A Libertação da Liberdade de Amar

 

Alípio Maia e Castro(1)
(Bacharel em Direito - Univ. de Coimbra
Doutor em Dir. Canônico - Univ. Tomás de
Aquino de Roma)

 

Uma vez por outra, ouve-se dizer que "tudo o que se faz por amor é bom": frase equívoca em que, com artes mágicas bastante grosseiras, se pretende identificar o amor com a bondade, quando de fato são realidades distintas, se bem que interdependentes. Recordo penosamente o caso de uma senhora que, numa das sessões do seu tratamento psiquiátrico, matou com dois tiros à queima-roupa o malogrado psiquiatra que a tratava. Numa entrevista que concedeu à imprensa, a caminho do presídio, essa pobre senhora declarou, além do mais, que "só por amor" o tinha matado.

Todos sabemos que uma das falácias que mais costumam andar ligadas a explicações deste jaez, reside na falsa idéia que associa, como momentos ou membros de um amor que não é amor, toda uma série de paixões ou sentimentos que, se falássemos com mais rigor, tomaríamos por egoísmo - exatamente aquilo que de frente se opõe ao amor, no pólo oposto: ânsia de posse, impulso irresistível, ciúme doentio e tantas outras paixões egoístas que preferimos esconder num generoso etc.

Mas, independentemente desta breve observação empírica, que seria já de si suficiente para deitar por terra aquela asserção estouvada que citamos linhas acima, o que deixamos de notar ou nos esquece é que, em virtude do pecado original, toda a natureza humana está corrompida; e não se vê razão para que escape ileso a essa mancha aquilo que, precisamente, está no âmago de tudo o que é humano: o amor. Também no amor se faz sentir a inclinação para o mal, apanágio dos filhos de Adão, herança dolorosa do pecado original.

Sim, na Revelação cristã, declara-se que Deus quer salvar o que está perdido. Ora, é exatamente o amor humano que está perdido: porque, sem liberdade, é impossível amar; e o homem viciado pelo pecado carece dessa liberdade sem a qual lhe é impossível amar.

Torna-se extraordinariamente instrutiva neste sentido a verificação da rapidez com que encontrou eco no linguajar civilizado a expressão amor livre. Esse "amor livre" não é livre: e, na mesmíssima proporção, não é amor. Bem sabemos: esse amor torna-se "livre" em relação a todas as leis; mas fica escravo do egoísmo que nele ressumbra por todas as paixões. Nesse suposto amor, que, como tal, só por um abuso de linguagem entrou a fazer parte da Civilização, o que se costuma fazer é narrar o princípio breve dessas falsas núpcias, porque, ordinariamente, só "corre bem" o princípio da festa ou, se se prefere, a festa do princípio duma ligação de pouca dura, lançando-se sobre o "depois" um véu de silêncio curiosamente pudibundo.

O que mais importa, na perspectiva por nós aqui adotada, não é tanto salientar as desgraças causadas pelo chamado amor livre, como frisar a sua impossibilidade. Digo-o propositadamente, até aqui, de um modo confuso. É que, infelizmente, o vírus destruidor do amor livre é o mesmo que se instalou na alma de todos os nubentes que se receberam no altar, perante a testemunha qualificada imposta pela Igreja Católica.

O estofo de que são feitos os esposos não difere daquele de que estão feitos os solteiros. Perante o Deus que se fez homem não há senão pecadores: "Eu não vim chamar os justos, mas sim os pecadores"(Mt 9, 13). Ninguém se atreveria a brincar com esta frase de Cristo, à maneira dos fariseus da época, supondo que, no mundo, esses "pecadores" constituem, a par dos "justos", uma classe social... Quando nos faz saber pela pena do escritor sagrado, que "quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade" (I Tim 2, 4), afirma, não implícita mas explicitamente, que todos - incluídos aqueles "justos" - são pecadores. Por isso digo e repito aqui a consideração mais elementar desta questão: o amor humano é impossível sem essa intervenção de Deus que tradicionalmente chamamos "graça". Neste sentido convém, julgo mesmo ser até certo ponto necessário, afirmar que a palavra "redenção" é sinônimo de libertação e de salvação. Só que, no pensamento de Cristo, trata-se sempre de libertar os homens do pecado (e, por conseguinte, de todo o egoísmo, presente em quaisquer pecados: sem dúvida, em todos os pecados de injustiça - não pagar o salário justo, explorar o semelhante submetendo-o a um regime de escravidão, trabalhar mal por negligência culposa, que vem a prejudicar o patrão; mas também, além do mais, no egoísmo que origina as desavenças graves entre marido e mulher, no desleixo quanto à educação dos filhos, nas relações conjugais em que um ou ambos os cônjuges reduzem conscientemente o coito à busca de um prazer sexual, no que explica o desleixo quanto à educação dos filhos, na irresponsabilidade com que os cônjuges deixam de cumprir a sua missão, evitando a geração de filhos sem motivo grave para tanto, etc.).

