Religião e Filosofia em Algazali

Org: A. R. Hanania 1994

 

Algazali - Máximas de Sabedoria do Islam

 

Algazali e o Ayyuha al-Walad (Ó Filho)

 

 

 

Algazali - Máximas de
Sabedoria
do Islam

 

Estudo Introdutório

 

Aida Rámeza Hanania

 

A célebre sentença moderna que afirma a identidade entre meio e mensagem encontra aplicação com total propriedade no caso do Oriente com as máximas de sabedoria.

Valem aqui, para as máximas de sabedoria, as mesmas considerações que temos já feito alhures para seus irmãos, os provérbios. O sistema língua/forma de pensamento, para usar o conceito de Lohmann ( [1] ), com relação ao árabe, encontra, nessas sentenças, sua mais perfeita correspondência.

Em vez de longos e articulados discursos, a língua árabe (o pensamento árabe) expressa-se de modo muito mais natural e autêntico por rápidas sentenças de caráter incisivo, que atingem o íntimo do interlocutor por condensarem séculos (ou milênios...) de uma sabedoria mais do que humana.

Os ergo e os demonstrandum do Ocidente dão lugar ao qala (disse). "Disse Junaid...", "Disse Abu al-Qasim..." "Disse Hassan al-Basri..." não expressam uma adesão cega à autoridade de um sujeito particular, mas, à milenar voz da sabedoria que, por eles, fala. É a verdade das coisas que se deixa ver na trouvaille do dito. Este fato é apontado precisamente em uma das sentenças preferidas de Algazali: "Disse 'Ali ben Abi Talib: Não reconheças a verdade na boca das pessoas; antes, reconhece a verdade. E assim, poderás reconhecer quem diz a verdade".

Por detrás de cada sábio, a sabedoria. Sabedoria que, por sua vez, remete, de modo mais ou menos mediato, à sua Fonte: O Altíssimo. E a Seu enviado. E a Seu livro.

Algazali é um polêmico pensador muçulmano; um místico em constante e angustiada busca da união com Deus, como revela sua extensa obra. Por mais interessante e original que seja seu pensamento filosófico-teológico, interessa-nos, neste estudo, somente o Algazali fiel depositário de sua tradição.

Se as sentenças são uma constante nos autores árabes, em Algazali são especialmente importantes. Assim, quando surgiu a idéia, consubstanciada neste livro, de apresentar, em paralelo, as bases "medievais" de sabedoria sentencial do Ocidente e do Oriente (cabendo-me a edição de um contraponto árabe para os autores e sentenças de Defensor de Ligugé), Algazali pareceu-me o mais adequado.

Tanto no campo formal, quanto no conceitual, Algazali é um mestre na apresentação dos autores e sentenças mais representativos da alma islâmica. Procuramos preservar essa representatividade na seleção e na classificação temática das sentenças que escolhemos a partir do exame de diversas obras do autor.

Alguns dados biográficos. Abu Hamid Muhammad ibn Muhammad al-Ghazzali, conhecido simplesmente como Algazali (1058-1111), nasceu em Ghazal, na Pérsia. Iniciou sua educação em Tus, com um sufi, amigo de seu pai. Estudou Direito em Jarjan, transferindo-se depois para Nissapur, onde foi discípulo (1079-1085) de Abu-l-Maali al-Juwaym. Nessa época, passou por profunda crise de ceticismo, que descreve em seu Munqid. Atribuiu a uma iluminação divina, a superação dessa crise. Em 1091, é nomeado reitor da madrassa nizamyyah de Bagdad, com enorme êxito como professor, estudando intensamente o aristotelismo e o kalam. Em 1095, gravemente doente, sofre forte crise moral, que durou seis meses: deixa Bagdad e refugia-se em Damasco, onde se dedica plenamente ao sufismo (cujos excessos virá a criticar depois). Em 1097, vai a Jerusalém, aprofundando-se, cada vez mais, em seu ascetismo. Retorna a Bagdad, como pregador de vida espiritual e conclui sua obra Vivificação das ciências da religião e o Munqid.

As sentenças selecionadas procedem de autores e personagens clássicos do Islão, do Alcorão e dos hadiths ( [2] ). Nos dois últimos casos, são precedidas pelas fórmulas: "Disse o Profeta...", "Disse o Altíssimo..." ou "Diz o hadith...".

Após cada sentença, indica-se, por abreviaturas, como segue, a obra de Algazali ( [3] ) da qual ela procede: AW (Ayyuha al-walad - Ó filho); MQ (Al-Munqid min al-dalal - O salvador do descaminho); IU (`Ihya 'Ulum ad-dyn - Vivificação das ciências da religião); MA (Mishkat al-anwar - Tabernáculo das Luzes); DF (Ad-durra al-fakhira - A pedra preciosa); KM (Kitab al-mahabba...); HH (Kitab al halal wa al-haram) e KZ (o livro dos bons costumes em relação ao casamento, parte de `Ihya 'Ulum ad-dyn ).

 

Máximas de Sabedoria

 

Algazali

(seleção, tradução e notas de ARH)

 

1. Servir a Deus

1. Disse o Profeta: "Quando um homem tem o espírito preocupado com o que não lhe compete, este é o sinal de que o Altíssimo abandonou seu servidor. Aquele que perde uma hora de sua vida em algo distinto do serviço de Deus para o qual foi criado, merece que Deus prolongue sua pena no dia do juízo. E aquele que chegue aos quarenta anos sem que suas boas ações ultrapassem as más, já pode se preparar para o fogo" (AW).

 

2. A vã erudição

2. Disse o Profeta: "O pior suplício no dia da Ressurreição será o do estudioso, que não aproveitou seu saber diante de Deus" (AW).

3. Disse Abu al-Qasim ( [4] ): "Os belos discursos foram vãos e as fórmulas eruditas provaram-se estéreis; nada nos foi útil, a não ser algumas prostrações, realizadas no meio da noite" (AW).

 

3. As boas obras

4. Disse o Altíssimo (LIII, 40): "Apenas seus próprios atos contarão ao homem" (AW).

5. Disse o Altíssimo (XVIII, 110): "Aquele que espera encontrar-se com seu Senhor, que pratique boas obras" (AW).

6. Disse o Altíssimo (XVIII, 107): "Os que crêem e praticam o bem, terão por morada eterna o paraíso, que não quererão trocar por nenhuma outra" (AW).

7. Disse o Altíssimo (XIX, 60-61): "Deixaram de orar para se abandonarem a suas inclinações pessoais. Um triste destino lhes está reservado. Exceção será feita àqueles que se arrependerem, acreditarem e praticarem boas ações. Entrarão no paraíso e não serão privados de nenhum de seus méritos" (AW).

8. Disse Hassan al-Basri ( [5] ): "No dia do juízo, dirá o Senhor a seus servos: `Entrai no Paraíso, vós que me adorais, por minha misericórdia; participai dele conforme vossas obras'" (AW).

9. Disse 'Ali: "Quem pensa que vai chegar ao Paraíso sem se esforçar, é um homem de desejos ineficazes; quem pensa chegar apenas com suas próprias forças, sem contar com a graça divina, é um presunçoso" (AW).

10. Disse o Altíssimo (LV, 60): "Não será o próprio bem a recompensa do bem?" (KM).

 

4. A palavra

11. Disse o Profeta (XIV, 24): "Deus propõe um mathal para a boa palavra: ela é comparável a uma boa árvore cuja raiz é sólida e sua ramagem toca o céu" (KM).

12. Disse o Profeta (XVIII, 109): "Se o mar fosse tinta para as palavras de meu Senhor, esgotar-se-ia o mar antes das palavras de meu Senhor, mesmo que a ele juntássemos outro mar de tinta" (KM).

13. Disse Ibn Mas'ud: "Tomai a luz do Alcorão e penetrai em seu sentido oculto: nele está a ciência dos princípios e dos fins" (KM).

 

5. A fé

14. Diz o hadith: "O Islão foi construído sobre cinco fundamentos: Atestar que não há outra divindade senão Deus e que Muhammad é o profeta de Deus; rezar; dar esmola; jejuar no mês de Ramadan e, para aqueles que têm possibilidade, fazer a peregrinação a Meca" (AW).

15. Diz o hadith: "A fé é, ao mesmo tempo, a palavra, a sinceridade e as obras" (AW).

16. Disse Ubayy Ibn Ka'b: "A luz do coração de quem crê é como a de um tabernáculo" (MA).

17. Diz o hadith: "A alma de quem crê é um pássaro que se alteia por sobre as árvores do Paraíso" (DF).

18. Disse o Profeta (XXXIX, 22): "Aquele, cujo coração Deus abriu ao Islão, acaso não se encontra numa luz vinda de seu Senhor?" (KM).

19. Disse o Profeta (LXXXIII, 21): "Os que estão próximos de Deus, dEle são testemunhas" (KM).

20. Disse Abu al-Darda': "A plenitude da fé está em suportar com paciência aquilo que ela impõe (hukm) e em sentir-se contente com o destino que ela reservou para ti" (KM).

6. Vaidade e humildade.

21. Disse Jesus no Evangelho ( [6] ): "Desde o momento em que o morto é colocado no caixão até que o depositem no sepulcro, Deus, em sua grandiosidade, faz-lhe quarenta interpelações. A primeira delas é: `Meu servo, durante muitos anos procuraste ficar bem aos olhos dos homens e, nem sequer por uma hora, cuidaste de ficar bem a meus olhos. Todos os dias olhava Eu para teu coração e te dizia: `Estás coberto de favores meus e aplicas-te a agradar aos outros?' Mas, estavas surdo e não ouvias'" (AW).

22. Disse 'Ali ben Abi Talib ( [7] ): Não reconheças a verdade na boca das pessoas; antes, reconhece a verdade. E assim, poderás reconhecer quem diz a verdade (MQ).

23. Disse o Profeta: "Õ Deus, não permitas que eu me encha de orgulho" (IU).

24. Disse Huthaifa, companheiro do Profeta: "Irmãos, busquem outro para guia de oração ou façam-na sem guia, porque eu começo a sentir-me vaidoso com este cargo" (IU).

25. Diz o hadith: "Ao que é humilde, Deus eleva; ao orgulhoso, Deus humilha. E aquele que se lembra incessantemente de Deus, Deus o ama" (KM).

 

7. A oração.

26. Disse o Altíssimo (LI,18): "Ora de noite" (XVII,81) e "Na madrugada, implora o perdão" (AW).

27 Disse o Profeta: "Três vozes são gratas a Deus: o canto do galo, a recitação do Alcorão e a voz dos que suplicam perdão de madrugada" (AW).

