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Mother Mary Comes to me -

a Radical Insegurança da
Condição Humana

 

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br
http://www.hottopos.com

"Il est absurde que nous soyons nés,
il est absurde que nous mourions" (Sartre)


"Mary said: 'Let it be to me
according to your word''' (Luke: 1, 38)


"A veneração a Maria está profundamente
inscrita no coração humano" (Martinho Lutero
[1] )

 

A radical insegurança da vida humana

A vida humana é insegurança, radical insegurança. E o coração humano, que anseia por segurança radical, acaba por apegar-se a pseudo-seguranças (ou "seguridades"...), precárias e provisórias, como se fossem a definitiva.

Os antigos distinguiam entre felicidades, realizações e esperanças (em plural, secundum quid) e felicidade, realização e esperança (em singular, simpliciter). As secundum quid referem-se aos mil aspectos do "dar-se bem" - a saúde, as finanças, a aceitação social, a integridade física e a dos próprios bens etc. -; já simpliciter refere-se ao "dar-se bem" último, radical e definitivo: to be or not to be é que é a questão!

Nesse sentido, o filósofo alemão Josef Pieper faz notar uma profunda sutileza da língua francesa: a existência de duas palavras para esperança: espoir e espérance, aparentemente sinônimas (os dicionários costumam apontar que a primeira é mais coloquial e a segunda mais "literária"), mas, na verdade o que geralmente as distingue é o fato de que espoir se aplica aos aspectos secundum quid, plurais (as mil esperanças: de cura, de êxito financeiro, da classificação do meu time etc.), enquanto espérance - esta é singular!- é a esperança definitiva, a do to be or not to be, ou, em linguagem cristã, a salvação.

Naturalmente, não há que exagerar na separação das duas dimensões da vida humana, como se o "dar-se bem definitivo" não se fizesse acompanhar das esperanças referentes a realidades tão importantes como a saúde ou a paz entre os povos...

Seja como for, é possível que alguém esteja "dando-se mal" nos aspectos secundum quid (saúde, finanças etc.) e profundamente realizado no simpliciter (e vice-versa). Pieper fala mesmo de uma tendência, uma espécie de lei empírica, de o desespero profundo fazer-se acompanhar de uma euforia de segurança nos aspectos superficiais (o caso Titanic é uma boa amostra disso).

Nossa época, que apostou nas realizações e nas felicidades (em detrimento da realização e da felicidade) oferece uma confirmação a mais dessa regra. Hoje, mais do que nunca, o homem procura seguranças [2] : do check-up ao check-in, das apólices à indiferença para com o outro, etc.

A ilusão de uma absoluta segurança nesses aspectos secundum quid sofreu um forte abalo com o desmoronamento das torres do WTC em 11 de setembro. Coincidentemente, a atual campanha de publicidade (as agências de publicidade sabem mais antropologia do que todos os filósofos juntos...) do maior banco do Brasil (e da América Latina) vincula o bem mais procurado hoje: a segurança (e na peça de publicidade se trata nada menos da segurança dada pela promessa de amor incondicional), ao fato de ser correntista do Banco. Cinismos à parte, do ponto de vista técnico (aí é que reside o cinismo: explorar "tecnicamente" a existência humana) o anúncio é uma obra prima: tocante, sensível e "certeiro": sim, a segurança é "poder contar":

Um casal com jeito e voz de apaixonados, e uma música doce ao fundo:

Ela - E se eu ficar velha?

Ele: - Eu fico junto

Ela - Se eu ficar feia?

Ele: - Eu fico míope

Ela - E se eu ficar triste?

Ele: - Eu viro um palhaço

Ela -  Se eu ficar uma chata?

Ele: - Eu te faço cócegas (ela, discretamente, acusa umas cócegas)

Ela - E se eu ficar gorda?

Ele: - Eu quebro o espelho

Uma voz (provavelmente do gerente): O importante na vida é ter com quem contar - Bradesco, colocando você sempre à frente!

Certamente, o espírito lúdico brasileiro - também ele uma tentativa de domesticar a insegurança, mas que, afinal, acaba sendo a defesa do bom-senso - não demorou em desmascarar a miragem, desferindo a piada fatal, que acrescenta uma fala final a esse romântico diálogo:

Ela - E se eu ficar inadimplente?

