O Totalitarismo das Coisas

Sylvio Roque de G.Horta
(Doutorando da FEUSP)

 

Hoje, na rua, vi um jovem caminhando para a mendicância. Trinta anos, sujo, tremendo, fraco. Era possível perceber que se sentia desprezado, com medo, oprimido. Eu, também, sentira-me assim esta semana. Desprotegido, esmagado pela competição e competência alheia. Um nada no mundo. O jovem mendigo, porém, me fez pensar no que ele deve estar passando! Eu, protegido, "elite", me senti assim esses dias... órgãos públicos, bancos (os privados mesmo!), seguros, grandes companhias... Tive que passar por eles e elas, e a sensação de que você não é nada, é tudo.

Poderia ser uma patologia minha, alma mendiga, sei lá... Mas falando com outras pessoas e observando, vejo que, nesse ponto, não sou único. Uma estrutura impessoal avança a galope no mundo ("a jato" seria melhor).

Não é só isso, ainda bem. Em todos os lugares - ou em quase todos -, há o contrário: pessoas que te tratam com respeito, pessoas que dá prazer de conhecer, que querem te ajudar, que te dão força. A realidade - que consiste primariamente em possibilidades - vacila entre o melhor e o pior. A realidade é ambígua, é isso e aquilo ao mesmo tempo. É e não é. Trata-se do titubeio metafísico de que fala Ortega.

Temos que estar sempre alertas para não nos deixarmos levar pela secura do mundo. Não para fugir dele - outra sequidão - mas para não sucumbir ao seu princípio. Absorver, conviver com o mundo e não ser apenas mais uma coisa nele.

Há sempre a possibilidade de nos desumanizarmos, de nos deixarmos absorver pelo totalitarismo das coisas! Das coisas elas mesmas e das interpretações coisificantes que faze-mos de nós mesmos.

Temos tanto a fazer, tanto a assimilar. Acordamos: notícias nos jornais, que são vários, em quantidade enorme. Telefonemas, secretária eletrônica, e-mail, cartas, contas a pagar. Automóvel, trânsito, poluição. Conserto de automóvel, seguro contra roubo, gasolina. Computador, muito a aprender, muito tempo a perder. Comprar geladeira, fogão, micro-ondas... Discos e livros que são tantos e tantos que tudo parece se dissolver na quantidade. Não dá tempo de ler, de ver, de ouvir. Nada é saboreado por tempo suficiente para que possa realmente ser compreendido (canta Joni Mitchell). Televisão, novelas, canais a cabo, línguas de todo o mundo, notícias misturadas, enxurrada de imagens. E todos esses aparelhos, todas essas tecnologias, tornam-se rapidamente obsoletos. Os ciclos de renovação, de upgrade, são cada dia mais rápidos. Com a entrada dos computadores e com sua conexão em rede mundial, abre-se ainda mais o leque de informações e distrações ao nosso redor. Há quem se fascine por todas essas inovações, há quem as odeie. Não importa muito, uma vez que, em maior ou menor grau, todos estão sendo afetados por essa invasão das coisas.

"What is this thing in life that persuades me to spend
Time away from you?
If you can answer this you can have the moon (...)
Why are there always so many other things to do?

Distractions, like butterflies are buzzing ‘round my head,
When I’m alone I think of you
And the life we’d lead if we could only be free
From these distractions.

The postman’s at the door
While the telephone rings on the kitchen wall,
Pretend we’re not at home and they’ll disappear.
I want to be with you, tell me what I can do,
Nothing is too small
Away from all this jazz we could do anything at all."

... canta Paul McCartney. Ao que parece, na velha Inglaterra a história não anda muito diferente.

Mas essas são as coisas mais óbvias, as visíveis, audíveis, palpáveis. Justamente as responsáveis pela visão da realidade que irá predominar, mesmo quando o homem se der conta de que é diferente de tudo o que há a sua volta.

Veja o caso de Descartes. Reconhecendo a singularidade da sua própria realidade, desloca para o sujeito o foco da filosofia. É uma revolução, o que há de moderno. Faz questão de negar e até mesmo de ignorar o passado. Contudo, recai nele, recai na interpretação da realidade como substância, como coisa. Ele diz literalmente que é uma coisa que pensa. O eu se torna a "coisa que pensa" e o mundo a "coisa espacial". Em Leibniz, essa coisa pensante se torna mais ativa, mas é isolada de vez do mundo. Vira mônada, solidão, sem janelas. A realidade da pessoa humana escapa por entre as mãos dos filósofos e daqueles que começam a criar as ciências do homem.