28. Disse Sufyan al-Thawri ( [8] ): "Deus criou um vento que sopra ao amanhecer, levando à presença do Rei soberano os pedidos de perdão e adhkár ( [9] ) (AW).

29. Disse o Profeta sobre Abdallah ben-'Umar ( [10] ): "Que graça este homem teria, se orasse de noite" (AW).

30. Disse Luqman ( [11] ): "Filho, não seja o galo mais consciencioso do que tu: ele já está de manhã desperto, enquanto tu dormes" (AW).

31. Disse Qatada: "Destacam-se entre as palavras do Altíssimo: `Aqueles que crêem, repouse seu coração no dhikr ( [12] ) de Deus, pois é somente no dhikr de Deus que seus corpos encontrarão repouso" (KM).

 

8. A tolice

32. Disse Jesus no Evangelho ( [13] ): "Impossível para mim não foi ressuscitar mortos, mas curar os néscios" (AW).

 

9. Retidão e sinceridade para com Deus

33. Disse o Profeta: Deus não olha para o exterior nem para vossas ações, mas sim para o coração e a intenção (AW).

34. Disse Abu Huraira: "O Profeta disse que, no dia da Ressurreição, três serão os primeiros a serem interrogados - de início, o homem culto, a quem se indagará sobre o uso que fez de seus conhecimentos. E ele responderá: `Fiz o possível para propagá-los'. Deus e os anjos, porém, dirão: `Falas com falsidade. Teu único propósito (e o atingiste!) era o de ser considerado sábio pelos outros'. O segundo será o rico a quem se indagará sobre suas riquezas. E ele responderá: `Dia e noite distribuí-as como esmola'. Deus e os anjos, porém, dirão: `Falas sem verdade. O que querias (e o conseguiste!) era simplesmente ser considerado generoso'. O terceiro será o mártir a quem também se indagará sobre seus atos. E ele responderá: `Õ Senhor, Tu ordenaste a jihad ( [14] ), e eu Te obedeci: caí em combate!'. Deus e os anjos, porém, repicarão: `Mentes. Teu objetivo (e o alcançaste!) era apenas o de ser louvado como herói'. E o Profeta concluiu: `Estes três serão os primeiros a serem lançados às chamas do Inferno'" (IU).

35. Disse Yaqub, o sufi: "Reto é quem oculta suas virtudes como se costuma ocultar os vícios" (IU).

36. Disse Junaid: "Há alguns servos de Deus que são sábios, que agem como sábios, que são sinceros em seu agir; a sinceridade, então, os leva à virtude" (IU).

37. Disse Ruyam: "Sincero é quem não atenta para a recompensa de suas ações: nem neste mundo, nem no outro" (IU).

 

10. O amor

38. Disse o Profeta: "Aqueles dentre vós, que tendes boa disposição e vos amais uns aos outros, afetuosa e ternamente, sois meus companheiros chegados" (IU).

39. Disse Rabi'a: "Não permita Deus que eu O sirva como um mau empregado, pensando só no salário; estou inundada pelo amor" (IU)

40. Disse Hassan al-Basri: "Aquele que conhece seu Senhor, ama-O; aquele que conhece este mundo terreno, desdenha-O" (KM).

41. Disse Junaid: "O sinal do amor é um ardor durável e assíduo que leva a buscar a paixão que enfraquece o corpo e não enfraquece o coração" (KM).

42. Disse Junaid: "Todo amor existe para ser correspondido; se a correspondência cessa, cessa também o amor" (KM)

 

11. O caminho para Deus

43. Disse o Profeta (II, 142): "Ele desencaminha quem Ele quer e orienta quem Ele quer" (MQ).

44. Diz o hadith: "Verdadeiramente, o desejo dos virtuosos é ter comunhão comigo e eu anseio por vê-los" (IU).

45. Diz o hadith: "A quem dá um passo em direção a Mim, Eu lhe estendo a mão" (IU).

46. Diz o hadith: "Não fosse pelos diabos que rondam seus corações, os homens teriam visto as glórias do Reino dos Céus" (IU).

47. Diz o hadith: "Ninguém dentre vós será um crente, a menos que ame, sobre todas as coisas, a Deus e a Seu enviado" (IU).

48. Disse o Altíssimo (LXI, 4): "Deus ama aqueles que cerram fileiras, como se fossem um sólido edifício, para lutar por Sua causa" (KM).

49. Diz o hadith: "Deus faz Sua morada na casa de seu servo, na medida em que Seu servo Lhe tenha preparado uma morada em sua alma" (KM).

 

12. Felicidade

50. Disse o Profeta: "A felicidade que ultrapassa todas as outras é uma longa vida transcorrida em obediência a Deus" (KM).

 

13. A vida eterna

51. Disse o Profeta (XXIX, 64): "Na morada do outro mundo é que está verdadeiramente a vida. Se eles soubessem..." (KM).

52. Disse Abu Sulayman al-Darani: "Se os servos de Deus não se desviam de Deus pelo medo do inferno e pela esperança do Paraíso, como pode este mundo desviá-los de Deus?" (KM).

53. Disse o Altíssimo (XVII, 21): "Há, na vida futura, categorias mais e menos elevadas e distinções" (KM).

54. Disseram Thawri e Bishr al-Hafi: "Não há aversão pela morte, senão para o cético, que duvida; pois, os por Ele amados, desejam reencontrar seu Amado" (KM).

 

14. Amizade, solidariedade e companhias

55. Disse o Profeta: "Deus, quando quer mostrar Sua bondade a uma pessoa, dá-lhe um bom amigo" (IU).

56. Disse o Profeta: "As almas são como soldados combatentes: da proximidade dos que se conhecem, surge a amizade; da distância dos que se desconhecem, a oposição" (KM).

57. Sahl disse: "Evitai a companhia de três tipos de pessoas: os tiranos, que se esquecem de Deus; os ulemás que praticam simulação e os sufis ignorantes" (IU).

58. Disse Ibn Mas'ud: "Se um homem (servo de Deus) foi morto no Oriente e outro, no Ocidente, se alegra, este é cúmplice do assassino" (KM).

59. Disse Abu Darr: "Quem se junta a certas pessoas, torna-se um deles" (HH).

 

15. A tribulação

60. Disse o Profeta: "Quando Deus ama a um de seus servos, envia-lhe tribulações. Se ele as suporta pacientemente, é favorecido. E enfrentá-las alegremente é sinal de que é eleito de Deus" (IU).

61. Disse o Profeta (IV,45): "Deus conhece bem vossos inimigos. Deus vos basta como protetor. Deus vos basta como defensor" (KM).

 

16. Grandeza de Deus

62. Disse o Profeta: "Deus tem setenta véus de luz e de trevas; se Ele os tirasse, as glórias fulgurantes de Sua face consumiriam todo aquele que fosse atingido por Seu olhar" (MA).

 

17. Avareza e usura

63. Disse o Profeta: "Ai daquele que é escravo do dinheiro; ai daquele que é escravo do ouro!" (MA).

64. Disse o Profeta: "Um dirham proveniente da usura é mais grave aos olhos de Deus que trinta adultérios cometidos entre os muçulmanos" (HH).

 

18. O arrependimento

65. Disse o Profeta: "Arrepender-se de um pecado é como não o ter cometido" (DF).

 

19. A justiça

66. Diz o hadith: "Deus disse: `A injustiça de um injusto não prevalecerá. Com efeito, se ela prevalecesse, Eu é que seria injusto'" (DF).

67. Disse o Profeta (VI, 164; XVII, 16 etc.): "Nenhuma alma pecadora arcará com o fardo de outra" (KZ).

 

20. Deveres e proibições

68. Disse Ibn Mas'ud: "A busca do conhecimento, disse o Profeta, é um dever de estrita obrigação para todo muçulmano" (HH).

69. Disse o Profeta: "Quando uma carne é alimentada do que é ilícito, ela não merece senão o fogo" (HH).

70. Disse o Profeta: "Quando alguém não se preocupa em saber por que meios adquire seus bens, Deus também não se preocupa em saber por qual dos caminhos Ele o fará entrar na fornalha" (HH).

71. Disse o Profeta: "Quem chega ao final do dia, cansado por ter procurado o lícito, passa a noite perdoado e, pela manhã, Deus está satisfeito com ele" (HH).

72. Disse o Profeta: "Quando alguém adquire bens em situação de pecado e, depois, os distribui como esmolas e gastos  pelos caminhos de Deus, Ele reúne tudo em bloco para arremessar à fornalha" (HH).

73. Diz o hadith: "Há o que claramente é lícito e o que claramente é ilícito e, entre os dois, há casos duvidosos, ignorados por muitos. Guardar-se do duvidoso é preservar a honra e a religião incólumes; acolher o duvidoso equivale a fazer pastar seu rebanho à beira de um recinto reservado, a um passo de incorrer no proibido" (HH).

74. Disse Ibn Mas'udi: "Viveis num país onde os açougueiros são, em grande maioria, zoroastrianos: cuidai vós, pois, de distinguir entre animal puro e animal morto" (HH).

75. Disse o Profeta: "Não há, aos olhos de Deus, pecado maior que os de deixar os de sua casa na ignorância" (KZ).

 

21. A prática religiosa

76. Disse o Profeta: "A melhor parte de vossa prática religiosa é a probidade sensível" (HH).

77. Disse o Profeta: "Àquele que se apresenta diante de Deus, tendo praticado a probidade sensível, Deus dá a inteira recompensa do Islão" (HH).

78. Sahl at-Tustari disse: "Quatro condições devem ser observadas para que se atinja a verdadeira fé: cumprir os deveres de estrita obrigação, conforme a Suna; alimentar-se do que é lícito, segundo a probidade sensível; abster-se do que é proibido aos foros externo e interno e, nisso, perseverar até a morte" (HH).

79. Disse o Profeta: "Assim como Deus não aceita a oração sem as abluções, tampouco aceita a esmola que vem da fraude" (HH).

 

22. A temperança

80. Disse Abu Hurayra: "O estômago, no ventre, disse o Profeta, é bebedouro: nele, as veias vêm beber. Se o estômago é são, dele retiram saúde; se corrompido, corrupção. Entre alimento e prática religiosa dá-se a mesma relação que há entre fundações e construção: se as fundações são sólidas, a construção ergue-se retamente; se as fundações são fracas e inadequadas, o edifício desmorona e cai" (HH).

81. Disse Ibrahim ben Adham: "A sensibilidade de percepção só é dada àquele que tem discernimento sobre o que ingere" (HH).

