Jornal, Tempo e Espaço e Sinônimo

 

Djalma Luiz Benette
(editor-chefe de "O Cruzeiro do Sul"de Sorocaba)

"Calma seo Ulysses, em branco não sai"
(De um impressor na FSP ao então secretário-
de-redação, na década de 50)


O telefone se esgoelava de chamar, tirava-me a atenção daquela frase, levava-me ao desespero de uma causa perdida. O tempo não parava, mas era necessário que eu parasse para atender ao telefone. Apesar do desespero da hora, sabia que do outro lado da linha quem me chamava não sabia que aquela era a hora do desespero, pois se soubesse não chamaria. Só mesmo quem não sabe insiste em chamar alguém na hora do fechamento.

- Redação, boa noite!

A frase feita, decorada em anos de prática em atender aos que chamam ao jornal antes de pedir socorro aos bombeiros durante um incêndio, soou monocórdica como o habitual. Do outro lado, minha mãe querendo saber se a Maísa tinha vindo (ela mora com a mãe em outra cidade e passa os finais de semana comigo). Respondi apressadamente (ela não sabe que fazer jornal é parecido com cozinhar: há ingredientes, a combinação dos ingredientes, um tempo para assar/cozinhar e o momento exato de servir para que a comida tenha o sabor que deve ter), mas ela me interpelou com as mesmas perguntas que toda mãe faz para qualquer filho em qualquer lugar do mundo. Imagino!

Um tanto sufocado perguntei:

- Estou em fechamento!!!! A senhora sabe o que é fechamento???

A frase soou por um tempo ao telefone, o suficiente para ela responder que estava bom e iria fazer arroz com frango no domingo e meu pai me esperava para almoçar.

A historinha (pessoal e verdadeira) dá indícios que podem levar a caminhos um tanto pantanosos até se chegar a resposta de uma questão chave no processo jornalístico contemporâneo, afinal a questão não é se o leitor sabe como é feito o jornal, mas o que é o jornal.

A partir deste ponto chave, vale a pena examinar este produto a partir de dois aspectos que compõem a vida do homem em sociedade desde que a eletricidade consolidou a maneira dele existir: tempo e espaço.

Tempo

A origem das coisas (quando se trata de notícia isso é quase que uma verdade absoluta) é o ponto de partida para a descoberta (vejam bem, mostrar o que estava encoberto) daquilo que a coisa em si, na verdade significa.

Zeitung. Journal. Krant. Essas são algumas das palavras usadas no mundo ocidental - e a este universo ainda estou confinado - para fazer referência a um produto impresso que periodicamente é publicado.

O alemão Zeitung é uma combinação de tempo+ação. O holandês Krant vem do francês courant que pode significar corrente, que corre, portanto algo que é pescado da corrente de um tempo. Já a palavra francesa journal vem do latim diurnalis que nada mais é do que diário para nós de língua portuguesa ou para os espanhóis. Aquele que sai todo dia com aquilo que é pescado da corrente do tempo como bem lembra o nome usado pelos holandeses.

Mas, além disso, o que mais encanta no conceito francês, espanhol e português da palavra é que a mesma grafia preserva um outro significado esplêndido - percebido, primeiramente, pelo escritor holandês Cees Nooteboom: diário, além de jornal, significa também o diário propriamente dito: anotações feitas por adolescentes e escritores.

Lembrando Jorge Luís Borges, Nooteboom, delicia-se com a idéia de que a junção de todos os jornais do mundo, de um mesmo dia, signifique, enfim, o diário do mundo - um relatório pescado no rio do tempo que exprima o que aconteceu ontem, enfim que ateste - por piores que sejam as notícias, como costumam ser - que o mundo existe.

Talvez isso não seja tão óbvio quanto pareça à primeira vista. Cada vez mais englobado pela imagem instantânea que a TV traz para dentro de sua casa, o homem perde aos poucos o senso para a distinção entre o que é a realidade de ontem e o que é a virtualidade da sua existência. Até os infográficos de uma molécula, usados numa reportagem de TV para explicar a Aids, confundem o que é de fato uma molécula. A imagem criada passa, de fato, a ser a molécula em si. A virtualidade animada e configurada ao bel-prazer dos editores faz da realidade uma dúvida premente na vida do cidadão comum. A morte da princesa de Gales passa a fazer parte da sua dor cotidiana de existência, enquanto o vizinho morto em circustâncias parecidas, também em acidente de carro, toma corpo como algo corriqueiro da sua vida.