Assim, vemos o liberalismo nascente associando-se ao pensamento econômico e o indivíduo na teoria liberal sendo colocado numa camisa de força de conceitos universalizantes, substancialistas, coisistas ou, justamente, tentando destruir esses conceitos, mas sempre de maneira insatisfatória como no caso do empirismo.

O mesmo se passa com o Iluminismo na França. A popularização da filosofia do começo da idade moderna e das teorias científicas da época realçam a interpretação naturalista do homem. Em casos extremos o homem é considerado não mais do que uma máquina. Mesmo aqueles que têm uma intuição profunda do indivíduo como Rousseau, na hora que vão fazer suas teorias, cedem ao absolutismo das idéias (1). De Platão a Rousseau não há solução de continuidade. O século seguinte irá encontrar o positivismo, o marxismo, a teoria da evolução. Um se populariza em cientificismo, outro fundamenta a história e - em última análise, o homem - na economia. Outros querem reduzir a realidade do homem à do seu organismo.

Dilthey reclama, com razão, que não corre sangue nas veias do sujeito puro do conhecimento, no "eu" dos filósofos. Unamuno, Nietzsche, Freud e muitos outros, vão reivindicando aspectos da realidade humana, mas sempre se cai em alguma armadilha como o irracionalismo ou em alguma teoria reducionista.

A complexidade da vida é muito grande. A realidade, multifacetada, vacila. Há românticos e clássicos. A música, a religião, o dia-a-dia, são dimensões que são afetadas pelas teorias, pelas políticas, mas por mais que o homem acredite em suas teorias científicas que fazem do outro apenas moléculas, a realidade, por ser real, persiste e ele acaba vivendo como pessoa e com pessoas. Ao ouvir a batida na porta pergunta "quem é?" e não "o que é?". Sabe a diferença entre "nada" e "ninguém" como nos lembra Julián Marías. Mas, aos poucos, essas teorias, espécie de terrorismo de laboratório, vão tendo seu efeito e colaboram para uma degradação das relações humanas.

Pequeno Enxerto Individuante

A filosofia do século XX teve o privilégio de vislumbrar a estrutura aberta da realidade humana: eu sou eu no mundo, ou melhor, viver é estar no mundo. Não estar geograficamente no mundo, mas estar vivendo nele. O estar espacial é uma abstração do estar vivendo. E vivendo concretamente como homem ou mulher. E mais ainda, como essa pessoa única que sou.

Há um trecho de um ensaio do Prof. Roque Spencer Maciel de Barros que capta, dentro do possível, essa intuição da realidade única que somos cada um de nós:

"quero referir-me a uma experiência, entre sentimental e mental, que marcou minha forma de conceber o mundo e, especialmente (uso uma expressão do título de um ensaio de Max Scheler), 'o posto do homem no cosmos'. Foi pouco depois de concluir o curso colegial e de prestar o vestibular para o curso de Filosofia, portanto com minhas reflexões heracliteanas bem vivas e presentes. Com uns amigos, esperava o resultado do exame vestibular num sítio de Caieiras, local rústico em que a natureza falava ainda muito mais do que a civilização. Era um fim de tarde, uma tarde de verão, e eu, sozinho, vagueava por uma trilha aberta em meio de um grande arvoredo, que se esparramava naturalmente, sem ser dominado por algum trabalho humano que o disciplinasse e lhe desse a forma de um bosque cultivado. Creio que ali tive aquela minha 'intuição original' de que fala Bergson e que não é privativa dos grandes filósofos, mas creio eu, de todos aqueles que, à medida de suas forças, se dedicam à tarefa de filosofar. De repente, no esplendor da tarde de verão, eu me senti uma parte ínfima de uma imensa natureza que me tragava e com a qual eu respirava e vivia, compartilhando a imanência de todas as coisas na unidade de uma coisa única. Mas, ao mesmo tempo, de forma ambígua, eu, ser consciente que tinha diante de mim o espetáculo de um mundo que me parecia virgem e como que visto pela primeira vez, sentia-me emergir dessa unidade e separar-me dela de forma irreparável: imanente a ela, eu a transcendia; entre mim e ela era necessária um mediação, mediação que se esboçava já no meu sentimento do mundo e que se clarificava no ato de pensar a própria situação que eu experimentava. Não se tratava, de forma alguma, de algo como corpo e alma, mas de uma unidade que, ao fazer-se consciente, como que me duplicava. Era o meu ser íntegro, corpo e pensamento, que, imanente ao mundo, ao mesmo tempo o transcendia - e, nessa transcendência, que me revelava o meu estar no mundo sem me confundir com ele, sem ser o mundo, eu sentia o imenso abismo da liberdade, como algo que brotava do simples fato de ser eu diante do cosmos e de saber que o era. Talvez me faltassem essas palavras com que descrevo agora essa 'intuição original' (brotada espontaneamente em mim e não apreendida em algum livro) - e nem sei se as que agora digo dão conta dessa situação. O que sei é que ali eu definia, creio que para sempre, a minha visão do 'posto do homem no cosmos'".