82. Disse Yahya ben Mu'ad: "A obediência (o seguimento de Deus) é um tesouro de Deus. Para abri-lo, porém, a chave é a invocação e os dentes dessa chave são os bocados de alimento lícito ( [15] )" (HH).

 

23. A adulação

83. Disse Abu Hurayra: "Aos olhos de Deus, disse o Profeta, os mais odiosos leitores do Alcorão são os que freqüentam os príncipes" (HH).

84. Disse Abu Darr: "Não te apresses a ir às portas dos príncipes; não conseguirias tirar algo de seus bens, senão à custa de desprender-te de tua religião" (HH).

85. Disse Sufyan: "Na gehena, há um vale inteiramente povoado por leitores do Alcorão que freqüentaram os reis" (HH).

86. Disse Al-Awza'i: "Nada é mais odioso a Deus que um teólogo-jurista em visita a um governador" (HH).

87. Disse Al-Fudayl: "Ninguém se aproxima do príncipe, sem se afastar de Deus" (HH).

 

24. A Prudência

88. Disse Ibn Sirin: "Não te encarregues de levar uma carta ao príncipe, sem saber o que ela contém" (HH).

 

25. A mulher, o casamento

89. Disse o Profeta: "Aquele se casa põe em segurança a metade de sua religião" (KZ).

90. Disse 'Umar: "Não há obstáculos para o casamento, exceto a incapacidade de sustentar a família e a libertinagem" (KZ).

91. Disse Ibn Abbas: "A devoção do devoto não é completa, enquanto ele não for casado" (KZ).

92. Disse Abu Sulayman al-Darani: "Uma mulher virtuosa não é deste mundo, pois ela te põe a caminho da bem-aventurança da vida futura" (KZ).

93. Disse o Profeta: "Que cada um de vós garanta a posse de três coisas: um coração agradecido, uma língua que invoque a Deus e uma mulher piedosa e virtuosa, que o ajude a obter a salvação eterna" (KZ).

94. Disse o Profeta: "Desposa-se uma mulher em razão de sua fortuna, de sua beleza, de sua linhagem e de sua fé. Procura, pois, aquela que tem a fé. De outro modo, que caias na miséria" (KZ).

95. Disse 'Ali: "Três defeitos no homem, são, na mulher, virtudes: a avareza, o orgulho e o medo" (KZ).

96. Disse o Profeta: "A melhor de vossas mulheres é aquela que se regozija quando seu marido a olha, que obedece suas ordens, que, estando ele ausente, guarda preciosamente sua lembrança e sua fortuna" (KZ).

97. Disse o Profeta: "Deveis desposar uma mulher fecunda e amorosa" (KZ).

98. Disse o Profeta: "Não vos caseis com parentes muito próximos, pois o filho terá constituição fraca" (KZ).

99. Disse o Profeta: "O crente mais perfeito é aquele que mostra melhor caráter aos olhos das mulheres e é o mais doce com sua família" (KZ).

100. Disse o Profeta: "Deus deu ao marido o mando sobre sua mulher. Entretanto, se ele permitir que a mulher mande, inverterá a ordem estabelecida, aplicando os princípios às avessas, cumprindo o propósito de Satanás, que diz (IV, 118): `Eu lhes ordenarei mudar a criação de Deus'" (KZ).

 


Algazali e o Ayyuha al-Walad (Ó Filho)

 

Aida Rámeza Hanania

 

Abu Hamid Muhammad ibn Muhammad al-Ghazzali, Algazali (1058-1111) nasceu em Ghazal, na Pérsia. Iniciou sua educação em Tus, com um sufi, amigo de seu pai. Estudou Direito em Jarjan, transferindo-se depois para Nissapur, onde foi discípulo (1079-1085) de Abu-l-Maali al-Juwaym. Nessa época, passou por profunda crise de ceticismo, que descreve em seu Munqid (Salvador contra o erro). Atribuiu a uma iluminação divina, a superação dessa crise. Em 1091, é nomeado reitor da madrassa nizamyyah de Bagdad, com enorme êxito como professor, estudando intensamente o aristotelismo e o kalam. Desenganado de vez com a razão, refugia-se na fé em Deus e nos profetas: a salvação não vem da razão, mas da fé e é obtida pela virtude, que eleva a alma à contemplação de Deus. Compôs contra os filósofos A destruição dos filósofos e outras obras.

Em 1095, gravemente doente, sofre forte crise moral, que durou seis meses: deixa Bagdad e se refugia em Damasco, onde se dedica plenamente ao sufismo (cujos excessos virá a criticar depois). Em 1097, vai a Jerusalém, aprofundando-se cada vez mais em seu ascetismo. Retorna a Bagdad, como pregador de vida espiritual e conclui sua obra Vivificação das ciências religiosas e o Munqid.

O opúsculo Ayyuha al-Walad, Ó Filho, foi escrito no fim de sua vida e resume suas conclusões sobre o sentido profundo da religião. Chega a ser considerada, por alguns críticos, como uma das mais importantes de suas obras.

Ayyuha al-Walad é a resposta à solicitação de um sheikh que dedicara a vida às diversas ciências e, ao se aproximar da morte, indaga-se (e indaga ao mestre...) pelo sentido de tantos estudos em relação a Deus e à vida futura.

Antes de oferecer ao leitor a tradução do início dessa obra, apresentamos o estudo "Teologismo e Filosofia" ( [16] ) do medievalista Gilson, que mostra o caráter paradigmático de Algazali na História das Idéias.

 

Teologismo e Filosofia

 

Etienne Gilson (trad. por ARH)

 

Quando, no final do século XI e começo do XII, os homens da Idade Média descobriram, pela segunda vez na história, a Lógica, embriagaram-se com o vinho do raciocínio formal e com a abstrata beleza de suas leis.

Daí sua tendência natural a tratar qualquer questão com método puramente lógico. Foi o que ocorreu com a Filosofia e - como era de esperar - também com a Teologia. A única diferença foi que não houve filósofos de porte para resistir a essa intromissão dos lógicos, ao passo que foram muitos os teólogos decididos a atalhar as incursões dos lógicos no campo da Teologia. De fato, praticamente nenhum dos grandes lógicos daquele tempo deixou de ser acusado ou inclusive condenado por heresia. Berengário foi condenado por haver tratado dialeticamente a transubstanciação. Roscelino de Compiegne e Abelardo, por sua interpretação dialética do mistério da Trindade. Contudo, o próprio Abelardo permanecia moderado neste ponto (pelo menos ele se considerava moderado e não se pode negar que uma de suas principais intenções quando começou a escrever sobre temas teológicos, era mostrar como se podia fazê-lo sem prejuízo da norma necessária da lógica ou da indiscutível autoridade da fé cristã. É uma pena que boa vontade e lógica não possam formar um filósofo nem um teólogo. Quando Abelardo morreu como velho e piedoso monge num mosteiro beneditino, sua doutrina continuava condenada pela Igreja. Em sua polêmica com São Bernardo de Claraval, havia sido este, e não Abelardo, o vencedor.

A história desta longa luta entre lógicos e teólogos, que durou mais de um século, não teria, para nós, maior interesse, se não fosse pelo fato de que a própria Filosofia viu-se rapidamente nela envolvida. Era natural que os professores de Lógica do século XII, que nunca haviam tratado de outros temas que não a Gramática e a Lógica e não sabiam distinguir Lógica de Filosofia, se denominassem filósofos.

Ora, teólogos não encontravam razões para se preocuparem com os erros cometidos pelos lógicos; se elas existiam, eles não as encontravam. A única coisa de que estavam conscientes, neste ponto, era de que os que ensinavam Lógica eram os mesmos a quem vulgarmente se chamava filósofos e de que esses homens pensavam que a Filosofia não era mais do que Lógica aplicada a questões filosóficas. Mas é claro que se se desse liberdade à Lógica para encetar a discussão de questões teológicas, o resultado inevitável seria a completa destruição da Teologia. Por sua profissão e época, não se podia esperar dos teólogos que vissem com mais clareza do que os próprios lógicos, o erro que implicava uma concepção puramente lógica da Filosofia. Como teólogos, sua tarefa não era salvar a Filosofia do logicismo, mas salvar a Humanidade da condenação eterna, por meio da fé e da graça. Qualquer obstáculo que se interpusesse, deveria ser removido sem contemplações, ainda que se tratasse da própria Filosofia. Porém, indicar à Teologia o melhor caminho para se desembaraçar da Filosofia, era uma questão bem mais difícil.

O caminho "fácil" para solucionar a dificuldade era extirpar do entendimento humano a Filosofia e os problemas filosóficos. Onde quer que haja uma Teologia ou meramente uma fé, não faltam nunca teólogos crentes e extremamente zelosos que afirmem que as almas piedosas não necessitam de conhecimentos filosóficos e que a especulação filosófica é radicalmente incompatível com uma vida religiosa sincera.

Há, entre os partidários de tal atitude, alguns de mente mais primária, mas, há também pessoas muito inteligentes, cuja capacidade especulativa não é inferior a seu zelo religioso. A única diferença que há entre eles e os verdadeiros filósofos é que, em vez de usar sua razão em auxílio da Filosofia, dirigem sua habilidade natural contra esta.

Se considerarmos, por exemplo, a história do pensamento islâmico, Algazali nos oferece um exemplo cabal de tal atitude. Muitos anos antes de sua época, tinha havido, no Islão, uma violenta reação contra a introdução da dialética na Teologia. Os dois grupos espirituais, cuja incessante rivalidade ocupa a história inteira da Idade Média cristã, já são claramente discerníveis nos albores da história do pensamento islâmico. O Profeta, de acordo com a tradição, teria dito: "A primeira coisa que Deus criou foi o Pensamento ou Razão" ( [17] ) e alguns teólogos muçulmanos inferiram dessa afirmação que a especulação era um dos deveres dos fiéis. Um argumento paralelo a um texto similar nos escritos de Berengário de Tours.

Em contrapartida, para outros teólogos muçulmanos, "tudo o que passasse do ensino ético corrente era heresia..., porque a fé deve ser obediência e não... conhecimento" ( [18] ); atitude análoga à de um numeroso grupo de teólogos cristãos posteriores.

