Jornalismo e Humanidade: Mariana Caetano (1) Prólogo Dias antes da elaboração deste artigo, discutia com colegas de redação a respeito do que escrevo agora: a despersonalização do jornalista. Por escolher o jornalismo como profissão (ou sacerdócio, como querem alguns), isso me diz respeito. A discussão aconteceu no intervalo de um dia de trabalho e continua nas linhas a seguir. São parte da tentativa de entender o que é a desumanização que combatemos. Dessa forma, creio, podemos ser melhores pessoas e jornalistas. Nessa condição e necessidade é que quero conduzir o presente diálogo. Não pretendo chegar a outra conclusão além da de que a melhor forma de trabalhar por isso é a vivência da paixão pela realidade - e a vida mesma. Compartilhar essa expectativa é mais complicado, principalmente entre
meus colegas. Às vezes parece piegas, outras vezes improvável. O risco vale a pena. De
fato, ele se pagou. Na tal discussão que abre este texto, depois de trombar algumas vezes
em nossas concepções, eu e um amigo (acabáramos de publicar a manchete daquele domingo,
resultado de três semanas de persistência) reparamos que aquela oportunidade era rara:
pensar - e falar alto sobre o que estamos fazendo da nossa profissão e de nossas vidas.
Não duvido também da responsabilidade do que fazemos na, com e da vida alheia. Escudo Bob Caputo, em depoimento ao documentário "Os Fotógrafos", da National Geographic Society, contou sua reação à foto-reportagem sobre a fome na Somália, Sudão e outros países da África, que realizou em 1992 para a revista da NGS.
O jornalista experimenta diariamente o limite relatado pelo fotógrafo da National Geographic. Ocorre em diferentes escalas e, às vezes, nem é notado. Um jornalista espanhol conta que em seu trabalho como secretário de redação de um diário de Madri viu-se diante dessa situação: minutos antes do fechamento da edição, chegou a fotografia de um atentado terrorista. Entre os mortos, uma mulher grávida e seu feto, expelido dela pela explosão da bomba. A foto escolhida para a primeira página mostrava os dois cadáveres, mas no jargão jornalístico "não dava corte" - não cabia no espaço reservado na página de forma a exibir mãe e filho. Diante do problema - agravado pela urgência do fechamento -, o jornalista praguejou sozinho. Desejou que o corpo do feto estivesse mais próximo da mãe, para poder mostrar a imagem sem cortes no dia seguinte. Não havia outra foto: era preciso que os cadáveres estivessem a menos alguns centímetros de distância. Não é uma história sobre a qual o secretário de redação se orgulhe. Talvez por isso, ele tenha sido capaz de perceber a diferença de sua reação como jornalista exercendo a técnica e como pessoa e sua ética. A dissociação entre a condição profissional e humana do jornalista ocorre diante de situações menos extremas do que um atentado terrorista ou a fome na África. Pode ser sutil e apenas refletir-se na utilização do escudo a que se refere Bob Caputo. A câmera fotográfica ou um gravador são parte desse escudo, "às vezes necessário", como ele diz, aliado à técnica da produção jornalística. O "escudo necessário" é o instrumento ou atitude capaz de mantê-lo "intacto" o suficiente diante da realidade para realizar seu trabalho. Minha escolha profissional foi motivada pela curiosidade sobre o mundo e a idéia de que a informação tem caráter transformador. Desde a graduação, são três anos de hard news na cobertura de Política e a "militância política" (interesse pela vida comunitária e o que os governos fazem dela, aliado a mecanismos de atuação individual) deu lugar à "militância informativa". Escolha da qual não retrocedo em nenhum momento. Assim como Caputo e o secretário de redação espanhol, acredito. Minhas concepções políticas, em poucos anos de cobertura jornalística do tema, são menos ingênuas. O problema está em manter o exercício da "militância política", que consiste na riqueza da experiência pessoal e una da política. Tal como poderia explicar um conceito da semiótica de Charles Sanders Pierce: a "primeiridade" do fenômeno da política. Identifico com mais freqüência a política como objeto de trabalho e tenho a sensação de estar permanentemente atrás do "escudo" da percepção jornalística e técnica dos fatos. E nesse processo, independente de um caráter ideológico, a política em si, ou a capacidade de opinar e reagir sobre os fatos, esvazia-se. Toma lugar uma cidadania "especial", em parte resumida na visão sobre os jornalistas e deles mesmos como "O Quarto Poder". Uma história curiosa, mas verdadeira, sobre um editor de Veja.