Ele: - Aí você está "perdida", porque o Banco ó... (gesto obsceno)

Essas falsificações são possíveis porque, como ensina Santo Tomás - e este será um ponto essencial em nossa análise - o ser e o bem criados são participação do nada da criatura no Ser/Bem de Deus e, assim, a consecução de qualquer bem criado (o sorriso da pessoa amada ou mesmo um copo de água fresca num dia de calor) traz uma prefiguração da felicidade definitiva:

"Assim como o bem criado é uma certa semelhança e participação do Bem Incriado, assim também a consecução de um bem criado é uma certa semelhança e participação da bem-aventurança final" (De Malo 5, 1, ad 5) [3]

Essa metafísica da participação é expressa na linguagem coloquial do espanhol, que quando algo está gostoso (aquele cigarro depois do café da manhã, por exemplo) diz: "¡Sabe a gloria!", tem gosto de céu...

Tomás, já no séc. XIII, ao discutir a felicidade humana no começo da I-II da Summa, denuncia avant la lettre os perigos existenciais de nossa sociedade de consumo: acenar para a ânsia de infinito do coração humano com a absolutização de bens limitados, mas que prometem uma falsa infinitude: é o perigo, diz ele, dos bens artificiais (divitiae artificiales) que o dinheiro pode comprar: eles falseiam a infinitude genuína do coração humano (I-II, 2, 1, 3, corpus e ad 3).

Essa é a razão do sucesso das campanhas de publicidade que insinuam a felicidade plena acenando com um refrigerante ou um sanduíche. Pelo mesmo instinto de felicidade eterna pelo qual as crianças são magneticamente atraídas por histórias que acabam com "... e foram felizes para sempre", assim também as agências nos lançam cenas de felicidade imperturbável, associadas ao Big Mac: "Gostoso, como a vida deve ser". E por longos anos a Coca-Cola associou-se ao advérbio: "Sempre!" (que, em português, não traduz somente "always" mas também "forever"...). Tal como a língua árabe - sempre repleta de referências religiosas, mesmo para as realidades mais comezinhas - cunhou a fórmula de satisfação: Dayman! Quando algo (um prato, uma bebida...) está muito gostoso, vem a exclamação: Dayman!, "Sempre!", que fique assim por toda a eternidade... E a resposta é: Dayman bihayatuka!, "Para sempre e com tua vida!"...

Esse "instinto" de paz e felicidade duradouras (não por acaso a operação "infinite justice" mudou de nome para a não menos equívoca "enduring freedom") é tão forte que nos deixa perplexos quando somos confrontados com a realidade, que misteriosamente se apresenta como "vale de lágrimas"... É como se nosso coração dissesse: "não era para ser assim!". Será essencialmente condenado à frustração esse desejo de paz, amor e felicidade perfeitos?

O mistério de "Lili Marlene" (áudio e letra)

Somente nesse quadro do inelutável anseio humano por felicidade, pode-se compreender o mistério daquela que foi a mais popular canção do século XX: "Lili Marleen".

O poema que vai se tornar a letra de LM tinha sido escrito por Hans Leip, um soldado alemão, em plena Primeira Guerra. Esse poema só foi publicado en 1937 em um livro de poesias de Leip e no ano seguinte, o compositor Norbert Schultze ajunta-lhe a melodia, que é gravada por Lale Andersen pouco antes de começar a guerra. Um disco sem nenhuma importância até que LM foi tocada - como uma canção a mais - para as tropas alemãs pela Rádio Belgrado em 1941. Nos dias seguintes, milhares de cartas e telegramas chegam à pequena rádio pedindo "Lili Marleen". O poderoso chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels, em vão tenta proibir a canção ou substituí-la por uma versão "marcial". O mais surpreendente é que os exércitos aliados - para a impotente perplexidade dos chefes dos dois lados - também começam a cantar LM (em alemão ou em versões improvisadas) e faz-se uma versão inglesa, gravada por Anne Shelton, que vende no primeiro mês centenas de milhares de cópias... (logo virão as interpretações de Edith Piaf, Amanda Lear e principalmente Marlene Dietrich). Estima-se que a canção foi gravada em cerca de 50 línguas...

Qual o mistério dessa canção, que superou todas as barreiras ideológicas, de língua etc. e tornou-se o hino não oficial de todos os dias para os soldados dos dois lados? Uma canção masculina, mas que foi gravada quase que exclusivamente por mulheres. Uma canção que, incoada numa plangente gaita ou num pobre acordeão, desperta imediatamente todo o batalhão a desafiar os grandes chefes.

