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Hermoso y deleitoso castillo:
as Moradas de Teresa de Jesus

(Texto da prova de erudição do Concurso para Professor Titular em Literatura Espanhola junto ao Departamento de Letras Modernas FFLCHUSP, 03-06-05)

 

María de la Concepción Piñero Valverde

 

Quem repassar por um momento o cânone do período clássico das literaturas ocidentais, talvez não encontre muitos exemplos de presença feminina. Menos ainda entre os criadores de texto reconhecido como obra-prima.

A literatura espanhola oferece um desses poucos exemplos. Ao lado dos castelos imaginados por Dom Quixote, nela achamos um castelo criado pela imaginação feminina. Falamos das Moradas del castillo interior.

O nome histórico de sua autora é Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada. Também conhecida como Teresa de Ávila, por associação com sua cidade natal, e celebrada na Igreja com o título de Santa Teresa. É sabido que ela nasceu em 1515, numa família de origem judaica, foi autora de grandes textos místicos e iniciadora de um dos principais movimentos espirituais do século XVI, a reforma do Carmelo. Faleceu em Alba de Tormes, em 1582.

Mas, sem esquecer as demais dimensões da figura de Teresa, a histórica e a espiritual, aqui nos ocuparemos, principalmente, de seu lugar como escritora. E nos referiremos a ela como Teresa de Jesus, nome com que assinou as Moradas e todos os seus textos.

Falar das Moradas é para mim reencontrar uma obra que se impôs à atenção desde muito cedo. Peripécias novelescas levaram o manuscrito teresiano à minha cidade, Sevilha. Por temor à Inquisição, o original havia sido entregue a um cavalheiro sevilhano por um amigo de Teresa, o padre Gracián. A filha e única herdeira do depositário levou consigo o texto ao Carmelo das descalças de Sevilha, onde professou. Desde então ali está guardado, e assim eu o pude contemplar em várias ocasiões.

As Moradas são a obra-prima de uma escritora tardia. Os primeiros textos de Teresa aparecem perto de seus cinqüenta anos, no início da década de 1560, quando foi escrita sua autobiografia. Ela estava em um momento que já lhe permitia fazer uma síntese de sua existência: “miro como desde lo alto”, dirá no Libro de la Vida [1] . Cerca de dez anos mais tarde surgem as Moradas del castillo interior. Teresa tinha então passado dos sessenta anos e atravessava um dos períodos mais difíceis de sua vida, que chama de “tiempos recios”. Sua luta pela reforma do Carmelo parecia fadada ao insucesso; o Livro de la Vida tinha sido confiscado pela Inquisição; seu amigo e principal colaborador, Juan de la Cruz, se encontrava encarcerado. Pois é nesse momento, entre junho e novembro de 1577, que aparece sua nova criação literária.

As Moradas, como diz a autora, tratam de “cosas de oración” [2] . E de fato, a obra é fundamental para a mística do Ocidente e como tal vem sendo quase sempre analisada. Contudo, é preciso dizer que desde cedo houve tentativas de valorizar Teresa para além desse discurso. Basta lembrar que seu primeiro editor, religioso, mas também poeta, o clássico frei Luis de León, chamava a atenção para o valor expressivo de sua escrita. Terá sido, aliás, este reconhecimento o principal motivo do interesse por suas obras como textos de prosa castiça, monumentos da língua castelhana. Não podemos agora passar em revista os numerosos estudos lingüísticos da obra teresiana, desde os trabalhos de Menéndez Pidal. Vale recordar somente a afirmação de Azorín: “en cuanto al lenguaje, Teresa de Jesús es más lección que Cervantes, porque en Cervantes encontramos el castellano ya hecho y en Teresa vemos cómo se va haciendo”. Ainda aqui, entretanto, os escritos de Teresa são recebidos como notáveis documentos filológicos, mas não tanto como obra de literatura.

Somente há cerca de trinta anos, sobretudo graças ao trabalho publicado em 1978 por Víctor García de la Concha, começa a falar-se mais vezes em “arte literário” de Teresa de Jesus. Mesmo assim, as pesquisas desse crítico retomam, principalmente, a análise lingüística dos textos e, em certa medida, sua organização retórica, aproximada de precedentes como as Confissões agostinianas.