(Recordação de Heráclito, in Razão e Racionalidade, T. A. Queiroz, 1993, pp. 211-12)

 

Vivificada por essa experiência radical edifica-se a filosofia do autor. Como ele mesmo diz: "ali eu definia, creio que para sempre, a minha visão do 'posto do homem no cosmos'." E poderia ter dito, como sugere Marías, o posto do cosmos e o posto do homem na realidade radical (2) que é a nossa vida.

Digressão sobre o ser

Não que a vida seja uma coisa da qual faça parte o cosmos e o homem. A vida não é coisa nenhuma. É drama. Está acontecendo. As coisas, o homem, nós mesmos, participamos (3) desse drama, somos atores, personagens, cenários. Mas acostumados a lidar com as coisas, temos dificuldade em pensar algo que não seja coisa. Se a vida não é coisa nenhuma, o que é? Quem disse que a vida é? Se por ser entendermos o mesmo que a nossa tradição filosófica entende, a vida definitivamente não só não é coisa nenhuma, como não é.

Esta suposição de que a realidade é, de que tenha um ser, é oriunda da Grécia (4), no momento em que o homem deixava de crer nas formas anteriores de conhecimento: oráculos, adivinhações, etc. Até então, ele dependia da boa vontade desse fundo latente em se revelar a ele. Era a realidade que, de uma forma ou de outra, teria que se revelar a si mesma (no caso, do judaísmo, por exemplo, o homem pedia a Deus, orava, esperava pela revelação, que dependia, em última instância, da vontade divina). Mas nessa época, instala-se na Grécia a convicção de que as coisas são, no fundo, as mesmas, que derivam umas das outras "por geração e, portanto, têm uma certa consistência pela qual se pode perguntar. Nesse dia a antiga necessidade radical muda de sentido e se converte em algo que - até certo ponto, ao menos - está na mão do homem. O seu perguntar não é mais um perguntar passivo ao oráculo; é dirigir-se à realidade e obrigá-la a responder; é o homem mesmo quem vai averiguar - verificare, verum facere - o que são as coisas" (5).

A verdade deixa de ser apenas aquilo que é dito verazmente ao homem. Passa a ser algo que o homem busca, algo que ele faz para descobrir a realidade. "A metafísica é, pois, uma marcha ou via para a realidade; e, neste sentido, é método, dando a este vocábulo a sua significação mais plena e originária; e não se trata de que a metafísica 'tenha' um método, mas de que o é" (6).

E essa realidade redescoberta foi interpretada como coisa. Como uma grande coisa: ser, natureza, substância. Para o grego a realidade é. E é naturalmente.

Se "tudo o que há" é interpretado como sendo, o mundo será, é lógico, composto de entes, de coisas naturais, e ele próprio será um ente; mas tudo isso é conseqüência de interpretarmos a realidade como sendo alguma coisa.

O conhecimento, desse modo, será uma operação intelectual que tem como suposto uma estrutura concreta do real: aquela em que o real é o que sempre é e não muda nunca. Conhecer implicará na tomada de posse da "consistência" ou essência invariável das coisas que se caracteriza por sua imobilidade; e o pensamento lógico será a forma de pensamento que corresponde a esse modo de ser e que tem os mesmos atributos. Mas esse pensamento só é capaz de pensar o universal e, assim, a "sua irrealidade fica logo visível; antes de mais nada, a lógica tem que renunciar às coisas individuais, que são a realidade na qual me encontro" (7). Ciência, é ciência do universal.