O jogo de ontem, o capítulo de hoje da novela, a mudança de partido de determinado político, a enchente no outro lado do Planeta. São fatos que existem e nada têm que ver com a ficção de uma virtualidade cada vez mais crescente neste mundo globalizado pela relações econômicas, mas principalmente pela instantaneidade da comunicação.

O jornal, portanto, é o espelho (Spiegel é uma das principais publicações da Alemanha, assim como o Mirror na Inglaterra) de um tempo contemporâneo na existência do homem comum. Não é a história (que os livros encarregam-se de guardar), mas é o seu presente. Acordo e me vejo e, se me vejo, posso adquirir conhecimento e, se conheço, opino; se opino, argumento; se argumento, reflito e, se reflito, existo. Se existo, necessariamente, existo num tempo e o tempo compreende o espaço.

Espaço

Para que o que aconteceu ontem chegue até as pessoas e elas se vejam no espelho da sociedade onde vivem, é necessário um espaço, o jornal em si feito de papel - no caso convencional - ou de maneira virtual na Internet.

São espaços reduzidos, com custos altíssimos, para a publicação daquilo que expressa os acontecimentos. E em nome da verdade, convencionou-se retirar de qualquer relato sobre ontem a subjetividade do relator como se isso, por acaso, pudesse ser feito. Assim, de ontem, podemos ter acesso aos fatos concretos que ocorreram, ao que determinado dirigente tagarelou, ao que o sistema vai alterar. Mas, objetivamente, nada aparece sobre a situação de impotência do cidadão contemporâneo em relação ao poder estabelecido que mantêm, cotidianamente, sua alienação perante do mundo.

Assim, enquanto em termos de tempo o jornal é aquele que atesta a existência do homem neste mundo, em termos de espaço é o local que evita de falar da sua possibilidade de compreender o que acontece hoje por causa do que foi decidido ontem.

Sem exprimir o que é subjetivo nas questões objetivas que relata todo dia, o jornal decreta a impossibilidade de um indivíduo construir um destino ímpar e coloca-o dentro de um aglomerado, a massa social, onde toda iniciativa individual é inútil.

Assim, jornais como "Folha..." nada mais significam - numa analogia com a folha de uma árvore - do que a tentativa de se renovar sempre para dizer não só que o tempo passou (hoje já não é ontem / agora é outono e não mais primavera), mas que ainda há esperança.

Outros vão mais longe, além de serem jornais, dizem-se jornais de localidades específicas: "O Estado de...".

Dentro deste panorama, involuntariamente, pelo próprio sentido da palavra, acabam por ser o reflexo do estado em que determinada sociedade encontra-se naquele tempo específico. Outros jornais, ainda, nascem com a intenção de não só ser o tempo e o espaço dos seus leitores, mas também ser o seu guia. Este pode ser o caso de Cruzeiro do Sul. Além de nome de jornal, é - numa esfera mais universal - uma constelação. Era pelo "cruzeiro do sul" que os navegantes (antes das bússolas) dirigiam-se pelos oceanos e mares. E, ao ser nome de jornal, tem a pretensão de ser o guia de seus leitores rumo ao conhecimento do que aconteceu ontem.

Tempo+Espaço

Nesta combinação que determina o mundo, praticamente, surge o ponto incial desta reflexão - colocada em epígrafe deste texto: "Calma seo Ulysses, em branco não sai".

Dita na década de 50 por um velho impressor português que comandava a oficina do jornal "Folha de S. Paulo", nos tempos de Adabantino Gomes e Mário Lobo, ao então jovem jornalista Ulysses Alves de Souza, a frase perdura por décadas e vai perdurar por todo o tempo em que o jornal seja um espaço físico para o reflexo do que aconteceu ontem.

Ela partiu da experiência de uma autoridade (chefe da oficina) para acalmar os nervos de um jovem que temia que um espaço de terminado de uma página de jornal saisse em branco (sem informação alguma) porque faltou tempo para que um jornalista a concluísse.