Mas isto mesmo confirma que até na pesquisa das fontes literárias de Teresa continua a prevalecer a atenção ao discurso religioso. É notável a importância de Agostinho na obra teresiana. É também certa a presença, nessa obra, de escritores ligados ao humanismo cristão pós-tridentino e à espiritualidade do ‘Recogimiento’. Mas o que resta saber é qual seria a importância, para Teresa, de fontes estranhas à tradição teológica? O que parece ficar sempre na penumbra é a hipótese de que um texto como as Moradas possa apresentar nexos com toda a cultura do século XVI.

Esta hipótese tem sido às vezes prejudicada pela discutível interpretação dada a um juízo do citado Menéndez Pidal, que se refere aos escritos teresianos como redigidos em “estilo ermitaño”. Nasceu assim a imagem de uma Teresa toda ‘ermitaña’, alheia às correntes culturais de seu tempo. Imagem que parece reforçada pela própria escritora. Ela é quem repete que não é mulher de letras. Sabemos, aliás, quantas restrições pesavam sobre a instrução da mulher, nesse período.

Mas é preciso refletir sobre o alcance desta confissão. Ao dizer que não era letrada, o que Teresa reconhece é que não tinha formação intelectual sistemática. Mas será que isto a impediria de dialogar com a cultura literária de seu tempo? Sabemos, por seu próprio testemunho, que seu pai havia formado uma biblioteca e que a punha à disposição dos filhos. Diz ela no Libro de la Vida: “Era mi padre aficionado a leer buenos libros y ansí los tenía de romance para que leyesen sus hijos” [3] . E estamos falando da mulher cuja biografia a levou a percorrer toda a Espanha e tratar com pessoas de todas as condições sociais, sem excluir eruditos e autoridades, entre as quais o próprio rei. Seu epistolário testemunha a vastidão de tais interesses. É significativo, também, que no convento Teresa se mantenha sempre atenta aos assuntos de família e que por meio de seus irmãos, radicados em terras americanas, se informe do que acontecia no além-mar. Enfim, lembremos que, ao contrário da tradição monástica, Teresa cria comunidades não em lugares ermos e afastados, mas em núcleos urbanos, nas principais cidades espanholas.

Não se pode, pois, continuar a evitar a questão do lugar da cultura do século XVI no contexto da obra teresiana. Tanto que hoje alguns estudiosos, em especial algumas estudiosas, começam a aproximar Teresa de outros protagonistas da época. Isto não significa sustentar que ela houvesse tido acesso direto às fontes da cultura da Renascença. A censura de livros, desde o Índice de Valdés, de 1559, era mais que bastante para lhe dificultar ou impedir esse acesso. Mas o que não se pode negar é que, em seus escritos e, especificamente, nas Moradas, a cultura de seu tempo se faz presente, ainda que por caminhos indiretos.

Tome-se o caso evidente do erasmismo. Graças sobretudo aos trabalhos de Marcel Bataillon, é bem sabido o que representou Erasmo na Espanha do século XVI. Visto a princípio como força renovadora dentro da ortodoxia cristã, logo depois objeto de suspeita e censura, seu nome é inseparável da cultura espanhola da Renascença. Pois bem, é preciso notar que as Moradas fazem referências a posições do humanista flamengo. Há nessa obra pelo menos um importante indício que permite supor que a escritora tenha tido conhecimento do Enchiridion, traduzido ao castelhano em 1524, “en una agradable prosa, fácil y familiar”, como diz Bataillon [4] .

Dado o prestígio de Erasmo na Espanha de início do século XVI, é provável que na biblioteca do pai de Teresa, essa obra estivesse entre os livros traduzidos, ou "de romance", como diz ela. Mas, tenha ou não encontrado ali esse texto, certo é que, nas Moradas, a escritora trata de uma questão cognoscitiva levantada pelo Enchiridion. Refiro-me ao papel da imaginação no conhecimento religioso. Efetivamente, o humanista flamengo exclui o recurso às imagens mentais em certo momento da experiência espiritual e propõe, em seu lugar, a contemplação abstrata da divindade. Já Teresa, nas Moradas, ressalta que “vivimos en cuerpo mortal” [5] , e que as imagens criadas pela fantasia sempre podem servir-nos, até mesmo na experiência mística. A escritora tinha, pois, notícia, direta ou indireta, da questão tratada por Erasmo, questão à qual oferece solução própria.

