Linguagem - Equívocos e Esperança

Pedro Corrêa
(Editor do Suplemento de Bairro
de "O Estado de S. Paulo")

I

O fenômeno da globalização tem gerado, em todo o mundo, uma quebra de fronteiras que nunca se havia notado antes na história. Pode-se aplicar dinheiro em mercados de alto risco na Ásia, viajar pela Internet pelos quatro cantos do mundo, comprar a última palavra em aparelho de som nos Estados Unidos, tudo isso sem sair de casa. As teias de informação e comunicação experimentam uma dimensão nunca antes imaginada. Essa quebra de limites, porém, tem significado um retrocesso na evolução do homem enquanto ser pensante e atuante. Ao "aproximar" as pessoas, esses canais o fazem de maneira superficial e descaracterizada, já que neles predomina a técnica em relação ao pensar.

Os especialistas em comunicações - os técnicos, sempre eles, a mecanizar as relações humanas - criam códigos destinados apenas a operacionalizar essas redes, torná-las ágeis, velozes a ponto de embaralhar até mesmo as noções de tempo e distância. É só perguntar a qualquer jovem de hoje a quantos segundos fica o Museu do Louvre de seu computador e ele responderá prontamente: "Dependendo da hora e da disponibilidade do servidor, talvez me venha um quadro do acervo em 5 minutos." Mas experimente pedir a ele que ache Paris ou a França num mapa, num simples exercício de geografia. A decepção pode ser grande...

Essa busca técnica da rapidez afeta diretamente a capacidade do homem de exercer uma de suas mais geniais capacidades - a de pensar e, por conseqüência, a de abstrair e criar. A parafernália eletrônica aprofunda o abismo detectado na Antigüidade: "O homem é um ser que esquece.".

Com a televisão, com a Internet, com os jornais dominados pelos ícones, fica ainda mais fácil esquecer. E o homem vai deixando de lado a linguagem que a civilização levou séculos para elaborar, com definições plenas, precisas. A linguagem perde o caráter único - que principalmente ela possui, já que é acessível a todos os seres humanos - de possibilitar ao homem superar as coisas cotidianas. A palavra deixa de ser o elo que permite resgatar, do limbo do dia-a-dia, os abalos que, segundo Platão, levam a transcender o mundo do trabalho eminentemente técnico e a mirar as coisas da vida de maneira transformadora.

A busca desenfreada dos ícones, dos sinais limpos e imediatistas, também se torna marca registrada no tempo da televisão e das imagens. Estas atingem de maneira comprometedora o conteúdo dos jornais, um veículo da língua por excelência. Textos pasteurizados e assépticos tendem a substituir reportagens instigadoras e "filosoficamente" atraentes, no sentido de levar o leitor a refletir sobre sua vida e o mundo que o cerca. Leads de leitura rápida - sempre ela, a velocidade estúpida da técnica - dão ao cliente (no jargão mercadológico) a sensação de que está "sabendo das coisas" antes que os outros e, o melhor de tudo (dentro da lógica tecnicista), sem perder muito tempo. "Artes" com desenhos "modernos" são usadas como destaque em lugar das palavras, como se estas fossem acessórios de tabelas, quadros e gráficos.

Como bem alerta Roque Spencer Maciel de Barros, a respeito do domínio da televisão e da era dos ícones: "A imagem, em contraposição à palavra, é imediata. Entregue a si mesma, sem estar acompanhada de um discurso que a interprete, tende a fundir a consciência no objeto visto."

Trata-se inapelavelmente, no caso de como as imagens vêm sendo usadas nos meios de comunicação, de um ataque direto à capacidade de pensar do homem. Inexiste, nesse domínio tresloucado das imagens, a linguagem (o discurso) que permite a consolidação do mundo num todo pleno de sentido. Sem a palavra, o sentido da visão se torna auto-suficiente, completo em si mesmo. "Basta ver e estou satisfeito", constata o telespectador. "Já li o primeiro parágrafo e estou informado", contenta-se o leitor. Configura-se a passividade e o resultado é devastador: fragmentam-se as relações humanas, detona-se o raciocínio, instala-se o superficialismo.

Do modo como a imagem vem sendo tratada pela mídia - "sem um discurso que a interprete", como dito acima -, suprime-se a condição para que o pensamento se manifeste, ou seja, coloca-se num plano acessório a premissa para que se construa a obra do pensamento: a palavra, que permite e dá ao homem a condição de colocar-se perante o mundo e integrá-lo.

