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Beleza!
 

Gabriel Perissé
(Mestre em Literatura Brasileira FFLCH-USP
Prof. do Centro Universitário S. Camilo)

"O que, separadamente, nos horroriza,
é muito agradável quando visto no  contexto
da totalidade." Santo Agostinho

 

     — Beleza! — exclamou o engraxate, sorrindo. Ele acabara de receber uma gorjeta do cliente generoso.

     "Beleza" tornou-se hoje uma expressão brasileira popular que manifesta aprovação, verificação de que as coisas estão ocorrendo, enfim, como devem e deveriam sempre ocorrer.

     Bela expressão também, porque igualmente exata, certeira, adequada e iluminadora foi sua escolha espontânea.

     E contra a beleza não há argumentos.

     A beleza é essa luz que jorra de e patenteia uma verdade verdadeira. Luz que nos dá lucidez, clarividência, visão clara e abrangente no claro-escuro e no fragmentário em que nos movemos, aos tropeços.

     Assim como entender uma piada é um ato intelectual — e o riso é a aprovação de que a piada é boa, de que ela corresponde a um fato dissimulado pela "seriedade", pela minha auto-enganação, pelas formalidades e conveniências sociais —, usufruir da beleza (artística ou da natureza, ou mesmo industrial) é perceber uma realidade amorosa e inteligentemente organizada que se revela.

     Rodin é taxativo: "Não há, na realidade, nem estilo belo, nem desenho belo, nem cor bela. Existe apenas uma única beleza, a beleza da verdade que se revela. Quando uma verdade, uma idéia profunda, ou um sentimento forte explode numa obra literária ou artística, é óbvio que o estilo, a cor e o desenho são excelentes. Mas eles só possuem essa qualidade pelo reflexo da verdade." (1)

     A beleza é uma luz que emana da realidade e nos avisa: ultrapassamos (pelo menos por um momento) o contato banalizante e desumanizante com a vida. Mostra-se-nos que há, no núcleo da realidade, um ato de amor que põe as coisas no seu devido lugar — a gorjeta que surpreende, ultra-justiça, graça, gratuidade.

     Essa auto-revelação da vida expande nossa sensibilidade, nossa inteligência, nossa capacidade de amar e de sofrer, de aprender (sabedoria) que também é uma grande lição não entender o mistério, não querer esgotar a inesgotabilidade da realidade. Não esgotá-la, mas por ela ser invadido.

     No outro extremo, não enxergar a beleza é não ver o ser, é des-ver a visão.

     Quando Michel Foucault dizia sentir uma incompatibilidade fundamental entre ele e a realidade, confidenciava também sua limitação estética, e filosófica, a despeito de sua respeitável erudição.

     Quando Sartre, lembrando-se de que Flaubert pedira a Maupassant que se pusesse diante de uma árvore a fim de descrevê-la, considerava o tal conselho absurdo e dizia que Maupassant poderia, no máximo, tomar as medidas do objeto, dado que a árvore sempre lhe negaria o seu sentido, o seu ser — Sartre mostrava-se aqui menos artista do que de fato era. Menos vidente.

     Num ensaio sobre Dante, porém, T.S. Eliot adverte: "No tempo em que as pessoas tinham visões..."

     Os olhos, os ouvidos, a pele do artista são atingidos pela luz, a voz e o toque do ser. Clarice Lispector escrevia à flor da pele e, num dos seus livros, registra com especial clareza a epifania do ser. Sua personagem, Lóri, está à beira de uma piscina, e observa o que lhe rodeia. Subitamente, percebe. Vê as coisas sendo: "Eu estou sendo, dizia a árvore do jardim. Eu estou sendo, disse o garçom que se aproximou. Eu estou sendo, disse a água verde na piscina. Eu estou sendo, disse o mar azul do Mediterrâneo. Eu estou sendo, disse o mar verde e traiçoeiro. Eu estou sendo, disse a aranha e imobilizou a presa com o seu veneno. Eu estou sendo, disse uma criança que escorregava nos ladrilhos do chão e gritava assustada: mamãe! Eu estou sendo, disse a mãe que tinha um filho que escorregava nos ladrilhos que circundavam a piscina."(2)

     Coincidentemente, Guimarães Rosa refere-se a um "quem" das coisas, a um "eu" submerso e sustentador das coisas. E um "eu" que ama, fala, organiza, que nos dá algo mais, que está sendo e está fazendo ser.