Décadas mais tarde, Ulysses (editor-chefe de um jornal do interior) costumava dizer esta frase para acalmar o seu secretário de redação nervoso com a mãe que lhe telefonava na hora do fechamento. Afinal, jornal é um processo industrial que nasce de manhã e morre só quando leitor apanha o jornal todo dia cedo para atestar que ele e o mundo ainda existem.

Por isso, como ensinou Álvaro Pacheco a Alberto Dines, que hoje nos ensina: "o jornal não acaba, sempre há um outro no dia seguinte. O êxito ou fracasso de uma edição terminam exatamente na edição posterior".

Sinônimo

Dentro desta relação de tempo e espaço, é fundamental a abordagem de um fato comum em todos jornais do mundo: há uma linguagem jornalística composta por imagens (fotografias, desenhos e infográficos) e textos. O domínio da língua é fundamental para a existência do jornal.

Qualquer manual de redação (ou livros de técnicas de entrevistas e reportagem) expressa que cada notícia/reportagem tem uma palavra-chave. Nas informações policiais, esta palavra é morte/acidente. No jornalismo esportivo, a palavra-chave é competição e assim por diante, mesmo em informações menos definidas. O papel do jornalista, ao relatar os acontecimentos de ontem/hoje é conduzir sua história em cima de palavras-chave que darão o clima e o ambiente do acontecimento narrado.

O título deste relato - praticamente todas as notícias de um jornal têm título - é o reflexo da palavra-chave do texto. E o título jornalístico, necessariamente, é padronizado em espaços rígidos onde deve dizer o que contém cada história em 1 linha de 45 toques, 1 linha de 35 toques, 2 linhas de 28 toques, 2 linhas de 22 toques, 2 linhas de 16 toques, 3 linhas de 13 toques.

Com outras variações, essencialmente, os títulos tem este padrão. Em alguns lugares, como o The New York Times, por exemplo, os títulos de 3 linhas de 13 toques devem formar o desenho de um trapézio. Isso tudo sem deixar de expressar o que o texto diz e num prazo limite.

Assim, fechamento significa pôr em prática num limite extremo uma série de decisões tomadas ao longo da jornada que prepara o jornal para a manhã seguinte. Portanto, uma dessas práticas, é a colocação de títulos, legendas e olhos em textos. Assim, faltando poucos minutos para determinada página entrar em seu processo industrial (fotocomposição, confecção de chapa, impressão, encarte e distribuição) é necessário o preenchimento de um determinado espaço num tempo extremamente delimitado.

Para fazer isso, quem faz o título adquire uma prática, intui imediatamente as palavras-chave do texto e elabora os títulos.

E é precisamente neste ponto que surge a temática dos sinônimos.

É freqüente que a palavra-chave não caiba dentro do espaço do título e o jornalista se vê obrigado a colocar um sinônimo para dizer o que quer. Mas, como ensina Santo Tomás de Aquino, são sinônimas apenas as palavras que não só indicam a mesma realidade (res), mas também o mesmo aspecto (ratio). Por causa disso, muitas vezes (muito mais do que o desejável) o jornalista cai numa armadilha da ditadura do espaço.

Como o jornal fala de acontecimentos que interessam ao Homem, o foco central do que o jornal fala é Ele e sua espécie. E, quando se fala de alguém, fala-se de "coisas" que tem relação com a sua honra e ao usar uma outra palavra que caiba no espaço do título para exprimir o que há para ser dito acaba-se, algumas vezes, usando a palavra que corresponde somente à res, realidade de um fato, mas não o enfoca sob o mesmo aspecto.

Por isso, na maioria dos processos judiciais envolvendo jornalistas e jornais, o foco do reclamante está nos títulos, legendas e olhos.

Dentro deste aspecto, volta-se a questão chave deste artigo: não importa se o leitor sabe como é feito o jornal, mas o que é o jornal.

Para o leitor não interessa se há pouco ou muito tempo para se fazer um título; se há pouco ou muito espaço para escrevê-lo.

O que interessa é que o jornal chegue todos os dias no mesmo horário e seja o reflexo da sua sociedade. Seja o atestado da sua existência independente de qualquer tempo, espaço ou palavras: para ele não existe fechamento.