Algazali foi o melhor expositor desta segunda atitude, porque estava brilhantemente dotado para a especulação que, por outro lado, detestava profundamente. Sua famosa Destruição dos filósofos, escrita por volta de 1090, constitui uma surpreendente confirmação da sentença aristotélica de que, mesmo para refutar a Filosofia, é necessário filosofar. Algazali foi capaz de voltar as armas de Aristóteles contra o próprio aristotelismo, tal como o haviam exposto Alfarabi e Avicena. O fato de que estivesse influenciado por um comentador cristão de Aristóteles, João Philoponus, explica seu assentimento substancial às críticas que teólogos cristãos posteriores fizeram a Aristóteles. Isto, porém, extrapola nosso tema. O único ponto que nos interessa aqui é a surpreendente semelhança entre estas duas atitudes e, mesmo, a identidade de seus resultados filosóficos. Usar a razão contra a razão em benefício da religião é em si uma atitude legítima e eventualmente, até nobre; mas quem a adota, deve estar preparado para afrontar as inevitáveis conseqüências.

Em primeiro lugar, quando a religião tenta se estabelecer sobre as ruínas da Filosofia, o normal é que surja um filósofo decidido a fundar a Filosofia sobre as ruínas da religião. Depois de um Algazali, freqüentemente aparece um Averróes, que contesta a Destruição, com uma Destruição da destruição, como de fato aconteceu com o livro, publicado por Averróes, com este título. Tais apologias da Filosofia, por mais sugestivas que sejam em suas oposições à Teologia, normalmente destróem a religião.

Em segundo lugar, com estes conflitos, a Filosofia ganha tão pouco como a própria religião, porque a maneira mais fácil de os teólogos garantirem seu ofício, é demonstrar que a Filosofia não pode alcançar com a razão, conclusões válidas sobre questão alguma referente à natureza e destino do homem. Daí, o ceticismo de Algazali em Filosofia; ceticismo que ele, como costuma acontecer, quis redimir com o misticismo religioso. O Deus que a razão não pode conhecer, pode ser captado pela experiência da alma; o mundo que a razão humana não pode compreender, pode ser transcendido e, como de fato aconteceu, sobrevoado pelo espírito de profecia. Não é necessário dizer que o filósofo enquanto tal, nada tem contra o misticismo; o que não lhe agrada é um misticismo que pressuponha como condição necessária, a destruição da Filosofia. Se a vida mística - como parece certo - é uma das necessidades permanentes da natureza humana, não só se deve respeitá-la, mas também protegê-la contra os freqüentes assaltos de inteligências superficiais.

Mas também é certo que o conhecimento filosófico é uma constante necessidade da razão humana, e que esta necessidade deve ser igualmente respeitada. O maior problema e, ao mesmo tempo, o mais importante de todos, é manter essas duas atividades espirituais que honram a natureza humana e dignificam a vida do homem. Nada se ganha com destruir uma para salvar a outra, porque ou se mantêm juntas, ou caem juntas. Sem uma Teologia, não há misticismo verdadeiro e toda Teologia sadia busca o suporte de uma Filosofia. Uma Filosofia que, afinal, não reserve lugar, à Teologia é uma Filosofia míope; e como qualificar uma Teologia, que não leve em conta, pelo menos a possibilidade da experiência mística?

O obscuro sentimento da necessidade destas relações tem levado freqüentemente os teólogos a tratar a especulação filosófica de um modo muito menos radical. Em vez de tentar aniquilá-la, desautorizando a palavra dos filósofos, alguns pensaram que era melhor dominá-la e, por assim dizer, domesticá-la, absorvendo-a na Teologia. Creio, contudo, que seria um erro encontrar neste fato pérfidas intenções. Quando os teólogos - seja qual for a doutrina particular de cada um - tentam refazer a Filosofia para acomodá-la a suas próprias crenças, o que os move a isso é a sincera convicção de que a Filosofia é uma coisa excelente, tão excelente que seria uma vergonha deixá-la morrer.

Por outro lado, se a verdade revelada é por hipótese, verdade absoluta, não resta outro caminho para salvar a Filosofia, senão mostrar que seus ensinamentos se identificam substancialmente com as da religião revelada. Os diversos sistemas a que esta atitude deu lugar, têm sido quase sempre sublimes e impressionantes, às vezes profundos, e, muito raramente, irrelevantes. Freqüentemente, foram fonte de progresso filosófico devido à seriedade de sua intenção e a sua audácia para defrontar-se com os mais altos problemas da Metafísica. Têm jeito de Filosofia, expressam-se como Filosofia e, às vezes, são estudados nas escolas como Filosofia; mas, de fato, não passam de teologias disfarçadas de Filosofia. Chamemos a tal atitude "teologismo" e vejamos como atua.

Por mais diversas que estas doutrinas possam ser de acordo com as diferentes épocas, lugares e civilizações em que foram concebidas, sempre, no final de contas, se assemelham, pois todas estão intoxicadas por um determinado sentimento religioso que chamarei singelamente: sentimento da Glória de Deus. Sem dúvida, não existe verdadeira religião sem este sentimento: é o mais profundo e o que há de melhor nela. Mas uma coisa é experimentar profundamente certo sentimento e outra, permitir-lhe que, sem controle da razão dê uma interpretação completa do mundo. Sempre que se permitiu à piedade entrar no campo da Filosofia, o resultado foi que teólogos pios, para enaltecer mais a glória de Deus, investiram contra a própria criação divina. Deus é grande, alto, onipotente. Que melhor prova pode-se dar destas verdades do que mostrar que a natureza e a humanidade são criaturas insignificantes, vis e totalmente desprovidas de poder? Mas, este método é muito perigoso, porque seu desenvolvimento prejudica igualmente a Filosofia e a religião.

Nesse caso, a seqüência de teses costuma ser, com demasiada freqüência, a seguinte: alguns teólogos, com a melhor intenção do mundo, dão por verdade filosoficamente estabelecida que Deus é e faz tudo, enquanto a natureza e o homem nada são e nada fazem; surge, então, um filósofo que leva a sério à demonstração feita pelo teólogo da impotência da Natureza e exacerba, ainda mais, tal debilidade, para demonstrar que existe Deus. E, assim, chega-se, logicamente, à conclusão de que a natureza está desprovida por completo de realidade e de inteligibilidade. E, neste caso, o ceticismo é inevitável.

Ora, alguém pode conviver com o ceticismo filosófico, enquanto esteja respaldado por uma fé religiosa positiva. Porém, se essa fé desaparece, que nos resta senão um ceticismo absoluto?

 

Ó Filho!

 

Abu Hamid Muhammad ibn Muhammad al-Ghazzali, Algazali
Trad. de Áida R. Hanania

 

Que saibas, ó filho amoroso e querido - que Deus prolongue tua vida pela submissão que Lhe prestas e que Ele te conduza pelo caminho dos que são objeto de Sua complacência - que os melhores conselhos recolhem-se da própria mensagem do Profeta. Se já conseguiste tirar dela conselhos, que interesse terás nos meus? Mas se, pelo contrário, nada conseguiste, dize-me o que aprendeste, então, em todos estes anos que se passaram?

Ó filho, dentre os conselhos dados pelo Profeta de Deus ( [19] ) à Comunidade, encontra-se esta sentença: "Quando um homem tem o espírito preocupado com o que não lhe compete, este é o sinal de que o Altíssimo abandonou seu servidor. Aquele que perde uma hora de sua vida em algo distinto do serviço de Deus para o qual foi criado, merece que Deus prolongue sua pena no dia do juízo. E aquele que chegue aos quarenta anos sem que suas boas ações ultrapassem as más, já pode se preparar para o fogo". O conselho é suficiente para o bom entendedor.

Ó filho! Dar conselhos é fácil, difícil é seguir E são amargos ao paladar daqueles que seguem seus caprichos; pois as coisas proibidas são doces a seus corações. Viso, especialmente, aqueles que aspiram ao estudo da ciência especulativa e se preocupam com as excelências do próprio espírito e com os caminhos deste mundo. Crêem que sua salvação dependerá de seu saber abstrato e não de suas obras. Tal é a posição dos filósofos.

Glória ao Todo Poderoso: esses espíritos enganados ignoram que, se atingiram uma ciência, e dela não tiram proveito para o bem agir, ela será, sem dúvida alguma, invocada contra eles, como disse o Profeta: "O pior suplício no dia da Ressurreição será o do estudioso, que não aproveitou sua Ciência diante de Deus".

Conta-se que Gunayd ( [20] ) apareceu em sonhos depois de sua morte. Disseram-lhe: "Que tens a relatar, ó Abu al-Qasim?" Ele respondeu: "Os belos discursos foram vãos e as fórmulas eruditas provaram-se estéreis; nada nos foi útil, a não ser algumas prostrações, realizadas no meio da noite".

Ó filho! Não sejas desprovido de atos virtuosos, nem de graças espirituais. E podes estar certo de que a ciência, por si só, não é de nenhuma valia. Eis aqui um exemplo: Suponha um homem no deserto, portando dez sabres indianos e ainda outras armas, que seja bravo e combativo e que um leão terrível venha atacá-lo. Acreditas que estas armas afastariam o perigo, se ele não se utilizasse delas para atingir o leão? E certamente elas não afastarão o perigo, se o homem não as empunhar e as brandir para atacar. O mesmo ocorre com o erudito que estuda cem mil problemas e os guarda de cor, sem tirar proveito em suas ações.

Outro exemplo: o doente acometido de febre e de icterícia; seu tratamento deve ser feito com oximel ( [21] ) e com infusão de cevada. A cura não se obtém, senão empregando estes dois medicamentos.

Com efeito:

"Tens mil garrafas: é em vão...

Não fica embriagado a não ser o que bebe vinho!" ( [22] )

Ainda que estudasses durante cem anos em mil livros, apenas teus obras te disporiam à misericórdia divina. Pois o Altíssimo disse: "Apenas seus próprios atos contarão ao homem" (LIII, 40). O que espera encontrar-se com seu Senhor que pratique boas obras" (XVIII, 110). "(E chorarão... e receberão a gehena...) Em punição a seus atos" (IX, 82, 95). "Os que crêem e praticam o bem, terão por morada eterna o paraíso, que não quererão trocar por nenhuma outra" (XVIII, 107). "Outras gerações os seguiram. Abandonaram a prece para se abandonarem a suas inclinações pessoais. Um triste destino lhes está reservado. Exceção será feita àqueles que se arrependerem, acreditarem e praticarem boas ações. Entrarão no paraíso e não serão privados de nenhum de seus méritos" (XIX, 60-61).

Assim também diz o hadith ( [23] ): "O Islão foi construido sobre cinco fundamentos: Atestar que não há outra divindade senão Deus e que Muhammad é o profeta de Deus; rezar; dar esmola; jejuar no mês de Ramadan e, para aqueles que têm possibilidade, fazer a peregrinação a Meca".