No afogadilho do fechamento, um repórter pergunta a opinião do chefe sobre determinado
assunto. A resposta vem num desabafo cômico: "Não sei mais nem se gosto de Pepsi ou
de Coca-Cola". É claro que o cotidiano das redações não transcorre dessa maneira,
inclusive o de Veja, mas vale o desabafo pelo grau de stress a que se submete o bom
profissional. E melhor se o faz com humor. Preconceitos, imparcialidade e objetividade É já um truísmo que na tentativa de buscar a imparcialidade e a objetividade - princípios fundamentais da profissão - o jornalista deve, assepticamente, procurar desnudar-se de seus "preconceitos". Este princípio é interpretado como se a concepção individual a respeito de pessoas, fatos ou lugares não devesse interferir na produção jornalística. Ambos podem ser instrumentos saudáveis para o profissional, mas, de forma alguma, são absolutos. A noção da linguagem pressupõe o oposto. A escolha de palavras, a pontuação, implica em "preconceitos": a experiência da escrita e da leitura, a despeito dos padrões que lhes servem, é, em última instância, única. Daí mesmo o interesse e a riqueza da comunicação. O exercício da objetividade e imparcialidade, levado às circunstâncias da produção jornalística industrial, pode conduzir à "desconstrução" dos preconceitos e à dificuldade de percepção de novos conceitos. Os fatos assumem tal importância do ponto de vista industrial e comercial que perdem sua razão como experiências individuais para o jornalista. A objetividade e a imparcialidade também podem servir de desculpa para um trabalho mal feito. É suficiente "ouvir sempre os dois lados" envolvidos no fato relatado e apenas isso? O jornalista tem lado? Sim, seu trabalho. Identificam-se outros problemas relacionados ao processo de "desumanização" do jornalismo. A valorização exclusiva do fato como matéria para publicação e não em si mesmo transforma a realidade em uma peça secundária. Nesse processo, mesmo que mantida a verossimilhança, podem esvaziar-se a ética profissional e a própria informação. Foi o que ocorreu em "O mundo de Jimmy", reportagem publicada em 1980, vencedora de um prêmio Pulitzer. A repórter do jornal The Washington Post, Janet Cook, inventou o protagonista de seu artigo comovente, um menino de oito anos viciado em heroína desde os cinco.
O indício de que a realidade é secundária conduz à morte do
jornalismo. Desse mal sofrem todos (?!) os jornais. E por onde afastam-se dos leitores.
Apenas o fato de considerar seu universo como o de seus leitores, exclusivamente, não
pode significar a mesma coisa? Notícia de Jornal
A objetividade e a imparcialidade são cada vez mais insuficientes à sobrevivência de um jornal ou meio de comunicação. Talvez provocado pelo exagero da utilização desses recursos ou baseado no fato de que o jornalismo tenha mais que ver com o reconhecimento e confiança dos leitores em relação a "seus" veículos. O ideal é que o veículo seja, de alguma forma, útil para o público. Mostrar que um jornal é útil pode ser uma tarefa mais difícil do que aparenta. Alcançar essa intimidade e mesmo a fidelidade dos leitores por meio exclusivo da objetividade e imparcialidade parece, de modo crescente, ineficaz. O samba "Notícia de Jornal", de Luís Reis e Haroldo Barbosa, gravado por Chico Buarque, mostra parte disto. O fenômeno reflete-se na tendência de queda mundial dos níveis de circulação dos jornais. Vale registrar que o Brasil tem vivido o oposto. A moeda estável foi grande aliada dos últimos picos de crescimento nas vendas de publicações. Ninguém sabe qual será o fôlego desse namoro entre os meios de
comunicação brasileiros e o brasileiro. Entretanto, existe a certeza de que os novos meios que surgem sem limites territoriais são
mais do que motivo para começar a adaptar-se. A Internet, a informação on demand,