Esta independência da proposta das Moradas é outra característica que aproxima a autora da cultura de seu tempo. É conhecida a polêmica do pensamento humanista contra certos abusos do argumento de autoridade. Esta atitude crítica já se encontra na Invectiva de Petrarca e o próprio Erasmo a adotará nos Colloquiae e em seu famoso Elogio da Loucura, o Encomium Moriae.

No caso de Teresa, é muitas vezes citado seu apreço pela autoridade da erudição e dos intelectuais, pelas letras e letrados: “Gran cosa es el saber y las letras para todo”, diz ela, por exemplo, nas IV Moradas [6] . Mas o que não se costuma ressaltar é que as Moradas também apresentam momentos de crítica ao peso da autoridade de certos conceitos tradicionais.

Mesmo antes, desde o Libro de la Vida, Teresa se havia afastado da organização convencional do discurso religioso, ao falar em “trastornar la retórica” [7] . E nas Moradas ela anuncia que empregará a linguagem simples e coloquial das mulheres a quem se dirige. A escritora bem sabe, como diz no Prólogo, que “mejor se entienden el lenguaje unas mujeres de otras” [8] .

Teresa sente-se pouco à vontade com a terminologia em que as autoridades intelectuais descreviam os fenômenos interiores. Falava-se em sentidos, potências, elevações e descidas da alma. Com esses termos, ela afirma nas Moradas que não seria capaz de se explicar:  “Dicen que el alma se entra dentro de sí, y otras veces que se sube sobre sí. Por este lenguaje no sabré yo aclarar nada” [9] . Note-se que Teresa conhece a linguagem dos letrados, mas prefere deixá-la de lado. Neste sentido, seu trabalho tem analogia com o de pensadores como Descartes e outros contemporâneos, que se expressaram fora do léxico erudito tradicional.

Acabamos de ver que as Moradas anunciam que se empregará a linguagem comum das mulheres. E esta linguagem se distingue do discurso erudito formal, em primeiro lugar, por valorizar as imagens. Já sabemos que nem durante a oração Teresa quer ficar em conceitos abstratos. Assim, as Moradas falarão por imagens concretas e pitorescas, ainda quando tratem de temas espirituais. Serão personificadas as sensações, as emoções, as faculdades internas. Tudo se transformará na população de um grande castelo, ameaçada por estranhos. Ela diz nas Moradas: “Hagamos cuenta que estos sentidos y potencias, que ya he dicho que son la gente de este castillo - que es lo que he tomado para saber decir algo -, que se han ido fuera y andan con gente extraña, enemiga del bien de este castillo, días y años” [10] .

Mas é preciso acrescentar que, além de operar essa reviravolta discursiva, a escritora sabe resistir ao simples argumento de autoridade. Mesmo quando se invocam autoridades religiosas. É notável, a esse respeito, outro trecho das Moradas. Nele se levanta um debate da época, em que para contestar a posição de Teresa, alguém alegou o texto de um mestre espiritual, Pedro de Alcântara. Ela, entretanto, não viu razão para mudar o que pensava. São estas suas palavras:

“[…] aunque ha sido contienda bien platicada entre algunas personas espirituales. Y de mí confieso mi poca humildad que nunca me han dado razón para que yo me rinda a lo que dicen. Uno me alegó con cierto libro del santo fray Pedro de Alcántara, que yo creo lo es, a quien yo me rindiera, porque sé que lo sabía, y leímoslo, y dice lo mesmo que yo, aunque no por estas palabras” [11] .

O que acabamos de ler só se torna explicável no quadro da cultura em que se plasmou a obra teresiana. Trata-se, afinal, do critério de certeza fundado na razão: “Nunca me han dado razón para que me rinda”, acabamos de ouvir. E a razão pressupõe a experiência, sem a qual não há certeza racional. Diz também Teresa, nas VI Moradas: “de lo que no hay experiencia mal se puede dar razón cierta” [12] .