(E este outro:) "A fé é, ao mesmo tempo, a palavra, a sinceridade e as obras".

As provas da importância das obras são incontáveis. O homem atinge, sem dúvida, o paraíso, pela graça e generosidade de Deus, mas o atinge também por estar preparado por sua obediência e adoração pois "a misericórdia de Deus está próxima daqueles que fazem o bem" (VII, 54). Se se diz: "O homem chega também ao paraíso apenas pela fé", respondemos: "Sim, mas quando? e quantos obstáculos difíceis deve superar antes de chegar ao objetivo! O primeiro destes obstáculos é o da própria fé; chegará ele ao paraíso com esta fé? Não lhe será arrebatada antes que lá entre? E se for conduzido ao paraíso, será um eleito decepcionado e pobre?".

Al-Hasan al-Basri ( [24] ) disse: "Deus diz a seus servidores no dia da ressurreição: `Ó meus servidores, entrai no paraíso pela graça de minha misericórdia e compartilhai os graus dele, segundo vossas obras'".

Ó filho, se não praticares o bem, não encontrarás recompensa. Conta-se que um dos filhos de Israel adorou a Deus durante setenta anos. Deus quis dar a conhecer o caso aos anjos. Enviou-lhe um deles para lhe dizer que não merecia o paraíso, apesar dessa longa adoração. Transmitida a mensagem, o adorador respondeu: "Que diferença isso faz? Nós fomos criados para a adoração, é-nos necessário adorar". O anjo retornou a Deus e disse: "Ó meu Deus, Tu conheces melhor do que eu sua resposta". Deus respondeu: "Se ele não cessa de Nos adorar, Nós não cessaremos de cumulá-lo com Nossas graças. Já lhe perdoei seus erros, vós, meus anjos, sois testemunhas!"

O Profeta de Deus disse: "Pedi contas a vós próprios antes que vo-las peçam; pesai vossas ações, antes que vo-las pesem".

'Ali ( [25] ) disse: "Aquele que crê alcançar o objetivo sem esforço, é um homem de vãos desejos; aquele que conta só com o esforço, comete presunção".

Al-Hassan al-Basri disse: "Aspirar ao paraíso, sem realizar boas ações é um pecado". Disse também: "O sinal distintivo da verdade, é esquecer a recompensa prometida às boas ações, sem abandonar a prática delas". O Profeta disse: "O homem sensato julga-se com severidade e trabalha para a outra vida; o tolo segue os caprichos de sua fantasia e conta com Deus para realizar suas esperanças!".

Ó filho! Quantas noites passaste estudando, privando-te de sono. Não sei qual era teu objetivo. Se era por este mundo daqui, por seus bens, por suas honras e para te vangloriares diante de teus iguais e de teus semelhantes, então maldito sejas, sim, maldito sejas! Se, por outro lado, tua intenção era vivificar a lei do Profeta, formar teu caráter, submeter tua alma direcionada ao mal, então, bendito sejas; sim, bendito sejas. Disse a verdade quem escreveu: "A vigília dos olhos, abertos para olhar outra face que não a tua é vã; em vão correm os prantos dirigidos a outro que não sejas tu".

Ó filho, vive quanto queiras, morrerás; ama quanto queiras, do objeto de teu amor, serás apartado; faz o que queiras, e Deus te dará a devida paga.

Ó filho! Que obténs de tantos estudos: kalam ( [26] ), lógica, medicina, retórica, poesia, astronomia, prosódia, língua clássica, morfologia, se é tempo perdido em coisas que não dizem respeito a  Deus.

 


O Contraponto Cristão - Bernardo de Claraval e o Sermão sobre o Conhecimento e a Ignorância

 

Luiz Jean Lauand

1. Introdução

O Sermão sobre o conhecimento e a ignorância de Bernardo de Claraval (1090-1153) - sermão 36 sobre o Cântico dos Cânticos -, cuja tradução apresentamos aqui, é um texto de central importância para o estudioso da Educação e do Pensamento medievais. Nele vemos um dos grandes mestres do Ocidente cristão expor uma doutrina original sobre os temas do conhecimento e da ignorância.

Bernardo, místico, sempre teve na mais alta conta o livro do Cântico dos Cânticos, e comentou-o (até o versículo 3,1, somente) em 86 sermões, proferidos a partir de 1135. Mais do que um comentário literal, Bernardo expõe suas idéias fundamentais sobre a espiritualidade, a ascética e a mística (e, por vezes, sua Teologia dogmática). Os sermões 34 a 38 tratam da "ordem do conhecimento", comentando o versículo 1,7 do Cântico, que Bernardo lê assim: "Se não te conheces, ó mais bela das mulheres, sai para fora e segue o rastro das ovelhas, leva as cabras a pastar junto às tendas dos pastores".

Antes, porém, de comentarmos o sermão 36, situemo-lo brevemente no contexto da problemática medieval das relações entre fé e razão e no da própria obra de Bernardo.

2. O CRISTIANISMO E A FILOSOFIA PAGÃ ( [27] ).

O cristianismo é uma religião e não uma filosofia; ao valer-se de certos termos filosóficos para expressar sua fé, os escritores sagrados faziam uma concessão a uma necessidade humana, mas substituíam o antigo significado filosófico desses termos por um sentido religioso novo.

O conceito grego de Logos, por exemplo, procede claramente da filosofia grega e helenística, mas quando João fala do Logos (ou Verbo), refere-se à pessoa completa de Jesus, objeto da fé cristã. João dirige-se aos filósofos para dizer-lhes que o que eles chamam de Logos era Ele; que o Logos se fez carne e habitou entre nós e - escândalo intolerável para espíritos em busca de uma explicação puramente especulativa do mundo - "nós o vimos" (Jo 1,14). Dizer que Cristo é o Logos não era uma afirmação filosófica, mas religiosa.

O fato, porém, de que a religião se tenha apropriado de um conceito filosófico de tal importância não deixa de ser um acontecimento decisivo: a própria revelação cristã, anteriormente a toda especulação teológica e filosófica, não só legitimava, mas impunha essas apropriações. Daí que dela tenham derivado uma reflexão teológica e filosófica.

Afirmar que, enquanto Logos, Cristo é Deus, que tudo foi feito por Ele, que Ele é a vida e a luz dos homens, é como lançar as bases não só de uma teologia do Verbo, mas também de uma metafísica das Idéias divinas e de uma noética da iluminação.

O mesmo se diga das epístolas de Paulo de Tarso (cidade aberta a influências gregas). Paulo conhece a sabedoria dos filósofos gregos, mas condena-a em nome de uma Sabedoria nova, que é "loucura para os gregos", a fé em Cristo: "Os judeus exigem sinais; os gregos buscam a sabedoria; nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus e estultícia para os gentios; mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens" (I Cor 1, 22-25). Deste duplo ataque, o que se dirige aos filósofos encontrará duradouro eco durante a Idade Média, tanto mais que Paulo o repete várias vezes (I Cor 1,21; 2, 5-8).

Paulo, no entanto, não condenava a razão. O conhecimento natural é subordinado à fé, não excluído. Pelo contrário, do mesmo Paulo é um texto a favor da razão que será constantemente citado na Idade Média (Rom 1, 19-21): os homens têm um conhecimento natural de Deus, suficiente para justificar Sua eterna severidade para com eles. "Pois o que se pode conhecer de Deus é manifesto entre eles, pois Deus o revelou. Com efeito, Sua realidade invisível - Seu eterno poder e Sua divindade - tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas". Paulo, embora afirmando que os pagãos são inescusáveis, estabelece o seguinte princípio: a razão pode conhecer a Deus e diversos atributos seus, mediante a inteligência e a partir das criaturas.

Essa mesma tese já era afirmada explicitamente no livro da Sabedoria (12, 5-9), e Paulo impõe agora a todo pensador cristão o dever de admitir que a razão humana pode alcançar o conhecimento de Deus a partir do mundo exterior.

Na verdade, todo o pensamento medieval do Ocidente ( [28] ) esforçar-se-á por estabelecer os termos de relacionamento entre fides e ratio, entre fé e razão: ora enfatizando um dos extremos, ora o outro: do "racionalismo" dos "dialéticos" ao "fideísmo", passando por formulações altamente equilibradas e harmônicas, como a proposta por Alberto Magno-Tomás de Aquino.

Todas essas posições encontram apoio na Sagrada Escritura, mesmo as extremadas, desde que se tomem exclusivamente determinadas passagens, deixando as outras de lado. O próprio Bernardo, no capítulo II do sermão que ora apresentamos, encarrega-se de apresentar versículos bíblicos que parecem aprovar ou reprovar o saber humano.

3. BERNARDO DE CLARAVAL

É extremamente difícil caracterizar uma figura como Bernardo de Claraval - diz Pieper ( [29] ) -, porque reúne em si traços de personalidade que costumam ser antagônicos.

Filho de uma família nobre da Borgonha, nasceu em 1090 em Fontaines-lez-Dijon e foi educado como cavaleiro. Com pouco mais de 20 anos, entra no mosteiro de Cister, junto com quatro irmãos e vinte e cinco amigos; todos, sem exceção, nobres.

Cister tinha sido fundado dez anos antes para ser um mosteiro de "reforma", como um mosteiro que resgatasse o autêntico espírito monástico cristão, contra a tendência, sempre usual ao longo da história do cristianismo, à acomodação, à desvirtuação pelo relaxamento. Também se contrapunha a, por exemplo, um Cluny, que - comparado a seus ideais originais de reforma - estava se tornando, antes, um centro "humanístico".

O dinamismo de Bernardo é assombroso. Três anos depois de seu ingresso em Cister, com apenas 24 anos, portanto, é enviado para fundar e dirigir Claraval. Em menos de um quarto de século, sob seu impulso, fundam-se 80 novos mosteiros. Ao mesmo tempo, produz uma considerável obra escrita: teórica, homilética e mística. Mas, acima de tudo, Bernardo é um homem contemplativo, quel contemplante, como diz Dante (Paraíso, XXXII).

O risco que corre alguém com uma vida tão apaixonada e intensamente vivida é, como diz já sua primeira biografia, nimia nimietas, o desmedido excesso. Esta sentença é acertada em diversos sentidos: desde o excesso da impiedosa penitência que aplica a si mesmo, comprometendo sua saúde física, à veemência do zelo com que investe contra aqueles que (como Pedro Abelardo) considera nocivos ao Reino de Deus. É válida também - e principalmente - no que se refere à ação externa que, ultrapassando o plano espiritual, penetra no âmbito político. É do próprio Bernardo o reconhecimento de que ele era, "por assim dizer, a Quimera de seu século", "arrojado pelos abismos do mundo" (Epist. 250, c. 1250). E fazendo um balanço de sua vida ( [30] ), escreve: "Não compreendo o que fiz" (Epist. 306).