A filosofia grega, que iria sobreviver à própria Grécia, a Roma e à longa Idade Média, torna-se patrimônio Europeu. Assimilada e transformada pelo cristianismo chega até a Idade Moderna, conservando o essencial do pensamento grego, como constatamos em Descartes.

Assim como o homem assume, em parte, a responsabilidade pela descoberta do real, assumirá, também, em parte, um pouco da responsabilidade do mal radical que sempre há no mundo (8). O gênio maligno não é mais do que uma hipótese operacional na teoria de Descartes. Se o homem não desvendou por completo a realidade é porque ainda não encontrara o método adequado.

Ambigüidade Radical
(Ser e Não Ser, Eis a Resposta)

Outro trecho importante do texto citado é: "...me senti um parte ínfima de uma imensa natureza que me tragava e com a qual eu respirava e vivia, compartilhando a imanência de todas as coisas na unidade de uma coisa única. Mas, ao mesmo tempo, de forma ambígua, eu, ser consciente que tinha diante de mim o espetáculo de um mundo que me parecia virgem e como que visto pela primeira vez, sentia-me emergir dessa unidade e separar-me dela de forma irreparável: imanente a ela, eu a transcendia" (grifos meus).

Observa-se duas tendências antagônicas no homem: de um lado, unidade com o cosmos, do outro, separação irreparável. Gostaria de poder voltar a estar em harmonia, em unidade com a realidade, desfazer-se nela, ser guiado pela espontaneidade cósmica como um animal que vive a partir dos instintos. Mas vê-se também que estamos irremediavelmente separados da natureza.

Voltar para o colo da mãe natureza, para o útero materno; entregar-se ao Estado paternalista, às drogas, à atividade frenética que nos dissolve nas coisas e nos assuntos. São formas de fuga à responsabilidade de sermos quem somos.

"O homem - os homens em geral e cada homem em particular - é uma ruptura na continuidade do mundo natural. Inserido neste e sem poder existir fora dele, parte do mundo e submetido a suas injunções, continuando-o como ser biológico que é e não pode deixar de ser (o que afasta de nossas cogitações quaisquer veleidades de pensar o seu espírito como algo pertencente a um outra 'ordem', extra-natural (9), o homem, contudo, só atinge o seu estatuto espiritual à medida que se reconhece distinto do mundo e dele se separa, num ato certamente doloroso, tão doloroso que, provavelmente, é o fundamento da noção de 'queda' ou de 'pecado', que encontramos persistentemente no pensamento arcaico e que continua a obcecar o homem de todos os tempos (...) eliminar essa ruptura, essa divisão, recuperar a unidade caracterizada pela indiferenciação - eliminando-se a consciência de si e, com ela, as decisões, o risco, o desconhecido, a insegurança, o medo, com o retorno ao 'todo primordial' - é uma tentação que freqüenta o homem arcaico e continua a rondar o homem 'civilizado'.

(cf. R. S. Maciel de Barros O Fenômeno Totalitário, Edusp/Itatiaia, 1990, pp. 16-17)".

O totalitarismo político seria uma das concretizações desse totalitarismo mais genérico, talvez a manifestação que melhor nos indique a sua índole, como acredita o Prof. Roque Spencer: "o totalitarismo, como gênero, se caracteriza... pelo esforço de eliminação de toda e qualquer singularidade, pela exigência de absorção no Todo, de que o Partido se proclama representante, pela abolição, enfim, de tudo que seja particular, pessoal, individual. Ele exige a supremacia do coletivo sobre o individual, do nós impessoal sobre o eu pessoal, que deve ser sacrificado em nome daquele ..." (ibidem).

O liberalismo, por sua vez, é expressão da outra dimensão da vida humana, daquela que luta para não ser absorvida pelo impessoal, pelo coletivo. Ortega y Gasset, nesse sentido, sem dúvida, um liberal, dizia que o nosso destino concreto é reabsorver a nossa circunstância, isto é, humanizá-la, torná-la pessoal. Daí sua conhecida frase: "eu sou eu e minha circunstância e se não a salvo, não me salvo a mim".

A filosofia também tem a pretensão de ir contra a opinião pública, de resistir à pressão do coletivo sobre o indivíduo. E aí está o parentesco entre ela e o liberalismo: ambos têm em comum essa tentativa de ir contra a socialização, de valorizar o individual. Só que ambos, também, parecem ter ramificações totalizantes.

