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Segunda Parte

 

Confúcio e sua Escola

Confúcio (551- 479 a.C.) é a forma latina de Kongfuzi, que quer dizer Mestre Kong. Nasceu no estado de Lu em 551 a.C. Seu pai morreu quando tinha três anos, sendo educado pela mãe. Casou-se com 28 anos e no ano seguinte teve um filho Kong Li (522-482 a.C.). Depois de ocupar pequenos postos no ramo de administração de cereais, dedicou-se ao ensino, sendo o primeiro professor na história da China.

Visitou a antiga capital dos Zhou, Luo Yang, onde se informou sobre os ritos. Ao regressar, tornou-se magistrado em seu estado de Lu. Seu sucesso foi grande, de modo a ser promovido a Ministro da Justiça; tinha então 55 anos. Em 495 a.C. abandonou seu posto, desgostoso com a politicagem e jogo de interesses entre os Estados. Desde esta época, perambulou nos 14 últimos anos de sua vida, de Estado a Estado, oferecendo seus serviços aos governantes que quisessem consultá-lo. Aos 68 anos, deixou de lado suas aspirações políticas e retornou ao Estado de Lu. Nos últimos anos de vida, além do ensino, dedicou-se a editar os clássicos. Esse trabalho editorial resultou na transmissão da tradição chinesa que chega até nossos dias e fautora da unidade cultural chinesa. Neste empreendimento foram coligidos seis livros sagrados, os Seis Jing e juntamente com os quatro livros da própria Escola de Confúcio, constituem os Escritos Confucianos.

Os Seis Jing são:

1. Shi Jing, o livro dos Cânticos. Coleção de 315 hinos e cantos selecionados da Antigüidade.

2. Li Ji, o livro dos Ritos. Registro dos sistemas de governo das instituições morais e religiosas da Dinastia Zhou.

3. Shu Jing ou Shang Shu, o livro dos Documentos ou Escrituras Seletas. Coletânea de documentos históricos e registros da Antigüidade

4. Chun Qiu, Anais Primavera-Outono. Registro dos eventos desde 722 a.C. do Estado de Lu.

5. Yi Jing, o livro das Mutações. Estudo dos eventos humano-cósmicos, articulados em 64 processos, representados por hexagramas.

6. Yue Jing, o livro da Música. Inteiramente perdido.

Os Quatro Livros:

1. Lun Yu, os Analetos de Confúcio - Complicação dos ditos de Confúcio.

2. Da Xue, o Grande Estudo.

3. Zhong Yong, a Harmonia Perfeita.

4. O Livro de Mêncio. Mêncio (372-289 a.C.) foi considerado o segundo Mestre, depois de Confúcio.

É preciso dizer que os Seis Jing são considerados propriamente sagrados. Jing é livro sagrado, os quatro livros como "comentários ortodoxos" da tradição. É um erro grave reduzir a tradição confuciana aos quatro livros(29).

Assim o novo confucionismo(30), a partir de um único trecho (e ainda mal interpretado...), procura mostrar que o confucionismo não é religioso(31): "Ji Lu perguntou sobre o culto dos mortos. Disse-lhe o Mestre: "Quem não sabe servir os vivos, como há de saber servir os mortos?". "E que me dizeis sobre a morte?". Respondeu Confúcio: "Se não sabeis o que é a vida, como haveis de saber o que é a morte?"".(Lun Yu, XI, 12)

Mas mesmo no caso de Confúcio ter sido ateu, o único que se poderia dizer é que ele não estaria de acordo com a própria tradição que ele consagrou.

A Tradição Extremo - Oriental.

Apresentaremos uma seleção - certamente limitada - de textos significativos e os comentaremos.

Trecho 1 - (Lun Yu VII, 1)

"O Mestre disse: "Sou um transmissor e não um inventor, tenho fé e amo a Antigüidade, comparo-me ao velho mestre Peng".