O título sob o qual Bernardo é citado, ocasionalmente, na História da Filosofia é "Luta contra a Dialética na Teologia", como se ele fosse um anti-intelectualista. Na verdade, porém, como se vê no Sermão sobre o conhecimento e a ignorância, Bernardo não se opõe por princípio à Filosofia. Neste sermão, Bernardo diz: "Conheço muito bem o inestimável serviço que os homens doutos têm prestado à Igreja: seja refutando os adversários dela, seja na instrução dos simples. Com efeito, o que li na Sagrada Escritura foi: `Como rejeitaste o saber, também Eu te rejeitarei, para que não exerças Meu sacerdócio' (Os 4,6). E mais: `Os doutos resplandecerão com o brilho do firmamento, e os que tiverem ensinado a muitos a justiça, brilharão como estrelas em perpétuo resplendor' (Dn 12,3). (...) Há quem busque o saber por si mesmo, conhecer por conhecer: é uma indigna curiosidade. Há quem busque o saber só para poder exibir-se: é uma indigna vaidade. Estes não escapam à mordaz sátira que diz: `Teu saber nada é, se não há outro que saiba que sabes' (Persius, Satyra 1, 27). Há quem busque o saber para vendê-lo por dinheiro ou por honras: é um indigno tráfico. Mas há quem busque o saber para edificar, e isto é amor. E há quem busque o saber para se edificar, e isto é prudência".

Por outro lado, porém, seu ideal não é o saber humano, mas o divino: "Esta é, para mim, a mais sublime Filosofia: conhecer a Jesus, e Jesus crucificado" (In Cant. 43,4). E ainda: "Que é, para mim, a Filosofia? Meus mestres são os Apóstolos... Eles me ensinaram a viver. Achas pouco isto: o saber viver?" (Sermones, PL 183, 407). Tais sentenças - que, aliás expressam bem o interesse de Bernardo - não devem ser tomadas como um alheamento religioso, mas sim, como um componente que, desde Sócrates e Platão, integra o filosofar.

Torna-se claro, nessas passagens, que o apaixonado e verdadeiramente "filosófico" interesse de Bernardo aponta, em última instância, para a "realização" do homem, para a inteira consumação da existência em sua totalidade; a serviço desse interesse, estão todas as formas exteriores (e também a teologia e o filosofar). Precisamente daí decorre sua oposição aos "dialéticos" do porte de um Abelardo: pelo perigo de que a substância da verdade - de que deve se alimentar o coração do homem - seja eliminada e posta de lado pelo formalismo de um pensamento "correto".

No final de sua vida, quando o "ardor" - que, segundo Bernardo, deve penetrar o conhecimento - já quase consumiu sua vitalidade, Bernardo resumiu numa fórmula todo seu projeto de vida. Ela se encontra nos dois últimos sermões que proferiu sobre o Cântico dos Cânticos (In Cant. 85 e 86). São apenas três palavras: anima quaerens Verbum, a alma busca o Verbo. A estrutura desta fórmula evoca a anselmiana fides quaerens intellectum, mas, em vez de discussões conceituais sobre as relações teóricas entre fé e razão, encontramos em Bernardo termos mais vitais, mais próximos à existência concreta: alma e Verbo; a amorosa busca do Verbo divino pela alma. Mas o Verbo só pode ser encontrado no arroubamento (extasis) da contemplação mística que leva a "saborear o Verbo".

Acontece, porém - e Bernardo bem o sabe-, que o que ocorre na experiência mística "ineffabile est", não pode ser expresso pela linguagem humana...

4. O Sermão 36 e a Pedagogia de Bernardo.

Neste sermão, Bernardo tinha se proposto falar das duas ignorâncias: a ignorância de si mesmo e a ignorância de Deus, ambas, caminho de perdição. (Como se verá, o pregador só teve condições de desenvolver o primeiro tema).

Bernardo, hábil educador, dosa os ensinamentos de cada dia e sabe que a expectativa, a ilusión, como dizem os espanhóis, é um poderosíssimo aliado da Pedagogia, por isso, conclui o sermão anterior, anunciando o próximo tema, para que o público tenha tempo de o ir antegozando:

"Não se dê o caso de que eu faça a exposição com menos cuidado, ou que vós escuteis com menos atenção assunto de tal importância e que não convém ouvir sem ardentes desejos. Porque, se o alimento do corpo, ingerido sem apetite ou estando já o homem saciado, não só não é de proveito, mas até mesmo prejudica, quanto mais o pão da alma - se tomado com fastio - não só não é alimento para a consciência, mas atormenta-a. Disso nos livre o Esposo da Igreja, Jesus Cristo, Senhor Nosso que, como Deus, é sobre todas as coisas. Seja Ele bendito pelos séculos dos séculos. Amém."

Finalmente, chega o momento de ouvir o mestre falar das ignorâncias. Mas, quando o sermão (que Bernardo tinha planejado para que fosse um pouco mais longo do que o costumeiro) atinge a duração habitual, um curioso incidente impede o prosseguimento da exposição: alguns ouvintes manifestam cansaço. Inicialmente, de modo sutil, concordando de modo explícito com o óbvio: ante a pergunta, meramente retórica, do pregador: "E achas que podes alcançar a salvação sem temor de Deus e sem humildade?", o auditório realmente responde, murmurando: "Não, não!", como que, delicadamente, dizendo: "Já basta!".

Bernardo, após ironizar, ainda tenta prosseguir:

"Fizestes bem de indicar-me o não absoluto de vosso juízo, ou antes, que não estais desprovidos de juízo. E nem vale a pena continuar falando sobre o óbvio. Mas, prestai atenção a um outro ponto... Ou será melhor parar por causa dos que já estão pestanejando?".

O pregador rende-se ante a evidência do cansaço:

"Eu pretendia, em um só sermão, dar conta do que tinha prometido: falar da dupla ignorância e fá-lo-ia, se não me parecesse que este discurso já está demasiadamente longo para os que o acham cansativo".

E, de fato:

"Vejo alguns bocejando e outros dormitando. E não é de admirar, pois a longuíssima vigília de oração que tivemos hoje os desculpa".

Bernardo, bom pedagogo e compreensivo (embora não lhes poupe a aguda observação: "O que direi, porém, daqueles que dormem agora, mas dormiram também enquanto rezávamos os ofícios?"), sabe que o cansaço impede o proveito intelectual e espiritual e, humildemente, interrompe o sermão.

Afinal, para ele, a educação e os cuidados da alma encontram freqüentemente paralelo na medicina (da época). Já o vimos no final do sermão XXXV comparar o fastio da alma ao fastio da alimentação ("Porque, se o alimento do corpo, ingerido sem apetite...). Também no Sermão 36, são abundantes as comparações médicas, pois a alma está sujeita a leis tanto quanto o corpo. No cap. IV, fala da indigestão da alma; da memória, como estômago da alma; do amor, fogo que cozinha os alimentos, que são os conhecimentos, etc.

Tanto a alma como o corpo requerem ordem, modo e medida. Na mais difundida "Enciclopédia" medieval, as Etimologias de S. Isidoro de Sevilha, o livro IV, "Sobre a Medicina", começa indicando que precisamente a palavra "Medicina deriva de modo, isto é harmonia (temperamentum)".

5. A Pedagogia dO CONHECIMENTO DE SI.

Se o interesse de Bernardo é "saber viver" (de acordo com a "a mais sublime Filosofia: conhecer a Jesus, e Jesus crucificado"), a Pedagogia deve ensinar essa arte de viver. O primeiro passo, neste caminho, é precisamente o conhecimento de si mesmo que, se é reto, é fruto e pressuposto da verdadeira humildade, "virtude pela qual o homem se conhece a si mesmo verdadeirissimamente" (De gradibus humilitatis et superbiae, c. I). E, para encontrar a Deus, é necessário antes de mais nada esse conhecimento de si mesmo: "Para nós, o primeiro conhecimento deve ser o do que somos; pela utilidade, porque um tal conhecimento não incha, mas humilha e serve de fundação para a edificação. Pois o edifício espiritual que não tem seu fundamento na humildade não se agüenta em pé" (cap. V).

A humildade é, pois, o reconhecimento da fraqueza da condição humana e da própria fraqueza pessoal: "Como não se humilhará (a alma) neste verdadeiro conhecimento de si, ao ver-se  (...) envolta em mil pavores, angustiada ante mil dificuldades, sufocada ante mil dúvidas, indigente de mil necessidades, inclinada ao vício, impotente para as virtudes?" (cap. V). A partir dessa descoberta, pode-se iniciar o caminho da união mística com Deus.

No dia seguinte, sermão 37, Bernardo retoma o tema interrompido (todos os ouvintes estão agora muito atentos): a humildade não tem nada que ver com pusilanimidade, nem com o menosprezo das letras e ciências, mas é o oposto da soberba, que desconhece a si mesmo e a Deus. "Pois, se a ciência, por grande que seja, for precedida desse duplo conhecimento, não nos inchará".

Como dirá um século depois, Tomás de Aquino - que aprofundou, como ninguém, na compreensão dessa virtude e cujos ensinamentos são de extrema validade para o homem de hoje - a verdadeira humildade cristã, pela qual o homem se conhece retamente diante de Deus e se tem pelo que realmente é (II-II, 161, 6, c) - faz-se acompanhar da magnanimidade (II-II, 162, 1 ad 3), da grandeza de alma, que empreende o que é grande. Tanto a humildade, como seu contrário, a soberba, são primariamente atitudes interiores do homem diante de Deus (que, evidentemente, não deixam de ter uma face voltada para o relacionamento com os outros). Nisso, como em tantos outros pontos da doutrina cristã, não há uniformidade e a verdadeira humildade não tem porque manifestar-se num comportamento externo acabrunhado e auto-depreciativo.

 

SERMÃO SOBRE O CONHECIMENTO
E A IGNORÂNCIA

(Sermão 36 sobre o Cântico dos Cânticos)

Bernardo de Claraval

(trad. Jean Lauand)

O CONHECIMENTO DAS LETRAS É BOM PARA A INSTRUÇÃO, MAS O CONHECIMENTO DA PRÓPRIA FRAQUEZA É MAIS ÚTIL PARA A SALVAÇÃO ( [31] ).