etc., implicam numa revisão da missão do jornal. Ser humano O filósofo e jornalista espanhol Julián Marías, em seu Breve Tratado de la Ilusión, mesmo sem referir-se direta ou explicitamente ao jornalismo, demonstra o que chamo de despersonalização do profissional, a ausência da ilusión. "Muitas vezes, me referi à falta de fruição que em nossa época mostram, com tanta freqüência, as obras de pensamento, literatura ou arte; percebe-se muitas vezes um elemento de desinteresse ou até de mau-humor nos profissionais das disciplinas mais elevadas e em sua docência - uma das raízes da crise dessa última, e em particular da Universidade. Acredito que a origem disso está na falta de ilusión por esses trabalhos. Quando o trabalho é demasiado impessoal, quando se realiza por acumulação de materiais e informações, quando importa mais o resultado e o êxito do que a própria realização, a ilusión se desvanece; creio que isso afeta decisivamente a qualidade, mas mais ainda a personalidade da obra, que resulta em muitos casos intercambiável, em lugar de estar ligada à mais profunda realidade do autor. Quando distingui, há um quarto de século, entre o ‘escritor’ e o ‘homem que escreve’, e assinalei que, no século passado ou no início deste, havia muitos verdadeiros escritores (ainda que não fossem grandes, nem sequer bons escritores), enquanto que agora há inumeráveis homens que escrevem (alguns bem), sem que isso seja parte integrante do que verdadeiramente são. Não coloquei isso em conexão com a ilusión, que me parece agora a abordagem adequada. O escritor, se realmente o é, escreve com ilusión, ainda no caso de que seus dotes não sejam extraordinários e, portanto, o resultado deixe a desejar. Isso é o que se sente falta naquele para quem escrever é uma função meramente profissional, ou uma tarefa, ou uma maneira de dar cabo de um trabalho ou de pesquisas realizadas à margem desse escrever. Se falta o nexo com o projeto pessoal, não se dá a ilusión." Marías refere-se à ilusión no sentido que a palavra adquire na Espanha desde os primeiros decênios do século XIX, muito mais positivo do que em português e qualquer outra língua ou versões do castelhano. A ilusión de Marías, perdoada a tradução grosseira, é vontade, desejo, esperança. São estes os sentidos que podem conduzir à pratica do que Gonzalo Peltzer chama de Jornalismo com Paixão, no livro homônimo. "Se querem prosperar, as empresas jornalísticas deverão atender mais de perto a seus públicos e ter papel mais ativo nas suas próprias comunidades (...) Os novos jornalistas sabem que de sua dedicação e entusiasmo depende a solução dos problemas do mundo, suas sociedades, seus países, cidades e bairros. Devem trocar na equação informativa passividade por atividade, precedência por participação, precisão por compaixão, o enfado por interesse e sobrecarga por destilação." Ele vai adiante: "A paixão converte um curioso em um jornalista (...). Apenas com paixão podemos compreender a realidade e somente com paixão estaremos habilitados a explicá-la a nossos semelhantes. Paradoxalmente, foi pedido a nós jornalistas por muitos anos que nos desligássemos de toda paixão, jamais nos envolvêssemos nos dramas humanos e sociais que deveríamos relatar ou descrever. Por fim, nos demos conta de que esta é uma pretensão inútil. A paixão não só não se ensina nos colégios ou nas universidades, mas é até mesmo evitada." Evitar tanto a paixão quanto a ilusión significa, em última instância, abrir mão da qualidade e características da função jornalística. Exercê-las, passa pela valorização da qualidade de vida do profissional dentro e fora da redação, seja por meio do investimento das empresas e pessoal do jornalista à capacitação ou na oportunidade de produzir reportagens de temas ou estilo distintos dos que costuma fazer. A extrema especialização da cobertura, a que, às vezes, submete-se ou até deseja o jornalista, atua como novo escudo, capaz de "abrigá-lo" do contexto e conjunto em que está colocado o assunto de seu interesse. O princípio tão simples e fundamental para o desencadeamento dessa concepção do jornalismo está no abandono da atitude arrogante e autosuficiente das redações. Não se trata de julgar os fatos, mas aprender com eles na condição pessoal (ética) e profissional (técnica). 1- Texto para debate em seminário de Filosofia no programa Master em Jornalismo para Editores da Faculdade de Ciências da Informação da Universidade de Navarra (Espanha), em São Paulo (ago-97). |