Trata-se de um sutil (nem poderia ser de outro modo), porém profundo protesto contra o absurdo da guerra, evocando aquela infinita sede de paz por meio de nada mais que um poste de luz (na época, a gás) diante do portão do quartel, onde o recruta ficava a conversar com Lili. E, numa nostalgia infinita, a canção pergunta: será que nos reencontraremos junto àquela luz, como outrora? E (implicitamente: em meio aos horrores do front) do fundo da terra e do alto do céu (juntam-se céu e terra: "Aus dem stillen Raume, aus der Erde Grund") surge, em meio à névoa, o vulto de Lili e a pergunta: será que nos reencontraremos junto àquela luz, como outrora?

É interessante observar a referência à terra, que corrige a tradição alemã de lançar o "eterno feminino" como algo celestial e etéreo.

A radical segurança: Maria e a antropologia filosófica

A tradição cristã ao mesmo tempo que afirma que esta vida é "valle lacrimarum" (expressão do salmo 83,7 da Vulgata, consagrada pelos escritos dos padres e doutores e principalmente pela Salve) apresenta também uma esperança: a misericordia maternal da Mãe. Não se trata de algo especificamente católico: é Ortega quem repete que a melhor definição da vida humana é: "vale de lágrimas" e Herrmann Wohlgschaft chega a afirmar que para Lutero as profundas raízes (zutiefst verwurzelt) humanas da veneração a Maria era algo evidente (selbstverständliche) [4] .

Sempre de novo, quando se trata de - ante a percepção da precariedade da existência - buscar delicadeza, acolhimento, perdão, segurança, "colo materno", recorre-se a Maria: ela é que é - explícita ou implicitamente - acionada. É a segurança radical: não a do Ersatz que nos é ofrecida em apólices de agências ou em promessas de partidos políticos... Nem tampouco a falsa sensação de segurança que advém do esquecimento desse traço essencial da condição humana, ao sabor do ruído do entretenimento dos mass-media ou simplesmente da agitação da vida moderna...

Não sei se após o atentado ao WTC aumentou o número de correntistas do Bradesco. Assistimos, isso sim, ao crescimento da devoção a Maria [5] . O recurso à Maria - pessoal e coletivamente - é sempre função inversa da arrogante auto-suficiência com que um indivíduo ou uma sociedade (ou uma igreja...) vê-se a si mesmo.

Em meio à insegurança própria da vida humana (e, principalmente, a insegurança última da existência), Maria representa a segurança radical por duas razões concatenadas: maternidade e onipotência: ela une o carinho incondicional da figura humana, terrena e feminina da mãe à onipotência de sua intercessão diante de Deus. Não se pense que com isto estamos deixando o âmbito da filosofia para adentrar o da teologia ou o da mística. Não. Continuamos na antropologia filosófica e neste artigo nos interessam mais os testemunhos de Fernando Pessoa, Paul McCartney e Heidegger do que o dos poetas medievais ou o de João Paulo II. Interessa-nos, metodologicamente, somente a experiência, o fenômeno. E é por esta razão que invocamos, por exemplo, as grandes campanhas de publicidade do Bradesco, da Coca-Cola e do McDonald's.

Para além das inseguranças quanto à saúde, emprego, Anthrax etc., está, como dizíamos, a insegurança radical neste vale de lágrimas. E aí a instintiva instância primeira é a mãe.

Dela, nos fala Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego

"Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, com um cuidado cheio de carinho - com vontade de lhes dar beijos - os meus brinquedos, as palavras, as imagens, as frases - fico tão pequeno e inofensivo, tão só num quarto tão grande e tão triste, tão profundamente triste!...

Afinal eu quem sou, quando não brinco? Um pobre órfão abandonado nas ruas das sensações, tiritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia.

De meu pai sei o nome; disseram-me que se chamava Deus, mas o nome não me dá idéia de nada. Às vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, e faço-me uma idéia dele a que possa amar... Mas depois penso que o não conheço, que talvez ele não seja assim, que talvez seja nunca esse o pai da minha alma...

Quando acabará isso tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me viesse buscar e me levasse para a sua casa e me desse calor e afeição...Ás vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar...Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as folhas caem no passeio... Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum...E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis para seu filho adoptivo, nem nehuma Amizade para seu companheiro de brinquedos.