Não se trata de banir as imagens da nossa vida, mesmo porque isso seria impossível. Trata-se de devolver a elas sua característica de coadjuvante para que a obra do pensamento se realize. Não devemos nos esquecer que o homem também é um ser que vê. Só não podemos deixar que se destrua o homem enquanto ser aberto para a totalidade do real, na concepção da filosófica clássica.

Retornemos a Maciel de Barros: "Se a representação (especialmente a visual, imagística) é um elemento auxiliar do nosso pensamento e uma condição plena da intelegibilidade do mundo, ela só é realmente humana quando acompanhada desse mesmo pensamento, do conceito que só ganha vida nas vestes da palavra". Ao inverter a escala de valores do veículo condutor do pensamento - dando à palavra uma posição secundária e entronizando a imagem acrítica -, a mídia consegue, devido à sua capacidade de penetração junto à população, tornar ato corriqueiro essa deturpação do ato de pensar.

O jornalista Roberto Pompeu de Toledo, num artigo na revista Veja, dá um exemplo concreto sobre essa crise da linguagem, em benefício da imagem acrítica, ao observar a dúvida a que hoje estamos sujeitos ao procurarmos desesperados os toaletes, masculino e feminino, seja num restaurante ou num hotel. As placas que os identificam trazem figuras modernosas, as quais, após instantes eternos de suplício, conseguimos identificar como um boneco de calças ou uma boneca de saias. "A humanidade demorou milhões de anos para inventar a linguagem escrita e vêm agora as portas dos toaletes e as desinventam. Por que não escrever ‘homens’ e ‘mulheres’, reunião de letras que proporciona a segurança e a clareza do entendimento imediato? Não. Algumas portas exibem silhuetas de calças e saias. Outras desenhos de cartolas, luvas, bolsas, gravatas, cachimbos e outros adereços de uso supostamente exclusivo de um sexo ou outro. Milhões de anos de progresso da humanidade, até a invenção da comunicação escrita, são jogados fora, à porta dos toaletes."

A palavra, no perfil determinado atualmente pelas redes de comunicação, cede lugar a símbolos nem sempre decifráveis. Em nome do imediatismo que a imagem permite, chega-se a criar códigos paralelos com valor duvidoso de conteúdo. Instala-se uma Babel onde as línguas são para ver e não para falar, pensar. Nesse tempo, de "imaginação da linguagem", as pessoas não se falam mais, apenas se imaginam. Desconsideram-se as linguagens, múltiplas e criativas, que existem em cada bairro e cada esquina. Deixam-se de lado as palavras mínimas e necessárias para que se complete a relação entre o homem e o mundo em que vive. A Babel deixa de ser a torre do encontro criativo das nações, com todos os seus paradoxos e contradições, para se transformar no eixo dos equívocos. O equívoco - o superficial, o imagístico, o fácil - torna-se uma média praticada por todos. "Tecnipulam-se" as pessoas, para usar o conceito de Mario Bruno Sproviero. "... Este mundo reduzido a imagens (a civilização do ícone) é um tremendo empobrecimento (sob a aparência de avanço técnico). A tecno-imagem é antropófaga não por manipulação, mas por sua própria estrutura."

II

Mas a esperança, no seu sentido mais pleno, ainda evita que a linguagem sucumba à velocidade técnica e à força da padronização. Nota-se hoje, na imprensa, uma preocupação, em resgatar valores muito mais próximos aos cidadãos, enquanto seres atuantes nas comunidades em que vivem. Procura-se preservar a linguagem desses cantões, em tudo que elas têm de mais rico.

O jornal O Estado de S. Paulo publicou, em julho, no caderno SeuBairro Norte, reportagem com o poeta José Gilberto Gaspar. No texto a poesia fluiu como se fosse o alimento do dia, o maná dos céus (como diz a Bíblia). A paineira da Praça do Centenário, no bairro da Casa Verde, ganhou dimensão nunca antes imaginada.

Em vez dos 100 mil habitantes do bairro, a árvore foi mostrada, ao lado de Gaspar, para um número 30 vezes maior de paulistanos. A paineira inspirou o poema "Não pises a flor", criado pelo poeta revoltado pelos pedestres apressados que, sob árvore tão generosa, faziam questão de pisar sobre as péta-las esparramadas pelo chão:

Não pises a flor, porque a flor tem perfume
E deste perfume é que vive a flor
Se pisares a flor, ouvirás o queixume
Do perfume, exalando da vida da flor

Não pises o amor, que o amor se resume
Na festa da alma, no alívio da dor,
Se pisares o amor, ouvirás o queixume
Do peito, clamando o martírio da dor.

