O Não-Atuar

 

Antonio J. Bezerra de Menezes Jr.
(Graduado em Chinês pela FFLCH-USP)

 

Tratamos aqui muito brevemente de um dos temas mais caros ao pensamento chinês clássico: o wu wei, literalmente não-atuar. O não-atuar, longe de ser confundido com o não fazer nada, assume um valor ético na cultura chinesa. Autores como Confúcio (551-479 a.C.), Laozi (séc. VI a.C.) e Zhuangzi (c.370-c.300 a.C.) consideravam o não-atuar como fundamental para ordenar o Estado:

"Por não-atuar (wu wei) e ainda manter o Estado bem governado Shun foi único! Que fez ele? Apenas fez-se reverente e corretamente ocupou seu trono real" observa Confúcio. "Atuando o não-atuar (wei wu wei) então não há desgoverno" resume Laozi.

A seguir, traduzimos um importante texto de Zhuangzi no qual ele articula os temas trabalho, felicidade e não-atuar:

"Há debaixo do Céu uma felicidade perfeita que possa fazer o homem viver? E para conseguir tal felicidade é necessário apoiar-se em quê? E que se deve evitar? Que esperar? A que achegar-se? De que afastar-se? Que se deve amar? Que se deve odiar?

O mundo preza riquezas, honrarias, longevidade, vantagens; deleita-se com bem-estar físico, com boa comida, com belas roupas, com belas cores e com música; o mundo despreza pobreza, obscuridade, morte prematura e má fama. Os homens consideram experiências amargas as privações do bem-estar físico, de boa comida, de belas roupas, de belas cores e de música. Quem não consegue tais coisas afligi-se e preocupa-se. Esta atitude é insensatez também em relação ao corpo.

O rico amarga sua vida pelo trabalho intenso, acumula mais dinheiro do que possa gastar. Suas ações alienam-se do bem-estar do corpo. Dia e noite a pessoas [nobres] pensam ansiosamente no bem e no ruim de seus atos: assim agindo prejudicam seu prórpio corpo. O nascimento do homem é concomitantemente o nascimento de suas penas; se vive demasiado, caduca e angustia-se por sua morte tardar. Este estado é muito distante do bem-estar do corpo. O herói que se sacrifica por seus semelhantes é considerado bom, mas sua bondade não é suficiente para conservar-lhe a vida. Não sei se a bondade que se lhe atribui é verdadeiramente boa ou má. Se tal bem é bom como é que tal não pode conservar-lhe a vida? Se tal bem não é bom, como admitir então que o herói possa salvar a vida de outros homens?

Assim foi dito: ‘Se teus justos conselhos não forem ouvidos, então repouse, deixe as coisas correrem e não dispute mais’. Todavia Zi Xu lutou a tal ponto que foi supliciado; não houvesse lutado, sua glória não teria sido perfeita. Foi um bem? Um mal? A massa é compulsivamente impulsionada a uma certa felicidade, não sei porém se se trata de autêntica ou patológica felicidade. Aquilo que torna a massa feliz, aquilo pela qual a maioria se esforça, como se não pudesse fazer de outra maneira, a isto todos chamam de felicidade. Mas não sei se se trata de felicidade ou não. Tal felicidade existe ou não?

No não-atuar (wu wei), segundo meu parecer, reside a felicidade. Mas todos consideram o não-atuar o maior dos sofrimentos. Assim foi dito: ‘A suprema felicidade carece de felicidade; a glória suprema carece de glória’.

O verdadeiro e o falso não podem ser definidos, mas o não-atuar permite determinar o verdadeiro e o falso. Se a felicidade suprema é fazer viver a pessoa, só o não-atuar conserva a existência. Que se me permita explicar-me: o Céu não atua, eis o porquê de sua limpidez; a terra não atua, eis o porquê de sua estabilidade. Assim ambos ajustam-se ao não-atuar, mas graças aos mesmos todas as coisas se transformam e são produzidas. Fugazes, inacessíveis, nada perceptível deles se origina, mas dos mesmos nascem todos os seres e cada qual tem sua própria colocação ordenada. Assim foi dito: ‘o Céu e a Terra nada fazem e não há nada que não façam’. Mas entre os homens, quem está nas condições do não-fazer?"

Depreende-se do texto que por não-atuar entende-se uma atitude de desprendimento e sacrifício. No Evangelho de São João temos uma dimensão exata do que isso significa:

"O que ama a sua vida, perdê-la-á: E o que aborrece a sua vida neste mundo, conserva-la-á para a vida eterna". Jo 12,25

Mas por estranho que possa parecer, esse tremendo não-atuar está na ordem do repouso. O filósofo alemão Josef Pieper, em seu livro Felicidade e Contemplação: Lazer e Culto, lembra que na Idade Média ensinava-se que:

"a ausência de repouso, a incapacidade de repousar, está em íntima relação com a preguiça; o trabalho irriquieto provém da preguiça (...) Para os antigos ‘preguiça’, ou ‘acídia’, quer dizer antes de mais nada que o homem se nega a admitir o ideal de que depende sua dignidade; que o homem não quer ser o que Deus dele quer, aquilo que em última análise ele é."

Também vale lembrar que as Confissões de Santo Agostinho (354-430) começam justamente no momento em que toda a agitação se converte em repouso:

"Sois grande, Senhor, e infinitamente digno de ser louvado. É grande o Vosso poder e incomensurável a Vossa sabedoria. O homem, fragmentozinho da criação quer louvar-Vos ... Vós o incitais a que se deleite nos Vossos louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós."

Portanto, o paradoxal "atuar o não-atuar", expressão típica da voz média, significa que o indivíduo não deve agir separado de Deus. Em termos práticos, a dignidade do trabalho não reside no esforço que se aliena ou resiste a Deus, mas que coopera com Deus, como na máxima beneditina Ora et Labora.

Bibliografia

Chuang Tzu - The complete works of Chuang Tzu (translated by Burton Watson). New York, Columbia University Press, 1970.

De Bary, Wm. Theodore (ed.) - Sources of Chinese Tradition. New York, Columbia University Press, 1963.

Lao-tsé - Escritos do Curso e Sua Virtude (Tao Te Ching). Tradução de Mario Bruno Sproviero. São Paulo, Mandruvá, 1997.

Pieper, Josef - Felicidade e Contemplação: Lazer e Culto. São Paulo, Herder, 1969.

Santo Agostinho - Confissões. São Paulo, Nova Cultural, 1996.

Song, Huang Qin - Zhuangzi Duben (Compêndio de Zhuangzi). Taipei, San Min Shu Ju, 1972.