Queremos dizer, em suma, que, no desígnio do Criador, se encerra, por assim dizer, um projeto de vida, que implica a superação progressiva do egoísmo, no cumprimento de uma vocação cuja realização é impossível às simples qualidades naturais do homem, tal como o conhecemos. A este propósito, não gostaria de que passasse despercebido um fato único e exclusivo do cristianismo, exposto em todo o seu alcance: o fato de que, no seu projeto de vida, o Deus-Homem não se limita a aparecer para ser modelo: chama o homem a compartilhar a sua própria vida divina.

Sem nos guindarmos a altos e profundos conceitos teológicos, podemos dizer, com efeito, que as qualidades naturais do ser humano ficaram tão corrompidas que, com toda a fraqueza de um espírito obtuso, o indivíduo que, por exemplo, é vítima da paixão da luxúria, por se habituar a ceder ao impulso sexual, perde pouco a pouco a capacidade para se dar a si mesmo, a capacidade de atingir o dom de si mesmo, que procede do núcleo íntimo do seu livre-arbítrio. Escusado será marcar aqui, com mais delongas, a diferença que há entre ceder e dar-se... A gravidade dos chamados pecados de luxúria, não está tanto no perigo das doenças venéreas ou nesse perigo que se anuncia na imprensa com a sigla AIDS, nas calamidades letais, deixadas pelo vírus HIV numa rota devastadora; não está tanto nisso como na ruína do livre-arbítrio, indispensável para que os cônjuges verdadeiramente se doem, se entreguem um ao outro. Na sua vida conjugal, o homem luxurioso não tem liberdade para amar; em vez de amor, o que se verifica na sua vida íntima é uma sucessão de fraquezas: "A atração mútua, dom próprio do Criador, converte-se em relação de domínio, sobrevêm os agravos recíprocos" (2). Limitando-se progressivamente a ceder ao impulso sexual, o varão tende a contentar-se com a posse da mulher; e esta, por sua vez, vê-se tratada como uma coisa, como um objeto que fica talvez mais abaixo do que o chamado objeto de estimação. Já não há um bem-querer, porquanto esse querer procede da vontade que logra servir-se do corpo em ordem à comunhão entre os esposos, ao passo que, dentro da luxúria, há apenas um instinto a arrastar um corpo de alguém que se contenta com gozar.

Baseados nos impulsos sexuais, por sua natureza transitórios e vividos no âmbito das sensações, muitos casais dos nossos dias se desfazem logo desde o início, porque desde o início querem apenas gozar-se um ao outro, de modo que, mais cedo ou mais tarde, o que resta é, entre destroços, uma relação de coisas e não de pessoas. O vendaval do sexo sem espírito arrasta as pessoas numa voragem de frustrações e violências. Violência é aqui um termo escolhido muito de propósito: poderá porventura haver maior violência do que servir-se de uma pessoa?

Além disso, poderá em são juízo dizer-se que ama uma pessoa quem, em vez de se doar e se entregar ao outro para formar com ele uma comunhão, busca exclusivamente o seu prazer egoísta, servindo-se e usando de outra pessoa?

Não há intimidade sem doação mútua. E não há tal doação sem livre-arbítrio. E, efetivamente, livre-arbítrio é o que não há entre dois seres que se reduziram à condição de meros instrumentos de prazer, para isso escravizados.