Tenho frio de mais. Estou tão cansado no meu abandono. Vai buscar, ó Vento, a minha Mãe. Leva-me na Noite para a casa que não conheci..." [6]

E Heidegger, no Der Feldweg, o caminho do campo, que não leva a nenhum lugar definido, também evoca a figura da mãe (novamente a referência à terra, na contra-mão da tradição alemã...):

Os meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho. Equipados com bancos para o remador e o timão, flutuavam os barcos no Mettenbach ou no lago da escola. Nessas brincadeiras, as grandes travessias atingiam facilmente seu termo e facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu sonho era protegida por um halo, apenas discernível, pairando sobre todas as coisas. O espaço aberto era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava como se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres (Ihr Reich umgrenzten Auge und Hand der Mutter. Es war, als hütete ihre ungesprochene Sorge alles Wesen). Essas travessias de brinquedos nada podiam saber das expedições em cujo curso todas as margens ficam para trás. Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente da lentidão e da constância  com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente ambas as coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz [7] .

Naturalmente, pode-se objetar que, nesses casos, não se trata de Maria, mas simplesmente da respectiva mãe: Frau Heidegger, Sra. Pessoa ou Mrs. McCartney em "Let it be" (que analisaremos em seguida e aí a alusão a Maria de Nazaré é ainda mais forte).

Seja como for, permanece válido aquele incrível terceto de Dante na Comédia (que põe a Suma Teológica em forma de versos): por detrás dos múltiplos desejos e buscas do inquieto coração humano, procuramos um único doce fruto: a felicidade, plena e definitiva. É o que Dante ouve ao divisar o Paraíso:

Quel dolce pome che per tanti rami

cercando va la cura de' mortali,

oggi porrà in pace le tue fami (Purgatorio, XXVII)

Nessa mesma linha, Tomás de Aquino edifica toda sua doutrina da motivação sobre a convicção de que buscar o bem próprio é um instinto natural na vontade, dado ao homem pelo próprio Deus [8] , E o homem não pode não querer seu bem, sua felicidade:

Appetitus ultimi finis non est de his, quorum domini sumus (I, 82, 1 ad 3).

Daí o caráter trágico da condição humana: instinto de felicidade, de plenitude de bem..., cuja realizacão não está assegurada. Em todo caso, sempre de novo ansiamos pelo doce fruto da felicidade definitiva (e a buscamos - em forma vicária - "em tantos ramos" de desejos e veleidades).

A "Mother Mary" de Paul Mc Cartney (áudio e letra)

            Também a conhecida "Let it be" dos Beatles foi composta em momentos dramáticos e ainda que Paul McCartney afirme que se trata de uma evocação de sua mãe, Mary McCartney, é muito difícil não ver aí também Maria de Nazaré [9] .

            Também nesta canção, dizíamos, momentos difíceis da vida ("times of trouble"), hora escura, noite sombria (hour of darkness, cloudy night) etc. Aqui não se trata de horrores de guerra nem da percepção pura e simples da orfandade existencial, mas do desmoronamento de todo o projeto "The Beatles", problemas com drogas etc. [10] . Então, numa noite - é o próprio Paul quem o narra -, aparece-lhe em sonhos a mãe, falecida há dez anos, para confortá-lo e tranqüilizá-lo [11] . Na mesma entrevista, perguntado pelo caráter religioso da canção, afirma: "Mother Mary makes it a quasi-religious thing, so you can take it that way".

Seja como for, é interessante notar que o próprio refrão "let it be", repetido na canção por Maria, a Mãe, não é só - como pensam muitos dos leitores brasileiros" - uma fórmula banal como: "Não esquenta, não!", "Deixa prá lá!", mas é a própria sentença - (speaking words of wisdom: "let it be") - com que Maria de Nazaré expressa sua sabedoria. De fato, a palavra de sabedoria por excelência é o fiat de Lc 1, 38: "Faça-se em mim segundo a tua palavra...", que em inglês soa precisamente: "Let it be to me according to your word".

