Importância da Veracidade

(Notas de conferência proferida em São Paulo, em 4-5-98,
 no ciclo "Filosofia e Cristianismo" do Projeto Mosaico)

 

Alípio Maia e Castro
 alipiomc@hottopos.com

 

Tem-se dito que a violência é a doença dos nossos dias: há muita violência nas relações entre os homens. Talvez essa violência se deva a um desentendimento de fundo que paira entre as pessoas, e que procede, o mais das vezes, da desconfiança mútua. Provavelmente, a desconfiança que se gera entre as pessoas procede por sua vez da sua falta de veracidade: perante esta falta, não se acredita nos outros, desconfia-se; e, em conseqüência disso, fica-se como que de armas na mão, na defensiva. Ora, essa atitude defensiva gera violência.

 

Talvez seja isso. Seja lá como for, é evidente que a veracidade faz falta à harmonia das relações sociais em todos os ambientes. Por isso o tema da veracidade merece um pouco da nossa atenção. Hoje, faremos algumas considerações em torno da veracidade.

 

Nesta conferência eu gostaria simplesmente de dar três passos a propósito da veracidade: o primeiro é uma consideração sobre a falsidade - o contrário da veracidade - que ajuda a compreender o que é veracidade.

 

O segundo, uma consideração sobre a veracidade fundamental do ser humano, que deve viver, que deve comportar-se, exprimindo bem a sua condição humana, vivendo como homem, como verdadeiro homem.

 

E o terceiro, uma consideração sobre essa ladeira da veracidade que é a rectificação de todos aqueles que caem no erro.

 

Primeiro, a falsidade. E nisto eu queria deter-me um pouco mais. Todos nós condenamos a palavra mentirosa, a palavra que não corresponde à realidade. É assim sempre: um aluno que estude Biologia e classifique como réptil um insecto é reprovado: o que ele disse não corresponde à realidade; e sofre uma reprovação. Um concorrente que apresenta um atestado falso num concurso que exige formatura em Direito, fica excluído. Um teólogo católico que, pretendendo ser ainda católico, afirma que Jesus Cristo é um simples cabecilha revolucionário, fica desqualificado como teólogo católico...

 

Há por toda a parte, instintivamente, reconhecidamente, uma reprovação da palavra mentirosa. O facto é que a falsidade é muito vasta , muito variada e às vezes não notamos que incidimos um pouco nela. Não é puramente nas palavras que uma pessoa é falsa; pode ser falsa também no seu comportamento. Há talvez, sem receio de reduzir aqui as dimensões da realidade, três tipos de falsidade que convém recordar para se entender bem o que é veracidade.

 

Há uma primeira falsidade que é a do que vulgarmente se chama mentiroso. O mentiroso é aquele que engana propositadamente os outros para atingir um objectivo egoísta. Há uma outra falsidade diferente que é a dos homens que se enganam a si mesmos. E há, finalmente, a falsidade daqueles a quem falta autenticidade.

 

Mente-se de diversas maneiras, por diversos motivos, ainda que nesses diversos motivos esteja sempre presente, como disse, um certo objectivo mais ou menos egoísta. Mente-se por medo, quando se temem as consequências de uma falta cometida (a mentira é a maneira de evitar o que se teme). Tem-se medo do ridículo, da zombaria em relação a certos princípios dos quais já se viu zombar em alguma ocasião: um cristão que renega as suas convicções diante de um ambiente adverso e mente para agradar fá-lo muitas vezes por medo; há mentira nas suas palavras. Tem-se às vezes um medo que é, diríamos, um medo menor: a timidez. Tal é o caso dos pais que têm uma espécie de vergonha de explicar aos filhos, por exemplo, como é que se nasce neste mundo e inventam histórias como a famosa história antiga dos meninos que vêm de Paris no bico da cegonha. Tem-se medo e, por causa do medo, muitas vezes se mente.