I

Aqui estou para cumprir o que vos prometi; aqui estou para satisfazer vosso desejo; aqui estou, também, obrigado pela dívida que tenho para com Deus, a Quem sirvo.

Como vedes, três são as razões que me impelem a pregar: o compromisso assumido, o amor fraterno e o temor a Deus.

Se me abstivesse de falar, pela minha boca condenar-me-ia. Mas o que acontece se eu falar? Também neste caso, corro o mesmo risco, o de ser condenado pela minha própria boca: por pregar e não praticar o que prego. Ajudai-me, pois, com vossas orações, para que eu possa sempre falar o que é necessário e, com minha conduta, praticar o que prego.

Tinha vos anunciado o tema do sermão de hoje: a ignorância, ou melhor, as ignorâncias, porque, como lembrais, há duas ignorâncias: a de nós próprios e a de Deus. E vos aconselhava a evitar uma e outra, pois ambas são perdição.

Hoje, procuraremos esclarecer melhor esse assunto. Antes, porém, discutiremos se toda ignorância é condenável. Parece-me que não, pois nem toda ignorância produz perdição: há muitas e mesmo inúmeras coisas que se podem ignorar sem problema algum para a salvação.

Se alguém, por exemplo, desconhece artes mecânicas, como a carpintaria, a arte de edificação e outras que são exercidas para a utilidade da vida neste mundo, acaso tal ignorância constitui obstáculo para a salvação?

Também são muitos são os que se salvaram e agradaram a Deus pela sua conduta e com seus atos sem as artes liberais (e, certamente, são úteis e moralmente bons esses estudos). Quantos não enumera a Epístola aos Hebreus (cap. XI), que se tornaram agradáveis a Deus não com erudição, "mas com consciência pura e fé sincera" (I Tim 1,5) ( [32] ). E agradaram a Deus com os méritos de sua vida e não com os de seu saber. Cristo não foi buscar Pedro, André, os filhos de Zebedeu e todos os outros discípulos, entre filósofos; nem em escola de retórica e, no entanto, valeu-se deles para realizar a salvação na terra.

Não é porque fossem mais sábios do que todos os homens - como diz de si mesmo o Eclesiastes (1, 16) -, mas, por causa de sua fé e de sua benignidade, o Senhor os salvou e fez deles santos e mestres. Pois os Apóstolos mostraram ao mundo o caminho da vida, não com sublimidade de discurso, nem com palavras eloqüentes de sabedoria humana, mas pelo modo como aprouve a Deus: pela estultícia de sua pregação, aprouve a Deus salvar os que crêem, porquanto o mundo com sua sabedoria não O conheceu (I Cor 2, 1; 1, 17-21).

II

Posso estar dando a impressão de querer lançar em descrédito o saber, de repreender os doutos, de proibir o estudo das letras. Longe de mim, tal atitude! Conheço muito bem o inestimável serviço que os homens doutos têm prestado à Igreja: seja refutando os adversários dela, seja na instrução dos simples.

Com efeito, o que li na Sagrada Escritura foi: "Como rejeitaste o saber, também Eu te rejeitarei, para que não exerças Meu sacerdócio" (Os 4, 6). E mais: "Os doutos resplandecerão com o brilho do firmamento, e os que tiverem ensinado a muitos a justiça, brilharão como estrelas em perpétuo resplendor" (Dn 12, 3).

Mas, por outro lado, li também: "O saber incha" (I Cor 8, 1) ( [33] ).

E, finalmente: "No acúmulo de saber, acumula-se a dor" (Ecl 1, 18).

Vede que há saberes e saberes: há um saber que produz o inchaço e há um saber que contrista. Quero que sejais capazes de distinguir qual deles é útil e necessário para a salvação: o que incha ou o que dói? E não duvido que prefiras o que aflige ao que incha, porque, se a saúde pela inchação é aparentada, pela aflição é procurada ( [34] ).

Ora, quem procura, acaba encontrando, pois "quem pede, recebe" (Lc 11,10). E é certo que Aquele que cura os que têm o coração contrito abomina o inchaço dos orgulhosos, pois a Sabedoria diz: "Deus resiste aos soberbos e dá Sua graça aos humildes" (Tg 4,6) ( [35] ). E o Apóstolo diz: "Exorto-vos, em virtude do ministério que pela graça me foi dado, a não pretender saber mais do que convém, mas saber com sobriedade" (Rom 12,3).

O Apóstolo não proíbe saber, mas sim saber mais do que convém. E o que é saber com sobriedade? É cuidar de aplicar-se prioritariamente ao que mais interessa saber, pois o tempo é breve ( [36] ). Ora, ainda que todo saber, desde que submetido à verdade, seja bom, tu, que buscas com temor e tremor ( [37] ) a salvação e a buscas apressadamente, dada a brevidade do tempo, deves aplicar-te a saber, antes e acima de tudo, o que conduz mais diretamente à salvação.

Acaso não dizem os médicos do corpo que parte da medicina é precisamente determinar a ordem dos alimentos: qual deve ser ingerido antes, qual depois e o modo de os ingerir? Ora, mesmo sendo bons os alimentos que Deus criou, tu os tornas nocivos se não observas o modo e a ordem ao ingeri-los. Aplica, pois, aos saberes, o que dissemos dos alimentos.

III

Mas o melhor é encaminhar-vos ao Mestre. Não é nossa esta sentença, mas dEle; ou antes, é nossa porque a aprendemos dAquele que é a Verdade. E diz: "Se alguém pensa que sabe alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber" (ICor 8,2).

Vede como não é aprovado o saber muitas coisas se se ignora o modo de saber. Vede como o fruto e a utilidade do saber consiste no modo de saber.

Mas o que é este modo de saber? O que, senão saber segundo a ordem, o amor e o fim devidos?

Segundo a ordem, isto é, priorizando o que é mais necessário para a salvação; segundo o amor ( [38] ), isto é, voltando-nos mais ardentemente para o que mais nos impele a amar; segundo o fim: não por vaidade ou curiosidade ou objetivos semelhantes, mas somente pela tua própria edificação e pela de teu próximo.

Há quem busque o saber por si mesmo, conhecer por conhecer: é uma indigna curiosidade.

Há quem busque o saber só para poder exibir-se: é uma indigna vaidade. Estes não escapam à mordaz sátira que diz: "Teu saber nada é, se não há outro que saiba que sabes" (Persius, Satyra 1, 27).

Há quem busque o saber para vendê-lo por dinheiro ou por honras: é um indigno tráfico.

Mas há quem busque o saber para edificar, e isto é amor. E há quem busque o saber para se edificar, e isto é prudência.

IV

De todos estes que buscam o conhecimento, só os dois últimos não incorrem em abuso do saber, já que o buscam para praticar o bem. Deles é que fala o salmo: "O saber é bom para quem o põe em prática" (Sl 111, 10). Os demais devem ouvir a Escritura: "Quem conhece o bem e não o pratica, comete pecado" (Tg 4, 17).

É como se, numa comparação, disséssemos: tomar alimento e não digeri-lo faz mal. Um alimento indigesto, mal cozinhado, produz maus humores e, em vez de nutrir o corpo, corrompe-o. Assim também pode dar-se o caso de o estômago da alma, que é a memória, ingerir muitos conhecimentos que não foram cozinhados pelo fogo do amor e nem passaram para ser elaborados pelo aparelho digestivo da alma (no caso, os atos e costumes), a fim de que a alma se torne boa pelo bom conhecimento (o que pode ser atestado pela vida e pelos costumes). E acaso um tal saber indigesto não deve ser considerado pecado, tal como um alimento que se transforma em humores maus e nocivos? E os maus humores do corpo não equivalem aos maus costumes da alma? E não virá a sofrer de inchaços e cólicas de consciência quem conhece o bem e não o pratica?

Acaso não se lhe aplicará a sentença de morte e condenação, toda vez que lhe vier à mente a palavra de Deus: "O servo, que conhece a vontade de seu senhor e não a pratica, torna-se digno de muitos açoites" (Lc 12,47) ?

E não será em nome desta alma, o pranto do profeta (Jer 4,19): "Doem-me as entranhas, doem-me as entranhas"? Gemidos geminados ( [39] ) que - salvo outra interpretação - apontam para o que dizíamos: o profeta fala de si mesmo, pois estava pleno de saber, inflamado de amor e, desejando intensamente transmitir esse saber, não encontrou quem se interessasse por ouvir e teve de arcar sozinho com o peso de um saber que não pôde comunicar. Chorou, pois, o zeloso doutor da Igreja, tanto por aqueles que menosprezam a busca do saber que dirige o bem viver, como pelos que, embora sabendo, no entanto, vivem mal. E, por isso, o profeta repete seu lamento.

V

Compreendes agora quão verdadeira é a sentença do Apóstolo: "O saber incha"? Por isso, convém que a alma antes se conheça a si mesma, coisa que é requerida pela ordem e pela utilidade.

Pela ordem, porque, para nós, o primeiro conhecimento deve ser o do que somos; pela utilidade, porque tal conhecimento não incha, mas humilha e serve de fundação para a edificação. Pois o edifício espiritual que não tem seu fundamento na humildade, não se agüenta em pé.

E para aprender a humildade, a alma não encontra nada mais convincente do que descobrir-se a si mesma na verdade. Deve-se, portanto, evitar a dissimulação, o auto-engano doloso, deve o homem encarar-se de frente, evitando fugir de si mesmo.

Pois, defrontando-se a alma com a límpida luz da verdade, encontrar-se-á muito diferente do que julgava ser e, suspirando em sua miséria - uma miséria que já não pode esconder porque é verdadeira e manifesta -, clamará com o salmista ao Senhor: "Em Tua verdade me humilhaste" (Sl 119, 75). Como não se humilhará neste verdadeiro conhecimento de si, ao dar-se conta da carga de seus pecados, sob o peso deste corpo mortal, ao ver-se imersa em preocupações terrenas, infectada pelos desejos carnais, cega, curvada, fraca, envolta em mil pavores, angustiada ante mil dificuldades, sufocada ante mil dúvidas, indigente de mil necessidades, inclinada ao vício, impotente para as virtudes?

Onde está agora o olhar arrogante? Onde, a cabeça orgulhosamente erguida? Não será ela ainda mais arremessada em sua desolação, trespassada por espinhos? (Sl 32, 4). Que ela - diz o salmista - derrame lágrimas, que chore e gema, que se volte para o Senhor e clame em sua humildade: "Cura, Senhor, minha alma, pois pequei contra Ti" (Sl 41,5).