O Mestre não procura inventar, mas transmitir o que lhe vem genuinamente da Antigüidade. Mas por que estes homens eram tão extraordinários? Por encontrar-se na origem da Revelação. Podemos aplicar a Confúcio mutatis mutandis o que Pieper, depois de uma profunda investigação sobre os mitos platônicos, diz de Sócrates: "Em conclusão, Sócrates confia numa palavra divina quando aceita um conhecimento da Antigüidade e o toma por norma de seu comportamento; ele confia na autoridade da Revelação. Com isso, porém, salta à vista a fundamental conformidade entre a concepção platônica da 'Sabedoria dos Antigos' com a idéia cristã de uma Tradição Sagrada fundamentada por porta-vozes e profetas escolhidos por Deus como 'receptores originários da Revelação'(32)". O que torna portanto os Antigos alicerce da cultura é sua participação na Revelação.

Trecho 2 - (Lun Yu VII, 19)

"Disse o Mestre: "Eu não sou um homem que nasci com o saber; eu sou um amante da Antigüidade e busco, na Antigüidade, diligentemente o saber".

É um reforço do primeiro trecho

Trecho 3 (Zhong Yong, cap. XVII, 4)

"Lê-se no livro dos Cânticos:

  • Excelso esse príncipe!
    Austero nas virtudes,
    Destarte rege povo e ministros.
    Do Céu lhe vem a bonança,
    Do Céu recebeu proteção, providência,
    O Céu concedeu-lhe o mandato.
    É pois do Céu que tudo vem...
    Homens de grande virtude,
    A vós compete o mandato!"

Deus era chamado na dinastia Shang (1523 -1028 a.C.) Di ou Shang Di(33); na dinastia Zhou (1028-256 a.C.), Tian. Tian era um deus pessoal, que depois passou a indicar o Céu, tanto pessoal como impessoalmente. Há trechos no Shu Jing que no mesmo parágrafo empregam Di, Shang Di e Tian. Traduzirei Di e Shang Di por Deus e Tian por Céu. O sentido impessoal só surge com o filósofo confuciano heterodoxo Xunzi (ca.298-ca238a.C.). Pelo texto pode-se ver claramente que o regente recebia tudo de Deus.

Trecho 4 - (Zhong Yong, Cap. XX, 7)

"Portanto o príncipe não pode descuidar do cultivo do caráter. Desejando cultivar seu caráter deverá servir seus parentes. Para servir seus parentes deverá conhecer o homem. Para conhecer o homem deverá conhecer o Céu. Conhecer o Céu é conhecer tudo o que Deus decretou e revelou".

Trecho 5 - (Lun Yu II, 4, 4).

"Aos cinquenta anos, Eu ( Confúcio ) conheci o mandato do Céu".

A santidade de Confúcio!

Trecho 6 - (Lun Yu VII, 22)

"O Mestre disse: O Céu infundiu a virtude que está em mim. Huan Tui, que me poderá fazer?"

Deus infundindo a virtude em Confúcio!

Note-se aqui que Deus sempre se revela; porém a revelação original foi dada a todo o gênero humano.

Trecho 7 - (Shu Jing, parte 4, livro 8, pt. 3, 3 )

"Yue disse: Ó rei, os homens procuram ouvir muito quando devem estabelecer seus assuntos. Aprender as lições dos antigos é o modo de terem sucesso. Que os assuntos de alguém possam ser perpetuados por gerações, sem fazer dos antigos seus mestres, é o que Yue nunca ouviu dizer".

Os antigos como mestres infalíveis e imprescindíveis!

Trecho 8 - (Shu Jing, parte V, livro XII, Pp 11 e 12)

"Examinando os primeiros homens da Antigüidade, há o fundador da dinastia Xia(34). O Céu foi seu condutor, permitindo que sua descendência o sucedesse e protegeu-a. Ele estava em consonância com o Céu e era obediente. Mas no curso do tempo, o decreto em seu favor foi rompido. É o mesmo caso de Yin(35). O Céu guiou seu fundador, corrigindo e protegendo seus descendentes. Ele também procedia em consonância com o Céu e era obediente. Mas agora o decreto do Céu também foi rompido. Nosso rei subiu ao trono em sua juventude: que não despreze os idosos e experientes, pois pode-se dizer que estes estudaram a conduta virtuosa de nossos veneráveis antigos. E o mais importante: eles ponderaram seus planos sob a condução do Céu".

A condução do Céu é total! Além disso instruiu o fundador mítico da primeira dinastia chinesa.

Trecho IX - (Shu Jing, parte IV, livro V, Pt 3, 3)

"O rei anterior era sempre zeloso no cultivo da própria virtude; deste modo era o companheiro de Deus. Eis que hoje o real sucessor dispõe de excelente herança. Espero que se concentre nisso."