 

Noutras ocasiões mente-se por vaidade. Tal homem gosta de ser admirado pelos amigos. Sabe que há um abismo entre o que ele é e o que gostaria de ser; mas, como gosta de ser admirado, exagera as coisas: e já está a mentir. Exagera o seu próprio mérito aos olhos dos outros: nova mentira. Pode-se mentir por inveja: quem não suporta que os outros sejam mais hábeis, mais ricos, mais inteligentes, rebaixa-os; e, ao rebaixá-los, está usando de palavras mentirosas.

 

Pode-se mentir até por uma esquisita lealdade como acontece em certas súcias de bandidos. É conhecida a figura do bandido que, para encobrir outro bandido, mente. Estão em jogo interesses criminosos, interesses suspeitos. Pode-se mentir por bajulação, para cair nas graças de alguém: elogiar falsamente os outros para ganhar com isso algum proveito.

 

Há mentiras mais ou menos descaradas, mais ou menos subtis; sempre se trata de encobrir a realidade, de fazer um artifício com as palavras e fugir à realidade. Penso no recurso aos eufemismos e à ambiguidade. Como se sabe, temos um eufemismo se se usam palavras diferentes para designar a mesma coisa: assim em vez de se dizer aborto, fala-se de "interrupção da gravidez", embora sempre se trate de matar um ser humano. Em contrapartida, temos ambiguidade, se se emprega a mesma palavra para designar coisas diferentes. Tem-se visto, por exemplo, que alguns tacham de "imposição" as leis morais, sugerindo que o conteúdo objectivo dessas leis, que apenas se impõe como qualquer realidade objectiva descoberta pelos cientistas na natureza, é do mesmo jaez que a "imposição" presente na violência, na agressão ou na opressão, em todas as violações da dignidade humana.

 

As palavras são um jogo; a pessoa que foge da realidade, mente. Há em toda mentira um objectivo egoísta e uma espécie de fuga. Há sempre uma deficiência de espírito: ou de razão, pois não se verifica uma abertura da inteligência à realidade; ou uma deficiência de liberdade porque a liberdade se retrai em face da realidade que a inteligência lhe apresenta: em qualquer caso há uma deficiência de espírito. E as coisas se multiplicam: há quem minta dizendo, depois de um encargo que recebeu: "-Já está tudo pronto", quando na verdade, deveria dizer: "-Nem sequer toquei no assunto". Há quem minta, em face de um convite para almoçar, dizendo: "-Eu apareço!", em vez de dizer: "-Olhe, agora não lhe posso prometer nada". Há quem minta dizendo que esteve em determinado lugar muitas vezes, quando na verdade só esteve algumas vezes.

 

Há de tudo um pouco e uma imensa variedade nas mentiras. Mentir é enganar propositadamente os outros. Mas, a falsidade não acaba aí. A falsidade, que é um pouco mais ampla do que a simples palavra, atinge o comportamento, aparece no homem que se engana a si mesmo.

 

O homem que se engana a si mesmo é o que vive na ilusão: faz de conta que não vê as exigências difíceis da vida, procura talvez distorcê-las para diminuir as suas asperezas; convence-se de que fará isto ou aquilo quando na realidade isto ou aquilo está acima das suas forças; não reconhece os seus erros, está sempre um pouco fora da realidade: isso é falsidade. Um homem destes, digamos, nunca se pode levar a sério.

 