     A experiência estética é perceber esta presença, este "alguém" misterioso, este acréscimo, este extravasamento, este acolhimento.

     Certa vez, ouvi de uma moça: "Meu namorado é tão feio, mas tão feio, que chega a ser bonito". Porque o amor não é cego. O artista vê. Quando Picasso diz que o feio é belo, parece dizer que descobriu uma organização mais elevada, em que o desfigurado reencontra seu lugar no cosmos. O inferno dantesco é feio, mas é belo no contexto da Divina Comédia, essa comédia em que o riso amoroso de Deus concilia tudo e a tudo dá o seu destino e função: céu, purgatório e inferno.

     Novamente Rodin: "Mesmo no sofrimento, mesmo na morte de entes queridos e até mesmo na traição de um amigo, o grande artista — e estou me referindo ao poeta, assim como ao pintor ou escultor — encontra a voluptuosidade trágica da admiração."(3)

     O cosmos como um poema (épico e dramático e elegíaco e lírico e cômico e satírico) em que tudo tem lugar, em que o que separadamente horrorizava, repugnava, está agora contextualizado, entretecido, faz sentido, ilumina, é admirável — esta é uma idéia agostiniana: carmen universitatis.

     O texto literário é um produto "têxtil", minuciosamente organizado, um microcosmos em que se articulam, se harmonizam e se complementam dados contraditórios, contrastantes, conflitantes. O contra e o pró. O artista trabalha no sentido de que a realidade total (e sua concomitante beleza) tenha oportunidade de surgir. E esse trabalho é o mais elevado dentre todos. O escritor, o artista é um combinador. A arte de combinar o céu e o inferno, e de fazer que vejamos entre eles um vínculo superior, inteligente — visão que nos torna lúcidos.

     A beleza é a luz que se projeta quando se opera um contato orgânico, vivo, entre o eu e o outro, entre o homem e o mundo, entre o mundo e o divino. Quando se descobre a organização profunda, a união harmoniosa e equilibrada das diferenças, a união entre o sensível e o meta-sensível, o diálogo entre o certo e o errado, entre o amor e o ódio, entre o tudo e o nada: mostrando o sentido que há nisso tudo, o lugar que tudo isso ocupa na ordem geral do ser.

     Splendor ordinis, antiga definição de beleza, é o brilho intenso que emana da ordem, ordem no sentido de um campo de harmonização das coisas contrárias. Ordem, etimologicamente, refere-se a urdir. Ordenar é urdir, tecer, tramar, entrelaçar, estruturar. A teia da aranha, bem ordenada, simétrica, inteligente, obediente e improvisadora, ordem frágil mas eficiente, é bem esse texto forte e delicado, belo e terrível, em que as realidades da vida e da morte se entrelaçam harmoniosamente. Aliás, a poeta norte-americana Emily Dickinson comparava a obra do artista com a teia da aranha. E o leitor, ao apreender a urdidura (e nela ser apreendido), vê a ordem implícita do real, na beleza.

     Um poeta catalão, tecendo um poema sobre a teia de aranha, entrevê "a arte da aranha [que] urde com luz de seda", e, depois que a chuva e o sol incidem sobre a teia, como "cada gota nos fios encerra o mundo."(4)

     Mas é preciso saber ver para ver o saber que há implícito, estruturante, doador de sentido, na realidade.

     Por exemplo: um escritor fala de seus amigos, e escreve: "Sim, tive amigos que morreram e estão vivos, e outros que estão vivos e morreram". Brincando com as palavras, a aranha arma seu tecido, dispõe em forma de cruz (a imagem é a da letra grega X — khi, e daí a figura de estilo em questão chamada quiasmo, "cruzamento") o que tem a dizer (sua cruz, sua solidão), e diz uma total verdade, que provoca uma contagiante alegria cognoscitiva/emocional/amorosa.

     "A ordem provém da vida e não a vida da ordem" (mais um quiasmo, esse de Saint-Éxupéry). A vida é a harmonização, aproveita a desorganização e lhe confere uma função até então desconhecida. O sofrimento torna-se sinal de amor. As chagas de Cristo foram incorporadas e transfiguradas pela ressurreição. Tornaram-se sinais de beleza e vitória. A cicatriz é a harmonização da dor. O Artista transformou a morte em vida, o demônio em colaborador, a cruz-tortura no símbolo da esperança. Cristo é essa aranha que reconstruiu a teia do universo esgarçada pelo pecado mortal contra a beleza. E que cicatrizou a ferida que o homem fez contra si mesmo quando arrancou-se (tão pouco habilidoso) do cosmos.

