A Responsabilidade dos Jornais
Além das Redações

Marta Gleich
(Editora-Chefe do Zero Hora
de Porto Alegre)

O ser humano melhora ou piora com o passar dos séculos? Se pudéssemos pôr de um lado todo o mal do mundo e, de outro, todo o bem do mundo, para que lado penderia hoje a balança? Madre Teresa de Calcutá puxaria o ponteiro para o bem. Pol Pot, o líder comunista que matou pelo menos 1 milhão de cambojanos, para o mal. Mas o ser humano comum, eu, você, essa pessoa que está aí do seu lado, está melhorando ou piorando?

Quanto há de Madre Teresa ou de Pol Pot em cada um? Somos melhores ou piores do que há 10 anos?

No Brasil, nos últimos tempos, está ocorrendo algo que se rotulou uma "cruzada ética". Somos todos contra a morte de meninos de rua. Desenvolvemos total ojeriza à corrupção na política. Denunciamos atentados contra a liberdade e os direitos humanos. Somos a favor da cidadania, do desenvolvimento sustentável, da democracia. Somos contra as discriminações e a violência. Estamos mesmo melhorando? Como se explica que consigamos dormir depois de ver uma criança dormindo na rua? Que espécie de ser humano é esse que dorme o sono dos justos sem se dar conta de que é co-autor da miséria e da injustiça? Como é que se explica este clamor feroz contra a corrupção e um clamor apenas pálido contra a miséria, só para continuar no mesmo assunto? Por que escolhemos a corrupção e não a miséria? Por que CPI dos Precatórios é manchete de jornal e uma criança dormindo na rua não é? Qual dos dois é mais grave? Qual dos dois deveria pesar mais?

Ainda há poucos anos, era até aceitável se votar em um político do tipo "rouba, mas faz". Hoje não é mais. Evoluímos. Corrupção virou assunto do dia no elevador e no Jornal Nacional. Haverá um dia em que nossa ética coletiva se sinta desconfortável com uma criança dormindo na rua? Compraremos um dia jornais com esta manchete? Difícil dizer. Dá mais ibope noticiar a solidão da ariranha azul do que o abandono de meninos brancos ou negros.

O ser humano é engraçado. Evolui por etapas, por setores. Ninguém diz isso, mas na prática andamos desse jeito: "A corrupção me dá engulhos, mas convivo bem com a miséria". Que ser destroçado e esquizofrênico é este? Por que não conseguimos pender a balança para o bem por completo?

De quem é a responsabilidade? Ah, deve ser do governo. Gente comum como eu e você não tem nada a ver com isso. Ok, não dá para sair catando crianças na rua e levando para casa. Ninguém vai resolver sozinho o abandono de meninos e meninas. Mas, coletivamente, onde estamos colocando nossas forças? E, mesmo individualmente, qual a irresponsabilidade de cada um?

A responsabilidade da imprensa nesta balança desequilibrada é importante. Que espécie de jornalistas temos sido? Ao escolher este ou aquele assunto, levamos em conta nosso papel social?

Os jornais têm de desenvolver um forte compromisso com a melhoria de suas comunidades. Não se trata de opinar ou de fazer reportagens tendenciosas. Trata-se, isso sim, de ouvir o clamor dos leitores. Os cidadãos que lêem jornais não querem 80% de problemas e 20% de soluções.

Eles não querem morte, querem vida. Não querem saber apenas que as escolas estão caindo, querem discutir o que se ensina na escola. Mas não os estamos ouvindo. É preciso ter coragem para produzir jornais que façam a balança pender para o bem. Implica sentir-se responsável pelo que ocorre na rua. Significa mudar a postura nos repórteres e editores. Quer dizer escolher, nas reuniões de pauta, assuntos e enfoques bastante distintos dos que elegemos hoje. Pressupõe optar por uma manchete diferenciada dos demais jornais.

Chegou o momento de expor, nas páginas, a sociedade que os cidadãos querem. De deixar a realidade invadir as redações. De promover a cidadania. De sermos o porta-voz de nossas comunidades.

O jornal tem que mostrar os bons exemplos. Tem que dar as boas notícias. Tem que educar e contribuir. Isso não significa perder a independência, optar por um dos lados da história ou fazer páginas cor-de-rosa.

Ou mudamos de postura e fazemos o jornal-cidadão ou continuamos fazendo de conta de que não temos nada com isso. Esquecemos o menino lá na rua e fingimos que dormimos bem.