Elis Regina e a "Romaria" (áudio e letra)

            Já a maravilhosa canção "Romaria" de Renato Teixeira (sobretudo na inesquecível interpretação de Elis), praticamente dispensa comentários. É o vale de lágrimas, de sonho e de pó, de laço e de nó, amargo como jiló, a mina escura e funda, a solidão. Interessante é observar que é o coletivo anônimo (ou como diz Lutero, der Seele des Volkes) quem recomenda o recurso a Maria: "Me disseram, porém, ..."

O incondicional amor de Maria na poética medieval: o milagre de Teófilo

Também na arte medieval, Maria representa o acolhimento radical em relação aos pecadores e perdidos: misericórdia "quimicamente pura". Tal como em tantos outros temas da época, essa imagem aparece no famoso Milagre de Teófilo (objeto de inúmeras poesias, peças de teatro, vitrais etc.). De meu estudo introdutório à tradução brasileira (1997) do Milagre de Teófilo de Gonzalo de Berceo  (séc. XIII), recolho os seguintes parágrafos:

A estrutura temática do Teófilo gira em torno da intervenção de Maria para salvar um pecador ou um desesperado, tema corrente nos quadros da literatura medieval. No caso do Teófilo, há uma especial radicalidade do pecado e do perdão: Teófilo atingiu o fundo da desgraça e tinha chegado a assinar e selar um contrato com o próprio diabo! E, mesmo nestes extremos de perdição, a Senhora consegue sua salvação. Estamos, aqui, diante de uma raiz fundamental não só da cultura medieval, mas também de seu próprio eixo de equilíbrio emocional. Em todas as épocas, a principal insegurança do homem não se dá no enfrentamento de fatores externos: doenças, intempéries ou falta de técnicas de domínio sobre a natureza, mas diante das misérias, descaminhos, desvarios e angústias do próprio coração humano.

O Milagro de Teófilo toca a fundo a pedagogia da "segurança existencial": a figura de Maria significa a certeza concreta, dada a cada homem, de um amor absoluto, incondicional e maternal a ele, pessoalmente, dirigido. Um amor, além do mais, onipotente e dotado de uma infinita capacidade de perdão. Por mais miserável, mesquinha e desastrada que tenha sido uma vida, sempre está aí, ao alcance da mão, a doçura da solicitude da Mãe, que diz ao desgraçado que nada está perdido: que ele está ancorado, ele tem "para onde voltar..." e tem um caminho seguro de volta, preparado pela Senhora.

João Paulo II e o coração de Maria

Disso também nos fala João Paulo II. Na Dives in Misericordia, para contextualizar a misericórdia radical do coração de Maria, o papa discorre sobre a misericórdia na Bíblia e seus diversos termos. Um primeiro é "hesed", que indica uma atitude de bondade e que, quando se estabelece entre duas pessoas, passa a significar também compromisso de fidelidade: tal como na Aliança de Deus com Israel. É a fidelidade de Deus a si próprio (mesmo ante a infidelidade de Israel): "hesed we'emet" é uma ligação de dois termos coordenados: "fidelidade e verdade" (fidelidade é verdade) "Eu faço isto, não por causa de vós, ó casa de Israel, mas pela honra do meu santo nome" (Ez 36,22). Esse tipo de misericórdia é uma característica mais masculina.

A Bíblia fala também de "hamal", originariamente a misericórdia de "poupar a vida (do inimigo derrotado)", mas que também significa em geral "manifestar piedade e compaixão" e, por conseguinte, perdão e remissão da culpa.

Já o termo "hus" exprime igualmente piedade e compaixão, mas isso sobretudo em sentido afetivo. É oportuno ainda lembrar o já citado vocábulo " 'emet ", que significa: em primeiro lugar "solidez, segurança" (no grego dos Setenta, "verdade"); e depois, também "fidelidade"; e desta maneira parece relacionar-se com o conteúdo semântico próprio do termo "hesed".