     Outro exemplo. Um poema de Orides Fontela:

Adivinha(5)

O que é impalpável
mas
pesa

O que é sem rosto
mas
fere

O que é invisível
mas
dói.

 

     A mão poética vai compondo o tecido para fazer eclodir o sentido das coisas: a lógica na ilogicidade, a dor, a ferida e o peso no invisível, no impalpável, no impessoal. O que é o que é? Quem ousa adivinhar? Quem ousa ser o homo divinus a quem os deuses concedem o dom de adivinhar, de perceber a ordem divina que coordena, que sintoniza, que harmoniza tudo?

     Pois é vocação do homem adivinhar, entender tudo, toda a sinfonia, como um deus, à luz da beleza. E como dizia o poeta Caetano Veloso: "gente é pra brilhar, não pra morrer de fome".

     Contudo, é também evidente que estamos famintos, sedentos, gagos, rotos, feridos. Feridos pela desumanização, pela mente obscurecida, pela velhice implacável, pela ação deformante das doenças, da mesquinharia, da insensibilidade, do mau gosto, que nos enfeiam. Estamos estilhaçados, truncados. Estamos cegos, coxos, surdos, amputados, mancos. À deriva. Não conseguimos ver o invisível, o ser. Embrutecemo-nos. Não temos discernimento. Fazemos o que já disseram de alguns jornalistas: que sabem distinguir o joio do trigo, e publicam o joio.

     Sofremos muitas vezes da falta de experiência da beleza: apeirokalia, definia Aristóteles.

     Uma pessoa que estivesse privada de ouvir boas piadas correria o risco de viver continuamente de mau humor. Uma pessoa que estivesse privada da visão, da experiência da beleza correria o risco de morrer como pessoa, de afundar-se na animalidade, numa visão apenas utilitarista das coisas.

     Porque os animais são belos mas não são sensíveis à beleza. O gato ouve o pássaro cantar e sente prazer porque talvez possa comê-lo, só por isso, mas a pessoa humana ouve o pássaro pelo gosto de ouvir, de saber e reconhecer que é um pássaro, de compreender que está ali um verso (o gato é outro verso) do Poema cósmico.

     A mão de Cristo-poeta, mão chagada e cicatrizada, é o símbolo da nova criação, do novo Poema, do novo ser humano, ferido e reintegrado. Cristo ensina o amor à beleza: filokalia.

     Emerson, pensador norte-americano, dizia detestar apertar a mão de um homem por trás da qual não houvesse um homem inteiro. Apertos de mãos enganadores e decepcionantes. Porque, infelizmente, estamos destinados à perda da mão. Ou à deterioração, à corrupção, mesmo com as duas mãos. Mas também estamos destinados à integralidade. Queremos ser pessoas íntegras.

     Uma pessoa mutilada está feia. Precisa ser reintegrada a si mesma e ao conjunto das coisas. Está malfeita. Ou desfeita. Tem um defeito. Uma pessoa sem a mão direita, por exemplo. Perdeu-a. Sente falta desse membro, e todos conhecem a sensação que o mutilado experimenta de sua mão (membro-fantasma é assim chamado) estar ali. Ele tenta coçá-la às vezes, mas nada encontra.

     Belo é o formoso, isto é, o que tem forma. Falta beleza e firmeza ao deformado, falta-lhe o influxo total da causa organizante, do princípio do ser, da força vivificadora. Falta-lhe a paz, que vem da tranquilitas ordinis, a dinamicidade organizada, quando todas as partes de um todo consurgem, convergem ao mesmo tempo para uma mesma finalidade.

     O homem está mutilado. Está manco, está fraco, não consegue dominar as forças destruidoras que se desencadearam ao seu redor e dentro de si mesmo — a morte, o nauseante, o medo, a traição, o apodrecimento. Perdeu a mão criadora, o mais nobre de todos os membros — organum organorum, o órgão dos órgãos, que tudo organiza.