Para entender o alcance da afirmação teresiana, basta lembrar que este será, pouco mais tarde, o ponto de partida de Bacon e de todo o empirismo europeu. Sabe-se que o filósofo inglês propõe a expulsão dos "idola" para o acesso ao conhecimento racional. Antes dele, Teresa, com sua linguagem feita de imagens, propunha que se expulsassem do castelo as "savandijas", a fim de poder chegar a uma experiência de fé. Esta dimensão racional e experimental das Moradas é que abre caminho para Bergson e a moderna reavaliação dos fenômenos místicos.  Aliás, ao levar a experiência para o plano interior, Teresa continua a representar tendências de seu tempo. Lembre-se que poucos anos depois das Moradas apareciam os célebres Ensaios. Neles, como se sabe, Montaigne declara tomar a si mesmo por assunto de suas reflexões e de seu livro.         

O estudo das Moradas fica, pois, gravemente reduzido se quisermos apresentá-las somente como fruto do agostinismo, da ‘devotio moderna’ e da espiritualidade do ‘Recogimiento’. Enfim, como exemplo da cultura religiosa, que está, sim, visceralmente presente nesta obra, mas não a esgota. Pois é preciso acrescentar que a obra-prima teresiana é também expressão da totalidade da civilização de seu tempo.

Podemos voltar à questão da importância do diálogo das Moradas com fontes literárias seculares. Isto nos leva ao gênero  mais difundido na Espanha do século XVI. Gênero que a futura escritora freqüentou com gosto, como ela própria reconhece. Falamos, como se sabe, do romance. E, particularmente, do romance de cavalaria.

O Libro de la Vida não deixa dúvida quanto à afeição juvenil de Teresa por essas leituras. Vale reler suas palavras:

“Era [mi madre] aficionada a libros de cavallerías y no tan mal tomava este pasatiempo como yo le tomé para mí, porque no perdía su labor, sino desenvolvíemonos para leer en ellos [...] Yo comencé a quedarme en costumbre de leerlos [...] Y parecíame no era malo, con gastar muchas horas del día y de la noche en tan vano ejercicio, aunque escondida de mi padre. Era tan estremo lo que esto me embebía, que si no tenía libro nuevo, no me parece tenía contento” [13] .

O depoimento é fundamental. Chama logo a atenção que os livros de “pasatiempo”, como os de cavalaria, tenham servido a Teresa para o desenvolvimento do hábito de leitura. Teresa, como leitora, se formou nesses romances, em que ficava absorta. É verdade que ela também deplora esse apego juvenil. Mas, se observarmos bem, a crítica se dirige menos a esses livros, que em gastar tempo demais em sua leitura. Seja como for, é inegável que os livros de cavalaria marcaram um dos momentos principais  de sua formação intelectual.

Isto, aliás, não é de estranhar. Não podemos esquecer a larga difusão da literatura de cavalaria entre os leitores dos tempos de Teresa: só assim entenderemos, também, todo o alcance da obra de Cervantes.

Por isto mesmo seria de esperar que esse gênero de raízes medievais, e tão popular no século XVI, houvesse deixado importantes indícios na obra teresiana. Entretanto, quase nada encontraram os que se dedicaram a investigar o tema, como Marcel Bataillon e García de la Concha. Tudo o que conseguiram, ao buscar esses indícios, respigar um ou outro exemplo. Em resumo, diz o crítico espanhol, “no encontramos en los escritos teresianos demasiados vestigios de tanta afición”. O que se observa dos livros de cavalaria na obra de Teresa, segundo o mesmo crítico, seriam vagas alusões. Entre elas, lembranças da realeza de Cristo e menções de algumas armas de combate. Quando muito, um breve trecho do Libro de la Vida [14] poderia talvez evocar as Sergas de Esplandián [15] . Resultado, afinal, decepcionante.

À primeira vista, seria possível conformar-nos com essa conclusão e pensar que a escassez de indícios das primeiras leituras nos escritos de Teresa se explicaria por sua mudança de vida. Entre a jovem leitora dos romances de Amadís e Esplandián, e a carmelita, leitora dos tratados espirituais de Francisco de Osuna e de Bernardino de Laredo, teria havido uma ruptura. Entretanto, tal explicação parece precipitada, diante do que afirma uma testemunha contemporânea.