Mas, nesta nossa época, que certos pensadores denominaram "pós-moderna", com alguma imprecisão, há muitos que se enganam a si mesmos duma forma bastante mais grave. Refiro-me àqueles que fingem a incapacidade da razão humana para chegar ao conhecimento de uma verdade objectiva e universalmente válida sobre o bem e o mal e à descoberta do sentido último da vida. Uma vez admitido semelhante fingimento, os homens confinam o seu horizonte ético no domínio do meramente fáctico, empírico, provisório e efêmero; reduzem as suas aspirações ao prazer, ao poder, à utilidade ou a qualquer conveniência subjectivista; detêm-se em dúvidas, incertezas e hesitações que só podem gerar insegurança, ansiedade e pessimismo. Assim, privados de uma noção universal sobre o bem, que a todos se imponha por si, os homens comportam-se ao sabor de uma consciência subjectivista e utilitarista que, em vez de aplicar às situações concretas, mediante um juízo da inteligência, o conhecimento universal do bem, cria critérios de todo em todo autônomos, infensos ao diálogo. Quem assim procede, encerrando-se naquilo que presume ser a sua verdade, diferente da verdade dos outros, torna-se incapaz de arrostar e resolver cabalmente problemas candentes que afligem a sociedade e cuja solução requer a harmonia de um consenso racional: problemas da família, da justiça social, da defesa da vida e do ambiente natural, etc. De resto, todo aquele que, desta maneira, se cega a si mesmo, perdendo o contacto com verdades perenes e princípios transcendentes a que só a razão plena tem acesso, passa a guiar-se por impulsos, emoções e fantasias que o precipitam na instabilidade e na incoerência, tornando-o incapaz de qualquer compromisso duradouro, em detrimento da paz.

 

Depois há os que se distinguem pela falta de autenticidade: são os que se comportam teatralmente. Entre eles, os afectados, esses que têm uma postura externa sempre fictícia, pouco natural. Os que são sugestionáveis, que se limitam a repetir as opiniões que os outros lhes impõem, sem escolha própria nunca, sem decisões ou escolhas próprias com base na realidade das coisas. Os exagerados, sempre prontos a agigantar artificialmente os seus sentimentos: de alegria, de tristeza, de amor, de ódio, de entusiasmo, porque parecem deliciar-se com essas atitudes. O caso é que atitudes desse género não se prestam a despertar a confiança dos outros; de modo que estorvam a harmonia das relações sociais.

 

A falsidade é o contrário da veracidade. O que é a veracidade? É verdadeiro não apenas o homem que faz declarações verdadeiras, exactas; mas aquele que no seu comportamento exprime toda a plenitude do seu ser humano. O Papa João Paulo II dizia numa mensagem que emitiu em janeiro de 1980: "A primeira mentira, a falsidade fundamental, é não acreditar no homem: no homem, em todo o seu potencial de grandeza; mas também na necessidade de redenção do mal e do pecado que ele tem em si". Há uma falsidade fundamental que consiste em uma pessoa não se comportar de acordo com a grandeza real do ser humano. Dizendo-o de uma maneira simples, eu poderia resumir tudo afirmando que o homem que exprime todo o seu ser humano é aquele que faz o que diz, diz o que pensa e pensa a verdade.

 

As três coisas, não apenas uma delas. Se eu sou médico e na minha ignorância inexplicável começo a pensar que o arsênico é um remédio muito bom para os meus pacientes e me dirijo a um paciente e lhe prometo que lhe vou receitar arsênico e de facto cumpro o que digo e lhe dou uma receita de um quilo de arsênico, decerto faço o que digo e digo o que penso; mas o que eu penso decerto que não está de acordo com a saúde do paciente. O que eu penso não é verdadeiro, não está de acordo com a ciência médica que exprime a realidade do organismo humano.

 

Veracidade é viver, comportar-se, exprimindo no comportamento toda a plenitude do ser humano. Às vezes confunde-se veracidade com sinceridade. Esta palavra, sinceridade, é um tanto ambígua: em muitas ocasiões não serve para exprimir a plenitude do ser humano, mas apenas as suas emoções mais primitivas e mais superficiais.

 

Para se ser sincero não é necessário pensar a verdade: uma pessoa pode não pensar nada e exprimir com sinceridade tudo o que lhe passa pela cabeça, mesmo sem pensar e sem raciocinar. Para uma pessoa ser sincera, também não é necessário fazer o que diz: uma pessoa é sincera num dado momento e pode esquecer-se do que disse, pode não ser fiel aos compromissos assumidos por uma declaração anterior. Há sinceridade certamente numa pessoa que dá vazão a todos os seus impulsos: de agressividade, de medo, de sexualidade... É o caso das pessoas que soltam pela boca fora tudo o que lhes ocorre.