É sempre muito instrutivo ler duma assentada só todo o capítulo 19 do Evangelho segundo São Mateus e, para além do mais que nele evidentemente se contém, centrar a atenção no fato de que Cristo se está referindo à salvação (v. 26), a uma salvação que exige uma liberdade total: em relação ao sexo e em relação aos bens materiais; mas também no fato de que essa liberdade - aqui oculta por trás do termo "desprendimento" - é impossível ao homem. Há aqui como que três impossíveis: a indissolubilidade do matrimônio, que deixou os apóstolos estupefactos, a virgindade ou celibato dos que renunciam ao casamento "por amor ao Reino dos Céus" (v. 12) e, finalmente, o desprendimento das riquezas (que é a pobreza de espírito exigida a todos, ricos e pobres, sem qualquer discriminação ou segregação). Perante o espanto dos seus ouvintes, que não é menor do que o nosso, Cristo, sem arredar pé, garante que esses elementos de salvação são misteriosamente possíveis a quem os recebe: àqueles a quem foi "concedido"... por Deus. Trata-se de uma vida que, por pressupor a graça divina, precisamente por isso, é possível: "Aos homens isto é impossível - frisa Jesus Cristo -, mas a Deus tudo é possível" (Mt 19, 26). Este texto tem-se repetido tanto, tem-se-nos tornado tão familiar, que julgamos ter entendido tudo com rápida facilidade; e talvez não tenhamos entendido nada. Não é despicienda a observação final de Jesus, ao encerrar este discurso tão exigente: "Quem puder entender, que entenda!".

Mesmo correndo o risco de enfadarmos o leitor, queríamos insistir aqui em que Cristo põe no mesmo plano, no mesmo nível de dificuldade, três exigências de comportamento bastante diversas e que, à primeira vista, nenhuma relação têm entre si: o celibato "pelo Reino dos Céus" (que nada tem que ver com a condição forçada ou caprichosa da pessoa meramente solteira); a indissolubilidade do matrimônio; e o desprendimento em face dos bens materiais em geral. Os apóstolos espantam-se das três coisas: entenderam perfeitamente que, tratando-se de três comportamentos tão diversos, algo há neles em comum: todos têm de ser recebidos como dom divino (o que não significa nenhuma passividade ou quietismo por parte de quem os recebe) e, ao mesmo tempo, embora de diferente maneira, todos eles têm uma relação com a salvação.

Trata-se de uma realidade que, naquele instante, os discípulos não saberiam definir, mas que já sabiam vir "do Alto". No dizer de Cristo, a vida a que Ele chama os seus discípulos, pressupõe, em suma, um dom que tem de ser recebido, um dom que é "concedido" a quem o quer receber. Pois bem: em última análise, este dom não é senão a graça santificante ou o que quer que seja que dela procede ou a acompanha; não se fala aqui de nenhum dom natural humano. O que Cristo aqui pede é que os homens vivam numa liberdade superior às suas forças naturais decaídas. Os próprios Apóstolos ficam desnorteados, pelo menos momentaneamente: "Se assim é... quem poderá salvar-se?". Sobre o casamento indissolúvel também não escondem o seu "escândalo": "Se é assim, não convém casar!"(Mt 19,10).

Há uma célebre passagem no Novo Testamento (no capítulo XV do Evangelho segundo São João), em que Jesus Cristo, esse Jesus que alguns pintam com cores românticas, emprestando-lhe um ar compreensivo, condescendente, tolerante, parece mas é franzir o sobrolho e carregar nas tintas, atingindo o galarim da intolerância. Refiro-me àquela tão sabida afirmação, segundo a qual, o homem de tal maneira está perdido que não logra salvar-se sem uma ajuda divina especial: "Sem mim, nada podeis fazer!"(Mt 19, 10).

Assim se compreende por que razão, no âmbito do Novo Testamento não se fala apenas, digamos, de uma liberdade inicial - poder de optar, poder de decidir ou escolher ou começar um empreendimento, mas também e sobretudo de uma liberdade que os homens são convidados a atingir. Está aqui em questão uma liberdade-meta. Bem o entendemos nas palavras de São Paulo: "Vós fostes chamados à liberdade" (Gal 5, 13). Não há Reino dos Céus sem essa liberdade em que é preciso entrar: "Onde está o Espírito de Deus, aí está a liberdade" (II Cor 3, 17). Àqueles que praticam a castidade - solteiros ou casados, ainda que de diversa maneira -, são fiéis à indissolubilidade do matrimônio e se desprendem das riquezas, usando delas para o bem comum - problemas de sexo e dinheiro, poderíamos dizer talvez, em lacônico e charro linguajar de rua, sabedores muito embora de que esses problemas estão longe de esgotar a problemática da existência humana, se bem que isso pareça assim em certas vidas de gente mórbida ou fanatizada -, Cristo fala de uma Liberdade que lhes quer comunicar. Todas as exigências que Cristo faz ao homem têm uma razão de ser: e essa razão é a dádiva que Ele quer conceder. Ele quer conceder uma liberdade que os homens têm de conquistar, mas que só conquistam se voluntariamente se abrem a Deus, ao Dom divino.