     Então entra em cena o Artista. O "quem" das coisas, a Pessoa que fez tudo, o Logos formante, a mão criadora de Deus vem restituir o destituído, a aranha zelosa vem recosturar o tecido de todas as coisas. O Homem-Deus (Cristo crucificado/ressuscitado) é fons universae pulchritudinis, fonte da beleza de tudo, como diziam os antigos. E a multidão se aproxima dEle, trazendo consigo os erros da natureza: coxos, cegos, mudos, mancos, e os estendem a seus pés, e Ele os cura, restitui-lhes a integridade e a agilidade (cf. Mt 15, 30). E a multidão admira-se, vendo que os mudos voltam a falar, os coxos a andar, os cegos a ver e os mancos a ter mãos para trabalhar, dar carinho, escrever, esculpir, pintar, tocar instrumentos musicais (cf. Mt 15, 31).

     O homem perdeu a mão, ou ela se atrofiou horrendamente, pois a utilizou mal, colheu com ela o fruto do orgulho, do isolamento, da auto-suficiência, quis roubar do jardim das delícias (das belezas) o que não era de sua exclusiva autoria. Em suma, deu uma "mancada". Mas o que a mão humana enfeou (enfeando-se), outra mão humano-divina veio embelezar: Pater diligit Filium et omnia dedit in manu eius (Jo 3, 35): o Pai deixou tudo nas mãos do seu amado Filho. E o Artista encarregou-se de restaurar a obra de arte.

     Na realização incansável de sua tarefa artística, Cristo entrou numa sinagoga e viu um homem com a mão direita seca — arida (cf. Lc 6, 6). Teria sido este homem um escultor, um artesão, um lavrador? A mão encontra-se atrofiada, estéril, improdutiva. Cristo pede-lhe que ele a estenda, e a mão lhe é restituída.

     A forma formante dá beleza ao que era asqueroso, ao que estava ferido — asco liga-se à escara, ferida escura, que causa nojo. A ferida, no entanto, é cicatrizada com perfeição.

     A mão criadora recria a mão criatura. A propósito, handsome, em inglês, é hand + some = próprio de uma verdadeira mão, maneiro, vistoso (agradável à vista), bonito, elegante, nobre, generoso, magnânimo. A mão do artista cria o encantador, o airoso, o amável, o primoroso, o well-looking, o que é bom de ser visto, ouvido, tocado, lido, experimentado.

     A nossa vocação para recriar o poema, o quadro, a melodia do mundo é vocação de criatividade metafísica. Boileau dizia que, graças ao poeta, o monstro odieux agrada nossos yeux. A rima harmoniza, é um milagre que podemos fazer, desentranhando um novo sentido, uma nova sonoridade da voz humana reduzida ao grito da dor, do ódio e do asco.

     A filocália, a arte, a beleza combatem o tédio da vida, decorrência emocional da falta de compreensão do mundo. Ensinam-nos a ver, mais ainda: a desvelar e a contemplar. Outra vez, Rodin: "A Beleza está em toda parte. Não é ela que falta aos nossos olhos, mas nossos olhos que falham ao não percebê-la."(6)

     Privar-nos da beleza é um enterrar-se vivo. É negar nossa própria capacidade de transcendência e de encontro com o Todo. John Keats, ampliando ao máximo a consciência estética, chega a equiparar cada vida humana a uma contínua alegoria ("e pouquíssimos olhos conseguem ver esse mistério", enfatiza), uma vida que é uma história simbólica, figurativa, cheia de alusões, profecias e mistérios, como a Sagrada Escritura.

     Segundo o folclore judeu, Deus criou o homem para que este Lhe contasse belas histórias, fosse para Ele um romance, um filme, uma peça de teatro. Somos artistas que devem prolongar a beleza da vida. E quando falhamos, é Cristo-artifex, é a Palavra mesma quem vem "dar um jeito" na feiúra, na história mal contada. Vem reintegrá-la, transformando-a, vem trazer a paz da nova urdidura, tornar-se intérprete entre o humano e o divino.

     Porque "intérprete" significa justamente isto: aquele que está entre as partes, para uni-las, fazer que se compreendam, que se ouçam e se vejam, que se abracem e se beijem, para sempre.


1- Auguste Rodin. A arte. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, pág. 73.

2- Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, págs. 75-6.

3- Auguste Rodin. Idem, pág. 36.

4- Francesc Faus. A roda e o vento. São Paulo, Editora Giordano, 1995, págs. 12 e 14.

5- Teia. 2a ed., São Paulo, Geração Editorial, 1996, pág. 42.

6- Auguste Rodin. Idem, pág. 92.