O cultivo das virtudes como condição da sintonia com Deus.

Trecho 10 - (Shu Jing, parte III, livro IV, Cap II, 2 b)

"Os primeiros reis eram extremamente cuidadosos em relação aos avisos do Céu, e os seus ministros mantinham a observância constante das leis. Todos os oficiais cumpriam devidamente seu serviço. Os soberanos eram plenamente iluminados".

Podemos depreender que quanto mais nos remetemos às origens culturais da humanidade tanto mais iluminados eram seus representantes.

Haveria muitos outros trechos a apresentar acrescidos de todas as inscrições oraculares pré-históricas. Vamos apenas mencionar algumas conclusões de um importante estudo a respeito(36). "Shang Di é um 'Deus Próximo' que habita com os homens na floresta das origens, ainda que tenha poder sobre as estrelas e sobre os astros; não é portanto um deus longínquo, celeste, separado, urânico. Do alto da árvore, sua habitação governa a vida social e política dos homens, dispõe da fundação de suas cidades e recebe os sacrifícios e as orações"(37).

E arremata: "Este filão religioso institucional, social, ideal, cultural, mesmo sendo em sua particularidade e originalidade chinês, resulta essencialmente paralelo e sinótico em relação ao semítico que se manifestou no Oriente Médio e do qual a Bíblia é expressão. Evidentemente as duas tradições participaram de uma fé comum proto-histórica que conhecia o nome divino de Shang Di..."(38)

 

Conclusões

A apresentação de textos e testemunhos de tradições historicamente separadas como a ocidental e a chinesa, é sugestiva e permite-nos reflexões e conclusões. A universalidade de certas concepções é realmente impressionante. Quando, por exemplo, estudamos a universalidade dos sacrifícios, inclusive humanos, e nos deparamos com uma civilização como a Maia, isolada historicamente, e constatamos sua inteira existência dedicada à expiação pelo sangue, nossa perplexidade é grande. Ora, os chineses da Antigüidade atestam a presença de antepassados, os famosos "antigos", que deveriam ser imitados, cujos caminhos deveriam ser percorridos, próximos a uma revelação originária.

É um tema digno de ser meditado e aprofundado...


29- É totalmente inadequada a interpretação de Guénon a respeito da tradição extremo-oriental. Interpreta o taoísmo como a componente metafísica e o confucionismo apenas como a componente social e exotérica. Além dos textos taoistas serem posteriores, eis como se refere ao Yi Jing: "A tradição metafísica, tal qual é constituída sob a forma de "taoismo", é o desenvolvimento de princípios de uma tradição mais primordial, contida notadamente no Yi Jing, e que é desta mesma tradição primordial que decorre inteiramente ainda que de um modo menos imediato e somente enquanto aplicação a uma ordem contin-gente todo o conjunto de instituições sociais que é habitualmente conhecido com o nome de confucionismo". (R. Guénon. Introduction Générale a l'Étude des Doctrines Hindoues. Vega Paris, 1964, p. 71). Além do Yi Jing fazer parte da tradição confuciana, temos a projeção de um Oriente idealizado bem diferente do real.

30- O confucionismo destes dois últimos séculos, diferente do neo-confucio-nismo medieval.

31- Esta tese de que Confúcio repudia a religião não tem nenhum fundamento. Como seria afastar-nos demasiado do tema, remetemos à competente defesa que o Pe. Joaquim Guerra S. J faz de Confúcio. Consultar: Quadrivolume de Confúcio, Macau, 1984, pp. 405-413; Livro dos Cantares, Macau, 1979, Introdução, pp. 63 - 75.

32- Pieper, Überlieferung, pp. 55-56.

33- Sobre esta fundamental questão de Shang Di consultar o artigo que escrevemos em China em Estudo, DLO-FFLCHUSP nº 4.

34- Dinastia ainda incerta. Segundo a cronologia chinesa: 2205 a.C.-1766 a.C.

35- Yin é outro nome da dinastia Shang.

36- Antonio Ammassari, L'Identità cinese. Note Sulla Preistoria della Cina secondo le iscrizioni oracolari della Dinastia Shang - Jaca Book, Milão, 1991.

37- Op. cit. p. 80.

38- Op. cit. p. 247.