A Ética do Jornalista,
o Outro Lado da Questão

 

Claudio Thomas
(Editor-chefe do Pioneiro,
o diário de integração
regional da Serra gaúcha)

''A função da ética
É eclética.
Seu objetivo maior
Sua ambição principal
É impedir que tudo vá de mal em pior
E vá de pior em mal''.
Jornalista Millôr Fernandes,
no livro Millôr Definitivo,
a Bíblia do caos

Cena 1

Quatro repórteres de jornais concorrentes conversam em um restaurante do centro de Maceió, depois de um estafante dia de cobertura sobre as irregularidades ocorridas no governo do Estado de Alagoas. Todos já cumpriram suas atividades. A discussão à mesa gira em torno dos desmandos praticados pelo governo, com o desvio de recursos públicos para contas de integrantes da administração alagoana. Os jornalistas condenam os envolvidos. Sem perdão.

Cena 2

Três horas depois de iniciada a discussão, os jornalistas chamam o garçom e pedem a conta das despesas, dividida por quatro pessoas e notas fiscais para todos.

O garçom (outra cena comum em restaurantes dos quatro cantos do país) questiona:

''As notas devem ser no mesmo valor da divisão?''.

Dois repórteres disparam:

''Não pode ser em um valor 50% superior''?

Os outros dois profissionais pedem as notas fiscais com o mesmo valor da divisão.

Os jornalistas deixam o restaurante convencidos de que realizaram mais um grande trabalho para os seus veículos. O procedimento dos dois colegas não merece nenhum comentário.

O caso é hipotético, mas pode ser aplicado em qualquer região do país. Infelizmente. A maioria dos jornalistas considera como normal o ato de ''solicitar'' notas fiscais e recibos de táxi com valores superiores aos efetivamente gastos. Geralmente justificam a ação com o argumento de que os jornais pagam salários baixos.

É a política da compensação individual.

Trata-se, na verdade, de um ''roubo'' praticamente institucionalizado em pequenos atos que comprometem o comportamento ético dos jornalistas e que podem respingar na essência do trabalho profissional na busca de informações.

O professor Vitorino Félix Sanson, no artigo "Ética Estóica", publicado no livro Ética e Trabalho, diz que ''ética não é uma ciência mecânica, não é técnica que se aprende, põe-se a funcionar e funciona. Nem é ciência, como a lógica, voltada para a inteligência: aprende-se, põe-se em prática, é eficiente''.

Segundo Sanson, ''a ética dirige-se à vontade, ao âmago do ser humano, à consciência. Mais do que ciência, ética é sabedoria. Supõe o saber, mas é o que fica quando se esquece tudo o que se aprendeu. Permanece o caráter, o hábito, que se for bom, é virtude''.

O caso dos jornalistas foge ao ''controle'' estabelecido pelos manuais de ética e redação concebidos por jornais no início da década de 90, período marcado pela faxina moral verificada no Brasil, principalmente depois do episódio de impeachment do então presidente Fernando Collor e da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Anões do Orçamento na Câmara dos Deputados.

Os manuais dos jornais tratam do comportamento dos jornalistas diante da busca das informações. O Globo em seu manual prega que ''as exigências éticas não prejudicam a prática do jornalismo; ao contrário, elevam a qualidade da informação. Pode ser frustrante perder a foto dramática do menino delinqüente ou a saborosa notícia não confirmada da indiscrição do ministro. Mas, se a decisão de não publicar isto ou aquilo foi determinada por genuína preocupação ética, não existe prejuízo real: o que está se desprezando é informação ilegítima marcada por sensacionalismo, irresponsabilidade ou manipulação dos dados''.

Na apresentação do manual de Zero Hora, Augusto Nunes - então diretor de Redação do jornal - destaca que a adoção de um código de ética, por si só, não imuniza nenhum jornal contra o risco de protagonizar deslizes, escorregões ou mesmo delitos graves. ''Mas sempre reduz a incidência de casos de má-fé e reafirma o compromisso de agir corretamente. Sobretudo comprova a disposição de revogar a crônica impunidade assegurada há tantas décadas pela omissão dos chefes e pelo corporativismo dos jornalistas'', salienta Nunes.

Os manuais não orientam como deve ser o comportamento dos jornalistas fora da atuação profissional. No hotel, no restaurante, no táxi, etc. Afinal, não há necessidade para isso. As atitudes são marcadas pela postura ética individual. Não serão manuais, códigos e outros documentos que moldarão este comportamento.

O professor Vitorino Félix Sanson afirma que ''a ética procura princípios que dirijam a consciência na escolha do bem e concentra sua atenção na vontade humana (como a lógica na inteligência), porque o objeto da ética é o ato humano, e o ato humano é produzido pela vontade''.

