostinho

"Como Agostinho pregava? A resposta é breve: biblicamente. Agostinho pregava baseando-se nas leituras bíblicas que ocorriam na liturgia ou que ele mesmo escolhia. Sua pregação partia da Bíblia, tratava da Bíblia e se acompanhava da Bíblia (...) Gerações inteiras extasiaram-se ante o modo como ele sabia juntar três ou quatro textos da Escritura, pô-los em harmonia e arrancar um acorde maravilhoso" ( [7] ).

Os dois sermões aqui traduzidos mostram a incrível facilidade com que Agostinho relacionava passagens da Escritura. Parecia ter a Bíblia toda - e todas as conexões entre seus milhares de versículos - constantemente diante dos olhos.

Calcado nessa contínua referência escriturística, Agostinho punha a forma a serviço dos fins pedagógico-catequéticos e, portanto, da memória, que alimentaria a inteligência, a conduta moral e a vida interior dos fiéis durante aquela semana, no trabalho, na vida familiar etc.

As considerações espirituais eram ilustradas por comparações retiradas do cotidiano. Certa vez, após exortar ao desprendimento dos bens materiais e criticar contundentemente os avarentos, Agostinho propõe a generosidade, valendo-se de uma realidade familiar a seus ouvintes:

"Que havemos de fazer, pois, com as nossas riquezas? <<Sede ricos em boas obras, dadivosos, generosos>> (I Tim 6,18) (...). Deus não quer que percas as tuas riquezas, mas te aconselha a mudá-las de lugar. Que vossa caridade me entenda: suponhamos que não sejas bom conhecedor do trigo e que entrasse em tua casa um amigo perito na conservação desse cereal, e visse que o armazenas no chão úmido e te desse um conselho: <<Irmão, estás a perder o que com grande esforço colheste, pois, se o deixares em lugar úmido, em poucos dias estará podre>>. <<Que devo fazer, irmão?>>. <<Sobe-o para o andar de cima>>. Tu, que ouves um amigo que sugere a elevação do trigo, não ouves a Cristo que te aconselha a elevares teu tesouro da terra para o céu, não já para conservar o que guardas, mas para sublimar? Guardavas terra e receberás céu; guardavas o perecedouro e receberás imortalidade" (En. 48,1,9).

Agostinho incidia sobre todos os aspectos da vida, preocupado em secundar o papel que a Igreja desempenhava desde o fim da Antigüidade - e continuaria a desempenhar ao longo da Idade Média - como educadora do povo. E não apenas com relação à inteligência. A Igreja era também a grande escola de formação humana e moral. Numa de suas cartas, Agostinho apontava a ação vivificadora de atitudes éticas "que se ensinam e aprendem em nossas igrejas, que crescem e se espalham por todo o mundo como santas escolas dos povos" (Epist. 93,3).

Nessa tarefa educadora, Agostinho sabia que a beleza era fundamental, não só pelo valor que possui em si mesma mas também porque mantém o ouvinte atento e atua sobre a sua memória. Mestre do ritmo, da rima e dos jogos de linguagem antes mesmo de converter-se ao cristianismo, Agostinho valeu-se depois de todo o seu arsenal retórico nos sermões. No sermão 265A, sobre a ascensão do Senhor, começa com estas engenhosas e belas oposições rimadas, dificilmente traduzíveis:

Hoje brilhou o dia solene e santo da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo: exultemos e alegremo-nos nele.

Christus descendit, inferi patuerunt.
Christus ascendit, superna claruerunt.
Christus in ligno, insultent furentes.
Christus in sepulcro, mentiantur custodientes.
Christus in inferno, visitentur quiescentes.
Christus in caelo, credant omnes gentes.

(Cristo desceu, os infernos se abrem; Cristo ascendeu, os céus se glorificam; Cristo na cruz, insultam-no os furiosos; Cristo no sepulcro, mentem os guardas; Cristo nos infernos, sejam visitados os que repousam; Cristo no Céu, creiam todos os povos).

Para que essas profundas idéias sobrevivam na mente de seu rebanho e lhe sirvam como alimento espiritual, Agostinho oferece ao povo fórmulas-resumo rimadas/ritmadas que se tornam um gancho de memória entre a pregação que se ouviu hoje e a realidade que se enfrentará amanhã ( [8] ).

Neste ponto, precisamente, reside uma das maiores dificuldades da tradução: como preservar esses jogos de linguagem, tão importantes no caráter do discurso? No sermão 112A, transcrito mais adiante, Agostinho, referindo-se às doutrinas do mundo opostas a Deus e comparando-as à comida de porcos ansiada pelo filho pródigo, diz que são sonantes, mas não saginantes - literalmente, vistosas mas que não nutrem -, o que acabamos traduzindo por: "servem para ostentar, mas não para sustentar".

Essas formulações, recorrentes na pregação de Agostinho, atuavam sobre o ouvinte como os slogans da publicidade, com a diferença de que eram espontaneamente procurados pelo destinatário, não em busca do fútil consumo mas da transcendência.

A síntese entre espontaneidade e domínio da arte retórica numa linguagem compreensível para o povo simples e o arrebatamento de coração causado pela Sagrada Escritura numa alma sensível e aguda como a de Agostinho explicam o fascínio que seus sermões exerciam sobre seus ouvintes e que também nós, leitores de hoje, podemos experimentar.



[1] . Dicionário Aurélio.

[2] . Na época, era proibido em algumas igrejas que o presbítero pregasse o sermão; só o bispo podia fazê-lo. Agostinho, no entanto, pôde pregar mesmo quando ainda era sacerdote.

[3] . Já Agostinho reconhecia o exagero deste costume - sobretudo quando o sermão se alongava - e louvava a prática, corrente em algumas igrejas de então, de que o povo pudesse sentar-se.

[4] . cfr. Jungmann, J. A., El sacrificio de la Misa, Madrid, BAC, 1963, 4ª ed. p. 503 e ss.

[5] . Como poderá o homem contemporâneo, acostumado à funcionalidade da arquitetura "Bradesco", compreender o papel do educar-para-a-grandiosidade, educar-a-alma, de uma catedral gótica, dos vitrais, Biblia illiteratum, de Chartres?

[6] . PIEPER, J., Das Viergespann, München, Kösel, 1964, p. 29-30.

[7] . MEER, F. van der, San Agustín - Sermones, Madrid, BAC, 1985, p. 519, 554. Dessa criteriosa obra, extraímos alguns dos exemplos que se seguem.

[8] . Em outros casos, porém, são um mero recurso estilístico. Ao condenar o linchamento de um certo militar, homem odiado e mau (se bem que não defendesse o mal, mas simplesmente condenava o linchamento), disse: "Fazer o bem é incompatível não com a militia, mas com a malitia" (302,15).