O intelecto tem a tendência a ser totalitário, às abstrações igualitaristas, comunistas. Tendem a deixar de lado justamente a realidade do indivíduo. Por isso, não é de se surpreender que sistemas totalitários sejam comuns na filosofia, apesar de sua outra face apontar para a individuação. Platão, um dos arquétipos do nosso pensamento ocidental, tem um projeto de Estado de arrepiar os cabelos. Sai da caverna com grande esforço para se libertar das forças sociais que o acorrentavam e o impediam de ver a realidade, sofre o impacto da mesma e, para sua surpresa, ao voltar para libertar os outros homens não encontra a compreensão deles. A parte não escrita do mito é que ele resolve dar a esse homem, que viu a realidade, o direito de impor a sua visão da realidade a todos os outros e cria um Estado totalitário que, felizmente, jamais saiu do papel (10).

A Corrupção do Liberalismo
(novamente o Totalitarismo das Coisas)

O liberalismo está para a individuação assim como o totalitarismo está para a dissolução do indivíduo no todo. Tem sua origem naquela dimensão da pessoa humana que está sempre em luta para não ser absorvida pelo impessoal cósmico, social, político, psicológico ou o que for.

O liberalismo, como forma histórica concreta, é um fenômeno típico do ocidente e que surgiu não faz tanto tempo assim. Suas origens são, contudo, remotas, já que fazem parte da própria estrutura da realidade. Característico da Idade Moderna, o espírito liberal, valoriza a liberdade pessoal, a privacidade, o indivíduo. O modo de ser liberal teve início na Europa por volta do século XVI e XVII e junto com a técnica científica (11), vem trazendo uma mudança radical para a história mundial. Continua em pleno vigor e se espalhando pelo mundo enquanto os regimes totalitários ou se esfacelaram, ou estão se abrindo aos poucos para formas mais liberais de convivência. Junto com sua consolidação vai se dando uma paganização do mundo, ou melhor, uma dessacralização (fenômeno que ainda é mais característico do ocidente). O homem vai deixando Deus de lado. Aumenta sua confiança em si mesmo, sua confiança na razão natural.

Trata-se da "época dos livros", como diz Ortega em seu Missão do Bibliotecário:

"Até o Renascimento, a necessidade do livro não era socialmente vigente (...) nessa época passa a ter o caráter de fé, fé no livro. A revelação, o que Deus havia dito e ditado ao homem, perde sua eficácia e começa-se a esperar tudo do que pensa o próprio homem com sua razão e, conseqüentemente, espera-se tudo do que o homem escreva".

"Pois bem; a Revolução Francesa deixara transformada a sociedade européia detrás de sua melodramática turbulência. À sua antiga anatomia aristocrática, sucedeu uma anatomia que se auto proclamava democrática. Esta sociedade era a derradeira conseqüência daquela fé no livro que o Renascimento havia sentido. A sociedade democrática é filha do livro, é o triunfo do livro escrito pelo homem escritor sobre o livro revelado por Deus e sobre o livro das leis ditadas pela autocracia. A rebelião dos povos havia sido feita em nome de tudo isso que se chama razão, cultura, etc.".

"Assim é que, por volta de 1840, o livro já não é meramente necessidade no sentido de ilusão, de esperança, mas - sem Deus e com a autoridade tradicional e carismática volatilizada - passa a ser a última instância em que se pode fundar o todo social. É necessário agarrar-se a ele como a uma tábua de salvação. O livro torna-se socialmente imprescindível. Por isso, nessa época surge o fenômeno das tiragens muito numerosas. As massas se lançam aos volumes com uma urgência quase respiratória, como se fossem balões de oxigênio (...). Sem ciências, sem técnicas, essas sociedades de alta densidade populacional e com tão alto nível de vida não podem existir materialmente. E, menos ainda, poderiam viver moralmente sem um grande repertório de idéias. A única possibilidade, por vaga que fosse, de que a democracia chegasse a ser efetiva, consistia em que as massas deixassem de sê-lo por meio de enormes doses de cultura, entenda-se, cultura autêntica, que brotasse com evidência de cada homem e não meramente recebida, ouvida ou lida".

Daí a delicadeza da situação, o liberalismo democrático (12) exige que o homem livre assuma sua responsabilidade num mundo onde as vigências religiosas e morais em geral perderam o vigor. Isso exige, conseqüentemente, um nível de desenvolvimento intelectual e moral que está muito longe de ser alcançado e as técnicas elaboradas para se cuidar do humano são pouco desenvolvidas e quase todas tem os vícios naturalistas das ciências exatas (13).