O ato de acrescentar valores às despesas não é restrito ao mundo do jornalismo. Uma pesquisa da Industry Week com 1300 gerentes de nível médio em empresas de portes médio e grande dos Estados Unidos revelou que as respostas dos gerentes de nível médio a perguntas éticas diretas refletem uma virtude pura e firme típica de escoteiros e clérigos. No entanto, quando as perguntas penetram em áreas cinzentas onde as lealdades, as metas e o desejo de ser honesto não coincidem, as racionalizações acerca de comportamentos duvidosos começam a afetar as decisões.

O analista de tendências do mundo John Naisbitt, autor do livro Paradoxo Global, diz que ironicamente, ao se perguntar aos entrevistados se haviam mentido ao responder qualquer uma das perguntas da pesquisa, 5% admitiram tê-lo feito, não obstante o fato de a pesquisa ter sido voluntária e anônima.

Ao lhes ser perguntado se já haviam subtraído algo com valor superior a US$ 25 de sua empresa, 4% responderam que sim e outros 4% que o haviam feito repetidamente. As respostas a outras perguntas da pesquisa, observa Naisbitt, deram a entender que contar ''mentirinhas'' era eticamente tolerável, assim como ''tomar emprestado'' materiais da empresa ou ''exagerar as despesas em uma prestação de contas''.

Fica, então, uma indagação. A atitude do jornalista que pede notas fiscais e recibos com valores superiores aos efetivamente pagos influencia ou não no trabalho desempenhado pelo profissional na produção das informações? Ou nesse caso o que vale é a ética do jornal, com a aplicação dos manuais de redação e ética, onde estão sacramentados os mandamentos da atuação do jornalista para a realização do seu trabalho.

É o comportamento individual em confronto com os valores estabelecidos pelo grupo.

A disseminação dos conceitos estabelecidos pelos manuais deverá contribuir, a longo prazo, para mudar esse comportamento individual. O professor Sanson observa que a ética procura um pensamento que tenha valor absoluto de verdade. ''Procura um querer e um agir que tenha valor absoluto de bem. Os valores singulares são necessariamente históricos e relativos. O singular pode ser verdadeiro, mas não é a verdade; pode ser bom, mas não é o bem''.

O jornalista colombiano e prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez considera confortador acreditar que as transgressões éticas - assim como outros problemas que hoje envergonham o jornalismo - não são necessariamente o resultado de imoralidade, mas sim da inépcia profissional.

Diz Márquez: ''É possível que o problema das escolas de jornalismo seja que, mesmo ensinando coisas úteis para a profissão, elas ensinam pouco sobre o ofício em si. Não que elas devam abandonar seus rumos humanísticos, mas apenas segui-los com menos ambição e urgência, sempre expandindo a base cultural da qual os alunos carecem quando deixam o segundo grau''. Para García Márquez, a ética profissional não é uma condição ocasional do ofício, mas algo intrinsecamente ligado a ele, como carne e unha.

Ética é postura. As vezes, jornalistas dão sinais de esquecer essa regra básica do caráter individual. Nesse caso, aplica-se bem a questão de que ''o homem é um ser que esquece''.

O professor da Universidade de São Paulo, Luiz Jean Lauand, no artigo "Educação e Memória", publicado no livro Medievália (São Paulo, Mandruvá, 1997), salienta que a missão profunda da educação não é a de apresentar-nos o novo, mas algo já experimentado e sabido que, no entanto, permanecia inacessível: precisamente o que se expressa com a palavra lembrar. ''Claro que ao afirmar o caráter esquecediço do homem, não estamos dizendo que ele se esqueça de tudo, mas, principalmente - e é até uma constatação de ordem empírica - do essencial'', reforça Lauand. Na verdade, observa ele, o homem lembra-se de muitas coisas, como a data do depósito bancário, da final do campeonato e de comprar suas coisas preferidas. ''Esquece-se, sim, da sabedoria do coração, do caráter sagrado do mundo e do homem''.

Trata-se de um comportamento com dupla personalidade.

Será? O jornal obriga o jornalista a ter atitudes éticas no desempenho de sua função, geralmente cumpridas. Os escorregões nas fraudes das notas fiscais seriam uma forma de vingança contra essas normas? São perguntas sem respostas.

Afinal, como destaca o professor Sanson, para julgar o aspecto moral dos atos humanos é preciso ser portador de critérios, de princípios e normas, que sirvam para distinguir o bem do mal, o justo do injusto, a virtude do vício.

Resta esperar que nasça uma nova postura.