Se ela se voltar para o Senhor, encontrará consolo, pois Ele é o Pai das misericórdias e o Deus de toda consolação.

VI

Eu, quando olho para mim mesmo, fico imerso em amargura; logo, porém, que alço a vista para o auxílio da misericórdia divina, suaviza-se meu amargor com a alegria da visão de Deus e Lhe digo: "Minha alma está conturbada interiormente, por isso me lembro de Ti" (Sl 42,7).

Basta um pouco de conhecimento de Deus para experimentar que Ele é piedoso e solícito, pois, na verdade, Ele é um Deus de bondade e misericórdia, que perdoa a maldade (Joel 2,13); Sua natureza é a bondade e é próprio dEle perdoar e ter misericórdia sempre.

Deus se dá a conhecer nesta experiência e desta maneira salutar, a partir do momento em que o homem se reconheça indigente e clame ao Senhor; e Ele o ouvirá e dir-lhe-á: "Eu te libertarei e tu Me glorificarás" (Sl 50,15).

Assim, o conhecimento próprio é um passo para o conhecimento de Deus. Vê-lO-ás em Sua imagem, que em ti se forma, na medida em que tu, desarmado pela humildade, com confiança, irás refletindo a glória do Senhor e, levado pelo Espírito de Deus, de claridade em claridade, irás te transformando nessa imagem.

VII

Reparai, pois, como ambos conhecimentos são necessários para a salvação, de tal modo que não pode faltar nenhum dos dois. Pois, se desconheces a ti mesmo, não terás temor de Deus em ti, nem humildade. Por acaso pensas que podes alcançar a salvação sem temor de Deus e sem humildade?

(Neste momento, o auditório murmura: "Não, não!").

Fizestes bem de indicar-me o "não" absoluto de vosso juízo, ou antes, que não estais desprovidos de juízo... Nem vale a pena continuar falando sobre o óbvio.

Mas, prestai atenção a um outro ponto...

Ou será melhor parar, por causa dos que já estão pestanejando? Eu pretendia, em um só sermão, dar conta do que tinha prometido: falar da dupla ignorância, e fá-lo-ia se não me parecesse que este discurso já está demasiadamente longo para os que o acham cansativo. E vejo alguns bocejando e outros dormitando. E não é de admirar, pois a longuíssima vigília de oração que tivemos hoje os desculpa.

O que direi, porém, daqueles que dormem agora, mas dormiram também enquanto rezávamos os ofícios? Não quero, porém, levar isto adiante e envergonhá-los, baste ter mencionado o fato... Penso que de hoje em diante cuidarão de estar atentos, advertidos que foram pela nossa correção.

Com esta esperança e em atenção a eles, em vez de continuar, partamos, suspendendo por clemência o discurso, e dêmos-lhe fim, embora não tenha atingido seu fim. Eles, por sua vez, tendo sido objeto de nossa compreensão, associem-se a nós em glorificar o Esposo da Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo, que está acima de todas as coisas, Deus bendito pelos séculos. Amém.



( [1] ) Este conceito foi objeto de análise em nosso Oriente & Ocidente: Língua e Mentalidade, APEL/CEAr-FFLCH-USP, 1993.

( [2] ) Os hadiths, entre nós, Tradições, são compilações que se referem à conduta e à fala do Profeta.

( [3] ) Valemo-nos da seguintes edições:  Ayyuha al-walad, da Al-lajnat Al-lubnanyah ly tarjamat ar-rawa`i', Beirute (ár./fr. 1969; árabe/cast.1951). Al-Munqid min al-dalal, da Al-lajnat Al-lubnanyah ly tarjamat ar-rawa`i', Beirute (ár./fr.. 1959). Para diversas partes do `Ihya 'Ulum ad-dyn, valemo-nos dos seguintes extratos: Ensenanzas Religiosas Sufis, B. Aires, Hastinapura, 1986. Para o Mishkat al-anwár, Le Tabernacle des Lumières, Paris, Seuil, 1981. Para Ad-durra al-fakhira, La perle precieuse, Paris, Les deux océans, 1986). Para o Kitab al-mahabba... que é, na verdade, parte do `Ihya 'Ulum ad-dyn, Livre de L'amour, Paris, Vrin, 1986. Para o Kitab al halal wa al-haram, também parte do `Ihya 'Ulum ad-dyn, Le livre du licite et de l'illicite, Paris, Vrin, 1991. Le livre des bons usages en matière de mariage, Paris, Maisonneuve, 1989, para parte de `Ihya 'Ulum ad-dyn, .

( [4] ) Abu al-Qasim, asceta iraquiano, falecido em 910..

( [5] ) Célebre asceta e teólogo; nasceu em Medina e morreu em Basra em 728.

( [6] ) Esta sentença não se encontra nos evangelhos.

( [7] ) Quarto califa ortodoxo (656-661), marido de Fátima e genro de Maomé.

( [8] ) Célebre téologo e asceta, transmissor de hadiths.

( [9] ) Adhkár, plural de dhikr, palavra árabe que confunde em si, diversos significados correlatos. Pertinentes à sentença de Sufyan são: lembrar (subentende-se, no caso, de Deus) e repetir (no caso, fórmulas de oração).

( [10] ) Filho do Califa 'Umar, um dos primeiros e mais prestigiosos Companheiros do Profeta.

( [11] ) Luqman, nome de um sábio árabe sobre o qual divergem as opiniões de estudiosos. Uns asseveram que ele era profeta; outros, que não era profeta, porém homem muito piedoso; outros, ainda, que era juiz dos filhos de Israel. Entretanto, seja como for, Luqman, segundo o Alcorão, foi um homem a quem Deus concedeu sabedoria. A sura XXXI se denomina Luqman, pela menção de seu nome nos vv. 12 e 13. Nessa sura, há uma súmula de nobres mandamentos nos conselhos de Luqman a seu filho atinentes à obediência das leis divinas e dos preceitos éticos.

Observa Clément Huart, em sua Littérature arabe: "Le vieux fonds des fables que nous connaissons sous le nom d'Ésope, ces conseils de morale pratique mis dans la bouche des animaux, est passé en arabe et a été attribué au sage Loqman" (Nota do Prof. Dr. Helmi Nasr).

( [12] ) Dhikr, como dissemos, significa lembrar (subentende-se, no caso, de Deus) e repetir (no caso, fórmulas de oração). Note-se que o próprio versículo citado é já, ele mesmo, um dhikr incoado.

( [13] ) Esta sentença não se encontra nos evangelhos.

( [14] ) Guerra santa do Islão.

( [15] ) Como se sabe, o bom muçulmano só toma alimentos lícitos e, sempre, invocando o nome de Deus: bismi'llah...

( [16] ) Trata-se das primeiras páginas do Cap. II da clássica obra The Unity of Philosophical Experience. Em trad. cast.: La unidad de la experiencia filosófica, Madrid, Rialp, 1973.

( [17] ) Cit. por T. J. de Boer, The History of Philosophy in Islam, trad. E. R. Jones, Londres, 1933, p. 43.

( [18] ) Ibidem.

( [19] ) Algazali, como todo autor muçulmano, não menciona o Profeta sem ajuntar a fórmula que diz que Deus o fez depositário de Sua palavra e o salvou: sala Allahu 'alaihi wa sallama. Suprimimos, na tradução, este e outros apostos do gênero.

( [20] ) Abu al-Qasim, asceta iraquiano, falecido em 910. Esta e as demais notas do texto, apóiam-se na edição bilíngüe: Ayyuha al-Walad/Lettre au disciple,  Beyrouth, Commission Libanaise pour la traduction des Chefs-D'Oeuvre, 1969, 3ème. éd. Trad. de Toufic Sabbagh.

( [21] ) Elixir composto de água, mel e vinagre.

( [22] ) Versos em persa no texto.

( [23] ) Os hadiths, entre nós, Tradições, são compilações que se referem à conduta e à fala do Profeta.

( [24] ) Célebre asceta e teólogo do primeiro século da Hégira (642-728).

( [25] ) Genro do profeta, quarto califa ortodoxo.

( [26] ) Toufic Sabbagh traduz por teologia. Kalam, como ensina Gilson, é uma corrente teológica que chega a afirmar "que tudo quanto pode ser revelado deve poder ser conhecido pela luz da razão natural" (La filosofia en la Edad Media, Madrid, Gredos 2a. ed., 1972, p.322.

( [27] ) Ao longo de quase todo este tópico, seguimos, resumindo-a e traduzindo-a, a Introdução do clássico La Philosophie au Moyen Âge, de Gilson, Paris, Payot.

( [28] ) Mutatis mutandis, o mesmo ocorre com o pensamento islâmico e judaico.

( [29] ) No cap. V de seu excelente Scholastik, München, DTV, 2. Aufl., 1981, a que seguiremos, resumindo-o, neste tópico.

( [30] ) A luta contra Abelardo (é contra Abelardo e não contra a Filosofia que Bernardo investe); a pregação, que inflamou todo o Ocidente, para a Cruzada que acabou em uma tremenda catástrofe etc.

( [31] ) A palavra latina salus significa tanto saúde como salvação; acumulação semântica especialmente incômoda para o tradutor, pois Bernardo freqüentemente compara a saúde da vida presente à salvação eterna...

( [32] ) Migne erradamente anota Hbr 11.

( [33] ) Scientia inflat diz o Apóstolo. Ao longo de todo o texto, estamos traduzindo a palavra scientia por saber, pois nosso termo ciência, mais do que um conhecimento pessoal, indica o saber objetivo: o das diversas ciências. E Bernardo fala do saber (scientia) como algo subjetivo, o saber de cada um. Traduzimos inflat por incha, que também dá a idéia do vazio da vaidade e, além disso, ajusta-se à comparação que Bernardo estabelecerá entre o inchaço do saber e o inchaço do corpo.

( [34] ) Procuramos manter algo da rima e do ritmo destas últimas palavras: Bernardo, como Agostinho, destaca momentos importantes do sermão, marcando-os com jogos de palavras, no caso: ...sanitatem, quam tumor simulat, dolor postulat.

( [35] ) E também I Pe 5, 5 e Pr 3, 34.

( [36] ) Tempus enim breve est é ICor 7,29.

( [37] ) Esta expressão "temor e tremor" aparece em IICor 7,15 e Fil 2,12.

( [38] ) Studio, no original. Como se sabe, a palavra latina studium significa também diligência, amor que move a agir.

( [39] ) Bernardo interpreta alegoricamente (!) a repetição do lamento do profeta e marca esta passagem por mais um jogo de palavras: ingeminatio geminum.