O liberalismo tem, desse modo, vertentes que o levam, assim como a filosofia, a sua própria anulação (14). O liberalismo esteve desde o início vinculado ao pensamento econômico e hoje é identificado muitas vezes como sendo apenas isso. Mas o que realmente o caracteriza é algo mais profundo, mais essencial, trata-se de uma postura frente a realidade. A liberdade do cidadão, o seu direito à privacidade, à tolerância, têm um papel muito mais decisivo para a economia de um país do que geralmente se reconhece. Não são as políticas econômicas a razão da dianteira dos Estados Unidos em relação ao resto do mundo. É justamente por lá prevalecer uma postura liberal é que é rico. Rico no sentido pleno, de vitalidade, de capacidade de imaginação, de criatividade etc. É por ter uma postura liberal que se acabam tomando medidas liberais na economia (15).

Mas o que se percebe, e aí aparece a vertente totalitária do liberalismo, é que a criação de uma sociedade de massas, sem o incremento necessário de educação da mesma, onde tudo gira em torno da economia e do consumo, está causando uma socialização do homem. Uma "coisificação" do sujeito que é reforçada por uma interpretação científica do homem e ainda mais por um tratamento da pessoa como número, como fator econômico, como mecanismo genético, psicológico, social etc. A isso chamo "totalitarismo das coisas", a vertente do liberalismo que acaba por ser totalitária - por querer fazer do que é parte, o todo.

Os regimes liberais democráticos exigem um equilíbrio bastante delicado, que corre sempre o risco de desandar a qualquer instante. Justamente, por ser a realidade humana um drama e não coisa, nada garante que o liberalismo - ou mesmo a nossa capacidade de individuação -, seja bem sucedido.

A Salvação das Coisas

Como tínhamos visto, as teorias liberais surgiram contaminadas pelos mesmo vícios da filosofia de que procediam, isto é, foram pensadas com conceitos que negam a realidade do indivíduo, principalmente negam a realidade pessoal (16). Ortega y Gasset nos lembra que embora na teologia cristã o Teo fosse cristão, o logos sempre foi grego. O ser - por exuberante que seja - será sempre uma camisa de força para o Deus cristão. Não conseguimos, ainda, nos libertar do modo de ver o mundo que nos foi legado pelos gregos (o que implicaria na absorção e superação do mesmo, mas nunca em seu abandono, o que é mais comum, e que só nos prende mais ainda a ele), embora esse modo de ver o mundo entre em franca contradição com vários aspectos da nossa visão atual da realidade. Não seria menos verdadeiro dizer que o liberalismo também nunca se viu livre da camisa de força dos conceitos que foram criados para realidades não humanas, conceitos criados para lidar com as coisas, com os entes, com a natureza e não criados para se compreender a realidade das pessoas, da convivência entre elas, da história, da realidade social.

Assim, o indivíduo da teoria liberal acaba sendo coisificado. É interessante ver pensadores como Hobbes e Locke, por exemplo, que parecem estar o tempo todo lidando com a realidade histórica, com a realidade do Estado (que não chegam a distinguir da realidade social), se esforcem para dar um "toque" geométrico ao seu pensamento. Tinham uma visão prática da realidade, mas não sabiam muito bem como lidar conceitualmente com ela. O empirismo, talvez uma tentativa de escapar da abstração dos conceitos puros, nunca foi um empirismo até o fim. A experiência pessoal - embora a mais importante e radical - nunca encontrou realmente o seu lugar no empirismo, que ficou mais preocupado com sensações, com psicologismos e biologismos.

O mais perigoso, a meu ver, para o liberalismo é sua identificação com o liberalismo corrompido, que é o grande responsável pela propagação do totalitarismo das coisas. O resultado é que se acaba vendo o liberalismo como sinônimo de exploração das classes oprimidas, como o incentivador da competição impiedosa, do capitalismo selvagem etc. Fica mascarado o fato do liberalismo ter sido o sistema que mais elevou o nível de vida dos países e dá margem a movimentos, que, embora bem intencionados e com não pouca dose de razão, poderiam nos levar a totalitarismos de uma espécie bem pior.