 

Mas essa sinceridade não é suficiente para exprimir tudo o que se passa no ser humano, toda a natureza, toda a grandeza do ser humano, todo o seu "potencial de grandeza", para usar a expressão do Papa.

 

Veraz, verdadeiro é o homem que, fiel ao seu ser, realmente se comporta de acordo com a transcendência do seu próprio ser, isto é, de acordo com a sua tendência profunda para um ideal de perfeição: de maneira tal que se supera, não se comprazendo na sua mediocridade. No fundo de si mesmo, todos os homens têm uma tendência para o absoluto; uma tendência que se confunde com a tendência para amar ou com a tendência para a felicidade. O homem é um ser que tende a transformar-se, a superar-se, a melhorar.

 

Viver verdadeiramente, com comportamento verdadeiro, é exprimir na postura e no agir esta tendência que o homem tem para superar-se.

 

Não é portanto viver num nível de sinceridade de acordo com umas tendências quaisquer, momentâneas, superficiais; mas viver de acordo com a tendência que o homem tem para os valores, para o ideal; daí que a veracidade exija a têmpera, o esforço coerente do homem que, não contente com aquilo que é, deseja aprimorar-se cada vez mais.

 

É verdadeiro o homem que querendo viver com o ideal da sua perfeição, de acordo com os desígnios de Deus, em conformidade com as suas tendências mais profundas, procura aprofundar no conhecimento de Deus, no conhecimento daquilo que Deus espera dele. Esse vive de acordo com o seu destino, com a sua natureza; esse é um homem verdadeiro, esse homem é fiel a si mesmo. Mas é claro que apesar da tendência que o homem tem para a superação, para atingir um ideal de perfeição, apesar de tudo isso, o homem é fraco, peca, comete erros; e por isso -e assim chegamos ao terceiro passo- a veracidade reveste-se não poucas vezes do carácter de uma rectificação: é verdadeiro o homem que ao reconhecer os seus erros, a sua fraqueza em face do ideal, dá a mão à palmatória. Neste sentido diz o Papa, na observação que antes citei, que a falsidade fundamental é não acreditar também na necessidade de redenção do mal e do pecado que o homem traz em si.

 

É verdadeiro o homem que, ao reconhecer os seus erros, se arrepende; o homem que ao reconhecer quer se afastou da sua natureza, da sua dignidade, mesmo que não seja por uma falta de palavra, mesmo que seja só com os seus actos, deseja reempreender o caminho abandonado.

 

O arrependimento, em todas as suas formas, é esta rectificação que denota o amor à verdade.

 

Arrepender-se é veracidade, há veracidade na rectificação que o arrependimento implica. E rectificação é tudo aquilo que na vida corrente significa reconhecer um erro, pedir desculpa; é a coragem de voltar-se para um filho, ou para um amigo dizendo :-Eu enganei-me, peço perdão. Trata-se de uma limitação que se impõe sempre que a palavra -dadas as suas deficiências- falhou.

 

O homem é verdadeiro na medida em que ama a verdade, na medida em que a procura sempre, na medida em que a exprime, na medida em que retorna a ela depois de a ter abandonado.

 

Essa veracidade cria um clima de confiança entre os homens e une os homens com Deus, sobretudo em Jesus Cristo que se denominou a si mesmo a verdade: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida".

 

Aproximar-se da verdade é sempre aproximar-se do Criador; aproximar-se da verdade é sempre viver de acordo com a grandeza humana, com o destino humano, com a natureza humana.

 

Vale a pena reconsiderar muitas vezes a importância da veracidade na nossa vida: a nossa vida atinge harmonia, realiza-se mais a fundo, fica cheia de paz, quando amamos a verdade.