Essa testemunha é uma parenta da escritora, María de Ocampo. María foi pedir a Teresa que a admitisse no Carmelo. No encontro, confessou que gostava também de ler livros de cavalaria e logo notou que isso causava alguma perplexidade. Contudo - este é o ponto importante - Teresa não lhe pediu que evitasse essas leituras. Mais ainda: chegou a dizer que dessas leituras poderiam vir bons hábitos. Segundo María de Ocampo, Teresa esperava que esses livros a  levassem ao hábito de ler também os livros necessários à sua nova vida [16] .

Não faltam, pois, razões para pensar que Teresa, como escritora, poderia recorrer às técnicas de narrativa que havia aprendido nos romances em que havia formado o hábito de ler. Romances, diga-se de passagem, onde não faltava ao menos um exemplo de autoria feminina.  Falamos de Beatriz Bernal, autora do Cristalián de España, publicado em 1545.  É estranho, por tudo isso, que pouco ou nada se tenha aventado quanto a esse gênero literário como uma das principais fontes das Moradas.

O que talvez dificulte ainda hoje a identificação da presença de alguns desses textos na obra-prima de Teresa é a tendência de alguns a desvalorizar a literatura de entretenimento, em particular os romances de cavalaria. Sabe-se que, a partir dos anos centrais do século XVI, fatores importantes levarão à decadência desse gênero. É então que passa a difundir-se a Poética de Aristóteles, tomada como texto normativo. Sem claros precedentes clássicos e sem pretensões à verossimilhança, as novelas de cavalaria começavam então a declinar. Além disso, com o Concílio de Trento, a reforma católica tende a valorizar a função edificante das letras. Função que mal se coaduna com as chamadas “mentiras”, ou seja, com o fantástico e o sensual dos mirabolantes romances de Amadís e outros cavaleiros.

Exemplo conhecido desse clima cultural é uma obra terminada dois anos antes das Moradas, em 1575: a Jerusalém Libertada de Tasso. O poema anuncia desde o início  que se afastará da tradição fantasiosa das aventuras de cavaleiros para cantar o fato histórico da Cruzada. O elemento de ficção, quando aparece, tem somente valor edificante. Tanto que desde o início o poeta pede perdão à musa cristã pelas concessões ao fantástico.

Se quisermos ficar no mundo ibérico, lembremos um conhecido episódio de Cervantes. Ao hospedar em sua casa Dom Quixote, o anfitrião, o Caballero del Verde Gabán, afirma que em sua biblioteca não havia lugar para os livros de cavalaria. Assim diz ele: “Tengo hasta seis docenas de libros, cuáles de romance y cuáles de latín, de historia algunos y de devoción otros; los de caballerías aún no han entrado por los umbrales de mis puertas. Hojeo más los que son profanos que los devotos, como sean de honesto entretenimiento, que deleiten con el lenguaje y admiren y suspendan con la invención, puesto que déstos hay muy pocos en España” [17] Note-se que os livros de cavalaria ficam excluídos do rol das obras de “honesto entretenimiento”.

Os intelectuais, portanto, afastam-se gradualmente desta literatura até então muito difundida. E não só os mais sensíveis ao movimento tridentino: também os outros. Exemplo da mudança é o já citado Montaigne, para quem as aventuras de Amadís e outras semelhantes só o interessaram durante a infância [18] .

Podemos aproximar do testemunho de Montaigne o citado trecho do Libro de la Vida de Teresa de Jesus. Dizia a escritora que os livros de cavalaria haviam sido a literatura preferida de sua mãe e dela própria. Temos então dois escritores do século XVI que concordam num ponto: ambos mostram que as novelas em geral, e as de cavalaria em particular, iam sobrevivendo como leitura do público de menor exigência intelectual, como eram então consideradas as mulheres e crianças. Iam sobrevivendo como leitura popular, afinal. Pois é neste momento que se começava a formar a "hierarquia de gêneros" de que fala Bakhtin. Como se sabe, o crítico russo, em seu estudo sobre a cultura popular, identifica, justamente entre os séculos XVI e XVII, o surgimento de uma gradação de gêneros literários, que irá relegar a condição marginal a literatura popular de entretenimento.