Isso é especialmente válido para países como o Brasil, que não têm uma cultura liberal bem desenvolvida e, por isso, têm que se defender desse perigo. Felizmente, alguns esforços nesse sentido, já vêm sendo feitos, destacando-se a já extensa obra do Prof. Roque Spencer Maciel de Barros. Trata-se de um liberalismo ético, que vê a teoria liberal na sua perspectiva justa, ampla, que abarca a realidade íntegra do homem (o que significa levar em conta também os aspectos econômicos, é claro).

Não abandono, porém, a idéia de levar adiante a fundamentação do liberalismo, partindo dos conceitos criados por Ortega y Gasset e Julián Marías, instalados na perspectiva da razão vital: a teoria que parte da realidade radical, que não é o ser, nem a natureza, mas a nossa vida, a vida de cada um. O que tem pouco que ver com o egoísmo ou com o coletivismo, já que "eu sou eu e minha circunstância e se não a salvo, não me salvo a mim". Tanto a negação do indivíduo, como a negação da circunstância, das coisas, do coletivo, seria uma mutilação do real. Optarmos, desse modo, por um sistema político que negue o indivíduo ou a circunstância (dentre elas a social) é ir contra a própria estrutura do real.


1- O caso de Stuart Mill, mais tarde, na Inglaterra é semelhante. Embora seu utilitarismo não chegue nunca a ser totalitário como o Estado da vontade geral de Rousseau.

2- Realidade onde se radicam todas as outras.

3- Talvez aqui encontremos um novo uso para o conceito de participação: o que as partes são para o todo em uma realidade substancial, a participação seria para a realidade dramática da vida humana.

4- É bom lembrarmos que muitas línguas não possuem a palavra Ser, nem alguma palavra realmente equivalente!

5- Marías, Julián. Obras II - Idea de la Metafísica. Madrid, Revista de Occidente, p. 378

6- Marías, Julián. Obras II - Introducción a la Filosofía. Madrid, Revista de Occidente, p. 284.

7- Idem. Essa interpretação que faço da filosofia é calcada nas obras do filosófo Julián Marías citadas acima.

8- O fato de que muitas teorias da época considerassem o homem essencial-mente bom, não vai contra o que digo. A maldade poderia ser insubstancial, ter origem na falta de consciência, mas não era atribuída a seres divinos, vinha da esfera humana, social em alguns casos.

9- Julián Marías define a pessoa humana como alguém corporal. Isto é, não se trata de um corpo e nem de alguém incorpóreo. Os dois extremos são abstrações, reduções da nossa realidade a algum aspecto seu. É como o caso da mulher grávida que jamais diria: "meu corpo está grávido" mas "Estou grávida", o que não tem nada de espiritualismo. Somos corpóreos, vivemos corporalmente a nossa vida, o que é muito diferente de sermos corpo. Não há necessidade de pensarmos a realidade do homem como espírito ou matéria. A dificuldade surge quando pensamos a realidade como coisa e separarmos a res extensa da res pensante. A nossa realidade não é coisa nenhuma, insisto, é estar vivendo corporalmente, é drama corpóreo.

10- Recuperar o que os sofistas tinham de bom é uma das missões mais urgentes da filosofia. Se bem que o lado vencedor (Sócrates, Platão e Aristóteles) seja, quanto ao aspecto filosófico, indiscutivelmente superior, a perspectiva dos sofistas, colocando o homem como medida de todas as coisas, parece a mais acertada.

11- É necessário deixar bem claro, que qualquer crítica ao modo de pensar científico ou a ciência, está dirigida ao uso desse modo de pensar em áreas que não lhe convém. Sou profundo admirador da ciência enquanto ciência e também das tecnologias que o casamento da técnica e da ciência possibilitaram.

12- À idéia do liberalismo veio se juntar à idéia da democracia e somente os dois juntos são capazes de satisfazer a aspiração que temos atualmente.

13- Há um título de um livro de psicoterapia que é bem sugestivo: "Cem anos de psicoterapia... e o mundo está cada vez pior".

14- Aliás, antes do que em qualquer coisa, encontramos em nós mesmos essa potencialidade para a autodestruição.

15- Embora seja possível também que a liberdade econômica acabe por favorecer às outras liberdades. Há como que um sistema de liberdades que se sustentam reciprocamente.

16- Aqui há margem para confusão... muitas teorias admitem o indivíduo como o mais real, como a base para toda a abstração, mas trata-se de uma coisa individual, o que é muito diferente do indivíduo no sentido que estamos usando, i.e., o indivíduo enquanto pessoa.