Mas em Deus há também a misericórdia "rahamim", que já pela própria raiz, denota o amor da mãe (rehem= seio materno). Do vínculo mais profundo e originário, ou melhor, da unidade que liga a mãe ao filho, brota uma particular relação com ele, um amor particular. Deste amor se pode dizer que é totalmente gratuito, não fruto de merecimento, e que, sob este aspecto, constitui uma necessidade interior: é uma exigência do coração. É uma variante como que "feminina" da fidelidade masculina para consigo próprio, expressa pelo "hesed" . Sobre este fundo psicológico, "rahamim" dá origem a uma gama de sentimentos, entre os quais a bondade e a ternura, a paciência e a compreensão, ou, em outras palavras, a prontidão para perdoar. O Antigo Testamento atribui ao Senhor estas características quando, ao falar d'Ele, usa o termo "rahamim". Lemos em Isaías: "Pode porventura a mulher esquecer-se do seu filho e não ter carinho para com o fruto das suas entranhas? Pois ainda que a mulher se esquecesse do próprio filho, eu jarnais me esqueceria de ti" (Is 49,15). Este amor, fiel e invencível graças à força misteriosa da maternidade, é expresso nos textos do Antigo Testamento de várias maneiras: como salvação diante dos perigos (especialmente ante os inimigos), como perdão dos pecados e, finalmente, prontidão em satisfazer a promessa e a esperança (escatológicas), não obstante a infidelidade humana, conforme lemos em Oséias: "Eu os curarei das suas infidelidades, amá-los-ei de todo o coração" (Os 14,5).

Daí que a encíclica "Dives in Misericordia" (as discussões semânticas acima estão na nota 52 da DM), conclua falando do amor e da misericórida incondicionalmente maternais do coração de Maria:

DM V,9  -  Precisamente deste amor "misericordioso", que se manifesta sobretudo em contato com o mal moral e físico, participava de modo singular e excepcional o coração daquela que foi a Mãe do Crucificado e do Ressuscitado. Nela e por meio dela o mesmo amor não cessa de revelar-se na história da Igreja e da humanidade. Esta revelação é particularmente frutuosa, porque se funda, tratando-se da Mãe de Deus, no singular tato do seu coração materno, na sua sensibilidade particular, na sua especial capacidade para atingir todos aqueles que aceitam mais facilmente o amor misericordioso da parte de uma mãe.



[1] Martin Luther, Weimar edition of Martin Luther's Works (Translation by William J. Cole) 10, III, p.313. Cf. http://www.mariology.com/sections/reformers.html

[2]   Até no sentido derivado: o daqueles senhores de terno e walkman, que querem passar despercebidos como se fizessem parte normal do ambiente.

[3] "Sicut bonum creatum est quaedam similitudo et participatio boni increati, ita adeptio boni creati est quaedam similitudinaria beatitudo"

[4] Babel und Bibel, S. 164. Edição on line: http://karlmay.uni-bielefeld.de/kmg/seklit/JbKMG/1991/148.htm

[5] Cfr. p. ex. Arruda, Roldão "O crescimento do marianismo é um dos fenômenos religiosos mais notáveis atualmente", O Estado de S. Paulo, Geral, 21-10-01.

[6] Livro do Desassossego por Bernardo Soares, Lisboa, Edições Ática 1982, v. II pp. 14-15.

[8] Primus ... voluntatis actus ex rationis ordinatione non est, sed ex instinctu naturae aut superioris causae (I-II,17,5 ad 3).

[9] Da canção "Lady Madonna", Paul afirma: "`Lady Madonna' started off as the Virgin Mary, then it was a working-class woman, of which obviously there's millions in Liverpool. The people I was brought up amongst were often Catholic; there are a lot of Catholics in Liverpool because of the Irish connection and they are often quite religious. When they have a baby I think they see a big connection between themselves and the Virgin Mary with her baby. So the original concept was the Virgin Mary but it quickly became symbolic of every woman; the Madonna image but as applied to ordinary working-class woman. It's really a tribute to the mother figure, it's a tribute to women". Miles, Barry. Paul McCartney – Many Years From Now. Secker & Warburg. London, 1997, p. 449.

[10] O próprio Paul fala das circunstâncias em que compôs "Let it be": "This was a very difficult period. John was with Yoko full time, and our relationship was beginning to crumble: John and I were going through a very tense period. The breakup of the Beatles was looming and I was very nervy. Personally it was a very difficult time for me, I think the drugs, the stress, tiredness and everything had really started to take its toll. I somehow managed to miss a lot of the bad effects of all that, but looking back on this period, I think I was having troubles". Ibidem, p. 538.

[11]   It was such a sweet dream I woke up thinking, Oh, it was really great to visit with her again. I felt very blessed to have that dream. So that got me writing the song `Let It Be'. I literally started off ‘Mother Mary', which was her name, `When I find myself in times of trouble', which I certainly found myself in. The song was based on that dream". Ibidem, p. 538