Esse quadro desfavorável começa a se delinear, portanto, a partir dos anos em que se compõem as Moradas. Assim, desde o início terá ficado prejudicada a hipótese do diálogo entre a leitura mais popular da Espanha renascentista e uma obra tida por estritamente religiosa, como as Moradas. Logo veremos que uma tentativa de aproximar esses textos foi recebida com assombro.

A hipótese, entretanto, merece retomar-se não só em relação às Moradas, mas no tocante à obra teresiana, em geral. Não cabe agora desenvolvê-la nesses termos mais amplos. Para dar um exemplo, pensemos no Desafío espiritual. A própria organização do texto se refere ao combate entre cavaleiros, a uma "justa". Todas as metáforas do Desafío teresiano remetem ao mundo da cavalaria. Chamam a atenção, especialmente, estas palavras dirigidas ao ‘mantenedor’, o organizador da justa:

“Ha de ser a condición que el mantenedor no vuelva las espaldas estándose metido en esas cuevas, sino que salga al campo de este mundo adonde estamos. Podrá ser que, viéndose siempre en guerra, adonde ha menester no quitarse las armas, ni descuidarse, ni tener un rato para descansar con seguridad, no esté tan furioso [...]” [19] .

É curioso notar que no início do Desafío a escritora se mostra consciente das restrições à presença, em obras espirituais, de recursos da literatura de ficção. Teresa, como Tasso, procura justificar-se, assegurando que, para além das imagens fictícias, estamos diante de um verdadeiro combate interior. Diz ela: “Esto es gran verdad, sin ficción”.

Vale considerar, pois, a hipótese das relações das Moradas com a literatura de cavalaria. Relações que parecem ter sido apontadas ao menos uma vez entre contemporâneos da escritora. É o que levam a pensar certos registros feitos alguns anos depois da morte de Teresa. Tomemos o processo de Burgos, de 1610. Nele se contém um depoimento do carmelita Antonio de la Madre de Dios. Ao falar da circulação das obras de Teresa, o religioso se mostra surpreso diante de um caso de recepção das Moradas. Assim se registram suas palavras: “En un autor moderno y grave ha visto llamar al libro de las Moradas Castillo Encantado, y no ha podido entender por qué le llamaba así sino por el encanto que causa en las almas” [20] .

Desde cedo, portanto, houve quem chamasse as Moradas de Castillo Encantado. Isso assombrava certos religiosos. Tanto que o que acabamos de citar se apressava em dar sentido espiritual ao título profano. Não sabemos quem se referia às Moradas como Castillo Encantado, mas era certamente alguém descrito como “autor” e como “grave”. Isto deixa entender que já nessa época um escritor ou letrado de certo prestígio parecia intuir a existência de laços entre a obra-prima teresiana  e os livros de entretenimento, em particular as novelas de cavalaria.

As Moradas, por sua vez, parecem convidar também a essa leitura alternativa. A própria descrição do castelo teresiano, feito de cristal translúcido, desperta visões de encantamento, próprias dos romances de aventura. Teresa nos põe diante de “un castillo, todo de un diamante u muy claro cristal, adonde hay muchos aposentos, ansí como en el cielo hay muchas moradas” [21] . O castelo, figura central no texto, articula-se em sete moradas, ou aposentos concêntricos, e todo o seu espaço é povoado de plantas, de animais, de figuras humanas.

A fonte religiosa óbvia dessa estrutura literária é uma imagem evangélica. A escritora mesma alude, como vimos, às “muitas moradas da casa do Pai”. Contudo, a partir daqui a escritora desenvolve uma riqueza espacial inesperada, criando planos superiores e inferiores, além do aposento central, de onde a claridade solar do Rei se espalha por todo o edifício cristalino. Ela assim descreve a organização do castelo:

“Pues consideremos que este castillo tiene – como he dicho – muchas moradas, unas en lo alto, otras en bajo, otras a los lados, y en el centro y mitad de todas éstas tiene la más principal, que es adonde pasan las cosas de mucho secreto” [22] .

