Fora da Língua, Longe do Poder

 

Arnaldo Bloch
(Chefe de redação do
GLOBO em São Paulo)

 

No afã de sua semiologia desmistificante, o pensador francês Roland Barthes dizia, em célebre aula inaugural na Escola de França proferida em 1977 (e transformada em livro), que a língua, por seu caráter classificatório, é um "lugar de poder" extemporâneo e inexorável. Opressiva, oferece sua estrutura a serviço de um poder, seja ele qual for, por ser assertiva e ao mesmo tempo assimilada através de gregarismo (o signo só existe pela repetição incessante, daí a formação do estereótipo e suas implicações sociais). Barthes avança e afirma que a língua é, além de tudo, fascista: mais que impedir que se fale algo, ela "obriga" a falar algo, escolhe nossos meios de expressão e nos confere apenas algumas "liberdades condicionais". Ao mesmo tempo, Barthes defende que só através da literatura (se não se quiser recorrer ao extremo da singularidade mística ou à ruptura nietzschiana) é possível "enganar" a língua e, aliando, por assim dizer, "dramaticamente", o "saber" a um certo "sabor", encontrar a liberdade e o discurso "fora do poder" e de suas relações.

Por literatura, Barthes entende o texto, a escritura, em todas as suas acepções, e, sobretudo, a "prática de escrever". Por fim, prega o casamento entre esta literatura e um certo tipo de semiologia que procura descortinar as formas usuais de se enunciar a realidade, pois estas são perigosas à medida que constroem ou reproduzem estereótipos e depois os transformam em "sentidos inatos", definitivamente "grudados" nas palavras e nas construções retóricas, mesmo naquelas que um dia foram revolucionárias. Portanto, não é assim tão importante, na busca do real engendrada pela literatura, a exatidão: pois realidade (pluridimensional) e linguagem (unidimensional) são corpos que jamais se encontram.

E é justamente através da busca deste alvo impossível que a literatura, irredutível, acaba encontrando sua vocação e, no uso de seus subterfúgios, irradia um saber mais livre (em que a própria ciência é jogada num discurso menos a serviço de uma estrutura, grosseira, e mais a serviço do homem, sutil), e se aproxima, num bordado de correlações não-impositivas, de alguma forma de verdade. Neste "jogo com os signos", a capacidade de deslocamento (estar onde não se é esperado) e de "abjuração" (retratação) é importante na hora em que o teatro que criamos com a língua é utilizado pelo poder como instrumento gregário, e transforma-se em senso comum. Então, renega-se o texto que se transformou em outra coisa, sem renegar-se o pensamento que lhe deu vida.

Sem cometer heresias, saio de Barthes e visito Nelson Rodrigues. Numa de suas digressões esportivas, nosso filósofo defendia que a verdadeira partida de futebol não é aquela a que se assiste no estádio, ou na televisão, mas aquela que se escuta nas ondas do rádio (de pilha, de preferência). O mesmo Nelson garantia ser o Nero imortalizado nas telas por Cecil B. de Mille, na pele de Peter Ustinov, o único legítimo: o Nero histórico, imperador de Roma, mais próximo da descrição de um cronista como Suetônio, sedutora mas quase científica, não passava de grosseira contrafação (aqui, nos dois casos, a história, como ciência, opõe-se à criação artística da narrativa cinematográfica, ou da narração esportiva).

Num novo salto, cabe invadir o terreno da música. Tantos louvam os mistérios da música puramente instrumental, sem língua, por ser, em oposição, linguagem, universal, misteriosa, capaz de transmitir emoções através de matizes sonoras. Mas a música, mesmo quando sem palavras, é língua: como esquecer que o sistema diatônico, reinante no ocidente, base de toda a música erudita, do jazz, do pop, aprisiona as notas e os acordes num rol de possibilidades bastante limitado que privilegia "graus" e funções em cada tonalidade? E que justamente o dodecafonismo de Shöenberg & cia (muito além de um cromatismo wagneriano, dos eflúvios orientais de uma escala pentatônica raveliana, ou da mágica dos tons inteiros de Debussy) tentou romper com isso, dando a cada nota um valor independente, "igual" ao de suas semelhantes notas? E, ainda, como negar que mesmo este sistema (diga-se de passagem, por demais socializado), acabava sendo auto-limitante? Sem esquecer que todas estas línguas e sintaxes musicais e mesmo suas modulações simplesmente ignoram o sistema de "quartos de tom" oriental, que subdivide o contínuo sonoro em um número maior de partes, em suma, mais notas à disposição do autor. Mesmo assim, não chegamos ainda à última palavra-som, pois os quartos de tom também encerram suas verdades sonoras, nos obrigam a dizê-las. Tonal ou atonal, ocidental ou oriental, é a música fascista?

Num derradeiro salto (e agora sim, caoticamente comme il faut, chegando ao objeto oculto de nossa discussão), vamos ao jornalismo. Permito-me extrapolar a concepção de Barthes e considerar aqui (sem ineditismo) o texto jornalístico como gênero literário, por ser escritura e por derivar de uma prática. Vale pensar: não bastasse a substância de poder intrínseca à língua (oh, em quantos erros incorremos!, quantos mitos e estereótipos difundimos diariamente sob nossa pena!), ainda nos vemos aprisionados a grilhões estilísticos e a técnicas de construção que fazem de nossos textos, muitas vezes, lamentáveis enunciados de obviedades, bulas de preconceitos, espelhos de uma realidade corrompida que ajudamos a perpetrar (na linha da "palavra gregária" denunciada por Barthes).

É portanto bastante saudável a inquietação que vemos surgir no seio de nossa categoria, por parte de alguns profissionais que defendem, sempre que possível, um texto mais livre (como diria Barthes, "mais enunciação e menos enunciado"), um texto que jogue com a história, que faça teatro com os fatos, que leia-os através da substância que eles transmitem, substância plena de "saberes" que artisticamente resvala na verdade ao emanar do real estrito, impossível de ser atingido, mas utopicamente perseguido. (Ao apalpar, irrealmente, o real impossível, paradoxalmente atinge-se o real estrito, e, eureka, é-se realista!).

O jornalismo de serviço e o documental de denúncia continuarão lá, objetivos, insofismáveis, não ousaremos contestá-los em sua práxis fundamental. Mas não custa nada dar uma implodida nos terrenos do declaratório, do gabinete, da narrativa de eventos, do dia-a-dia das cidades, e conferir a estes "lugares de linguagem" um certo sabor além do simples saber, e talvez assim ecoar, no pensar, uma língua menos vulgar, fora do centro, fora do óbvio e, quando possível e seguro, fora do sério. Afinal, somos literatura, e isto nos dá uma ferramenta poderosa para driblar, sem ideologia, o poder amalgamado na língua.