No tema que aqui nos ocupa, não seríamos honestos, se separássemos da graça de Deus as soluções. Ousamos dizer mesmo que o malogro do casamento de muitos cristãos procede desta ignorância fundamental, que é ignorar o âmago da vida cristã, a qual, mais ainda do que um pressuposto aperfeiçoamento da personalidade, implica também e simultaneamente o crescimento da vida divina no homem. O que é impossível ao homem em geral, é o que aqui se nos apresenta, mais uma vez, com o cariz de uma impossibilidade nítida: a liberdade dos filhos de Deus. Estamos perante um fato fundamental do cristianismo, que pode tudo esclarecer assim como tudo pode obnubilar: o projeto divino a respeito do homem é que este viva uma vida vivificada, e de tal maneira vivificada que se torna imperioso falar de um autêntico endeusamento; ou, por outras palavras, Cristo pretende invadir a alma humana, para que esta viva uma vida divina, ainda que sem jamais se confundir com a Divindade.

Ora bem. O amor humano, traço essencial e característico do ser-homem, não representa nenhuma exceção dentro do campo da liberdade divinizada dos filhos de Deus. Assim, já aqui se poderia dizer, à maneira de conclusão antecipada, que a liberdade do amor é terreno de conquista e não impulso espontâneo, que nasça conosco. Não há liberdade nem capacidade de amar no homem que não deseja desenvencilhar-se do pecado. Entendamo-nos: não digo num homem que ou não peca ou não possa pecar, pois sabemos que "o justo cai sete vezes por dia" (Prov. 24, 16); falo, sim, do homem que não está decidido a infundir à sua vida um rumo claramente orientado para receber a graça, numa nítida oposição ao mal; do homem que julga fazer frutificar o seu matrimônio sem deixar de adorar a criatura, crendo assim deveras adorar o Criador; do indivíduo que, afinal, em adorando qualquer criatura, acaba por adorar-se a si mesmo - nisto reside a essência do egoísmo -, e que, por isso, está de portas fechadas a Deus, redondamente impossibilitado de atingir a plena liberdade que só se atinge em comunhão com Deus, Fonte da liberdade criada. Ninguém nasce com uma liberdade de amar já pronta. E, por outro lado, em se tratando de libertar o homem do pecado, tanto faz que esteja em causa um pecado como outro: o que escraviza é a inclinação egoísta para o mal, mal esse que, afinal, sempre engana, pois é a "Verdade que vos fará livres"(Jo 8, 32). Assim, por exemplo, é relativamente freqüente a dissolução de famílias muito ricas. "Não lhes falta nada", dizem. Mas falta-lhes a liberdade de amar, sem a qual não há amor humano, sem a qual não há indissolubilidade sincera. Esses ricos são maus apenas na exata medida em que adoram o dinheiro, transformado em Deus, na exata medida em que são escravos do dinheiro, em vez de se servirem dele para atingir um fim racional. Sem liberdade não se pode amar; mas a liberdade necessária ao amor humano é concedida àqueles que a querem receber, abrindo-se à Libertação divina, isto é, à Redenção, com que pela graça, Deus-Homem realmente salva o homem perdido. Não é excessivo insistir: torna-se inútil discutir a castidade ou a indissolubilidade do matrimônio com pessoas que continuam a ser escravas do dinheiro, do prazer ou de qualquer coisa criada, ainda que seja o próprio aconchego do lar, esse vago desejo de bem-estar acima de tudo, que tão radicalmente corrompe os corações que parecem jovens e assim se tornam inábeis para o amor, irredutíveis num cantinho de egoísmo a dois.


1- Excerto da parte III do livro A Família - uma Perspectiva Cristã, São Paulo. Mandruvá, 1997.

2- Catecismo da Igreja Católica, 1607.