Não parecem convincentes hipóteses de outras fontes religiosas dessa figura. Escritores espirituais lidos por Teresa, como Francisco de Osuna e Bernardino de Laredo, mencionam, eventualmente, alguns castelos, mas em nenhum caso como imagem central. O castelo, quando aparece em seus tratados espirituais, tem lugar secundário. Além disso, é sempre mostrado como torre inteiriça e não como o edifício articulado das Moradas. Isso porque estes tratados não estabeleciam distinções claras entre os estágios místicos. A vida interior era apresentada em conjunto, por meio de conceituações abstratas. A descrição pormenorizada da riqueza e diversidade da vida interior, traduzida nas belas imagens dos ambientes do castelo, constitui, segundo a crítica, a principal contribuição de Teresa à história da mística ocidental.

Neste ponto, entretanto, é preciso acrescentar que a imagem do castelo é encontradiça justamente no gênero literário freqüentado por Teresa em sua juventude, ou seja, a literatura de cavalaria. E há aqui um caso, ao menos, que revela afinidade com o castelo teresiano. Isto porque as Moradas contêm sete aposentos e lemos algo de semelhante no Amadís de Grecia. Este romance foi publicado em 1530, quando Teresa tinha quinze anos. E se tornou tão popular que, até o final do século, teve outras seis edições. Em um de seus trechos, assim se descreve o edifício construído pela maga Zirfea: “allí hizo los siete castillos que el castillo del tesoro tenía obrado” [23] .

Cabe voltar, a esta altura, ao que ensina Bakhtin. Para ele, como se sabe, a literatura de cavalaria se caracteriza por um cronotopo: “o mundo do maravilhoso no tempo da aventura”.  Essa tempo-espacialização cronotópica, que unifica gêneros literários, pode em certos casos traduzir-se - ainda segundo o crítico -, justamente na figura central do castelo. E é isso o que se dá nas  Moradas.

Mas, o que chama a atenção no castelo teresiano, além de sua centralidade, é que os aposentos estão dispostos em círculos. Têm-se procurado possíveis precedentes literários da circularidade em alguns textos árabes, algumas imagens da Divina Comédia e, na literatura castelhana, na sinuosidade do labirinto do Cárcel de Amor, de Diego de San Pedro. Nem podemos esquecer, fora da literatura, as muralhas que cercavam Ávila, cidade natal de Teresa.

Mas o castelo teresiano não é simplesmente circular: organiza-se em círculos concêntricos. E quanto às fontes dessa estrutura original, a própria escritora nos dá uma pista. Sua imagem estaria fundada, uma vez mais, na experiência, que ela tanto valorizava. A própria observação da natureza a levaria à estrutura circular e concêntrica. Com a linguagem simples das mulheres, diz que seu castelo tem a figura de um “palmito”. Vale recordar suas palavras: “Pues tornemos ahora a nuestro castillo de muchas moradas. No havéis de entender estas moradas una en pos de otra como cosa en hilada, sino poned los ojos en el centro, que es la pieza u palacio adonde está el rey, y considerad como un palmito, que para llegar a lo que es de comer tiene muchas coberturas, que todo lo sabroso cercan” [24] .

Notemos, pois, mais de perto, essa arquitetura dos sete aposentos circulares. Trata-se de uma estrutura de sucessão, de passagem. São câmaras que se percorrem, para se chegar, afinal às moradas solares do “Rey”, à festa das “bodas”. Observamos aqui uma expressão original do movimento que anima os romances de cavalaria, em especial os do ciclo arturiano. Como se sabe, a aventura desses romances é dada justamente pelo andamento da busca, da “quête”, ou, para usar o termo da época, pela demanda do cavaleiro.

A demanda tradicional comporta uma sucessão de obstáculos, que se interpõem entre o protagonista e o objeto da busca. Obstáculos que no texto teresiano tomarão as mais variadas formas, de sevandijas a feras ameaçadoras. E o processo de busca implicará, muitas vezes, a transformação, a purificação do protagonista. É o que nas Moradas se indicará, por exemplo, na conhecida página que conta a transformação do bicho-da-seda em borboleta.

Esse processo de busca, presente desde o início nas Moradas, ganha maior vivacidade quando a escritora introduz, numa belíssima imagem, a figura correspondente à do cavaleiro dos romances. Teresa cria como protagonista uma figura feminina, a “blanca palomica”, também chamada de “mariposilla”. Desde que aparece, nas ‘Moradas Quintas’, a “palomica”, com seu esvoaçar pelo castelo, assegura à narração o continuum de movimento que era dado, nos romances, pelas andanças do cavaleiro.