No amor e na flor, existe o perfume,
E o maldito ciúme só tem mesmo é no amor
É por isso talvez que o amor, por ciúme,
Venha a sentir inveja da existência da flor.

A tecnologia e seus aparelhos podem ser usados como meios (e apenas assim, como intermediários) para dar lugar a "insights" - os abalos platonianos que nos permitem fugir do lugar-comum: "Faço parte deste mundo, sinto-o, reflito-o e quero agir sobre ele." A poesia, como a de Gaspar, pode e deve ser resgatada. Assim como outras poesias e outras formas de arte, de pensar, de agir, de atuar sobre o mundo, que o imediatismo do nosso dia-a-dia não nos deixam sentir. A poesia, o pensar, a solidariedade, a cidadania precisam ser exercitados em cada reportagem. As imagens são aliadas da linguagem. Não devem, porém, substituí-las, como se tem tornado comum nos "mass media".

Os ícones, as imagens não são duradouros. Esgotam-se com a época a que serviam de referência. A linguagem é eterna, tem uma carga de significados que se acumulam ao longo do tempo, incorporam história e conceitos. As palavras aglutinam em si o significado mais puro da esperança. "Quando buscamos o sentido próprio, profundo em relação à totalidade da existência, da atitude humana fundamental que chamamos esperança (...), voltamo-nos para a linguagem. Pois a linguagem - a linguagem comum, essa que nós mesmos falamos e ouvimos todos os dias - encerra em si informações muito mais profundas e precisas do que o que nós comumente sabemos, do que pensamos que sabemos; se bem que, a rigor, sim, o sabemos.".

Esse conceito, proposto por Josef Pieper, possibilita que se reflita sobre o papel da linguagem no jornalismo hoje.

A lingagem cotidiana, a falada nos bairros, nas casas tem de ser resgatada (no real sentido deste termo, sem modismos) de modo criativo e pleno. Não a linguagem que fere a gramática, que instiga ao uso de siglas, que perpetua os jargões, que dá lugar às imagens. Voltemos a contar histórias, a poetar, a descobrir pessoas, a sentir a arte, a pensar a nossa realidade, a refletir sobre o mundo que nos cerca.

Há necessidade, hoje, de se resgatar um pouco do espírito de Píndaro, repórter-filósofo da Antigüidade, que, entre um registro e outro dos jogos e feitos gregos, propunha: "Torna-te o que és!"

O jornalista precisa mais que nunca dar condições para que o leitor possa ser o que é - na vida, em casa, na sua relação com o mundo.

III

A globalização traz em seu bojo perigos, mas também esperanças. A dialética da globalização (que proponho chamar de "tecnomundialização") cria pessoas "plugadas", ligadas em imagens distantes, em superfícies longínquas. Esse excesso de "cosmético" - e aqui entra o momento contraditório da "tecno-mundialização", que precisamos aproveitar - engendra a própria redescoberta da essência humana. Como?

Ao mesmo tempo que as pessoas hoje têm acesso a tantas informações, nunca se viu tamanha preocupação, por parte delas, com problemas e temas que as afetam de maneira mais próxima. Hoje se constata que as pessoas se ligam mais nos assuntos que os envolvem diretamente, que são falados na esquina, no bairro em que moram, na comunidade em que vivem. Importa menos o discurso vazio dos círculos do poder do que (para ficar no exemplo antes citado) a poesia de Gaspar na Casa Verde, do que a arte de Waldomiro de Deus em Osasco, do que os versos de Paulo Bomfim na Consolação. As condições dada pela globalização para se rever o valor da linguagem, atualmente, são únicas. É necessário resgatá-lo, plenamente, em meio ao mar acrítico das imagens impostas pela mídia.

Nunca a palavra esteve tão perto de levar um xeque-mate. Mas, ao mesmo tempo, nunca se viu tão próxima a possibilidade de, num golpe de mestre, derrubar o reino da tecnipulação. Essa situação crítica da linguagem traz uma oportunidade única. Temos em nossas mãos a chance fugaz de usar a palavra no sentido de ajudar o homem a encontrar a felicidade, naquele sentido pleno, proposto por Santo Agostinho: "Feliz é quem tem tudo o que quer". O resgate da linguagem pode ajudar o homem (o leitor, o telespectador, o navegador eletrônico) a encontrar-se.