Não podemos aqui evocar todos os lances aventurosos em que se envolve a protagonista. Em um deles, por exemplo, aparece acorrentada. É um momento em que sua situação é explicitamente reportada aos limites impostos à mulher. Diz a escritora:

“si es mujer, se aflige del atamiento que le hace su natural […] y ha gran envidia a los que tienen libertad para dar voces, publicando quién es este gran Dios de las cavallerías. ¡Oh pobre mariposilla, atada con tantas cadenas, que no te dejan volar lo que querrías!” [25] .

A protagonista, além disso, permite à escritora criar certo clima de expectativa, de surpresa, fazendo-a esconder-se e reaparecer inesperadamente. “Pues tornemos a nuestra palomica”, diz Teresa, depois de a deixar algum tempo na penumbra [26] . E o resultado desse recurso literário era criar, no destinatário, a curiosidade de conhecer a continuação da história, exatamente como nas obras de “pasatiempo”. Teresa tinha consciência disto. Veja-se o que diz, no final das “Quintas Moradas”, já perto da conclusão de toda a obra: “Paréceme que estáis con deseo de ver qué se hace esta palomica y adónde asienta [...] no os puedo satisfacer de este deseo hasta la postrera morada” [27] . É como se dissesse: querem saber o que acontece? leiam até o último capítulo. Teresa escritora joga com recursos literários ainda hoje presentes em gêneros literários populares, mas que remontam à técnica das novelas de cavalaria. Foi em suas páginas que a escritora terá aprendido a captar a atenção de quem lê, com histórias sempre bem contadas.

A narração da demanda se encerra no momento dos desposórios com seu Rei. Tudo ocorre na câmara secreta, uma adega onde corre o vinho embriagador, tão freqüente na literatura mística. Para alegria dos leitores, a aventura da “palomica” tem final feliz.

O que se pode indagar, agora, é se não se desvia do propósito da escritora a leitura alternativa das Moradas. Por outras palavras, trata-se de saber se a organização textual permite ler as Moradas, também, como obra literária que se abre, ao menos em parte, à perspectiva da leitura de entretenimento, de “pasatiempo”, como os romances de cavalaria.

Este ponto nos parece ter ficado inexplorado. E é justamente um ponto em que a escritora poderá, uma vez mais, surpreender. Se lermos com atenção o fecho das Moradas talvez encontremos a resposta.

De fato, no Epílogo, Teresa relembra, primeiro, as contrariedades dos tempos difíceis em que havia começado a escrever. E em seguida se diz contente, mas não só por haver composto uma obra espiritual, que ajudaria as monjas nos caminhos da mística. A escritora olha para suas leitoras, as carmelitas, sempre encerradas no pequeno espaço das celas, em sua vida de oração e trabalho, onde há pouco lugar para as distrações e a recreação. E fica satisfeita, afinal, por ter escrito um livro que poderá ajudar essas leitoras a dar largas à fantasia, a espairecer com plena liberdade. São estas as suas palavras:

“Aunque cuando comencé a escrivir esto que aquí va fue con la contradicción que al principio digo, después de acabado me ha dado mucho contento y doy por bien empleado el trabajo, aunque confieso que ha sido harto poco. Considerando lo mucho encerramiento y pocas cosas de entretenimiento que tenéis, mis hermanas, y no casas tan bastantes como conviene en algunos monesterios de los vuestros, me parece os será consuelo deleitaros en este castillo interior, pues sin licencia de los superiores podéis entraros y pasearos por él a cualquier hora”. E acrescenta: “Aunque no se trata de más de siete moradas, en cada una de éstas hay muchas, en lo bajo y alto y a los lados, con lindos jardines y fuentes y laberintos, cosas tan deleitosas, que desearéis deshaceros en alabanzas del gran Dios que lo crió a su imagen y semejanza” [28] .

Poucas vezes um escritor terá deixado tão claro que sua obra se abre à dimensão recreativa. Teresa sabe que suas leitoras contam com poucas distrações e as convida a se deleitar não só com o castelo de suas próprias almas mas com o castelo literário que criou. E neste convite se confirma sua independência diante das autoridades. O passeio por entre as fontes e jardins poderá ocorrer mesmo sem licença dos superiores. A qualquer hora será possível ler as aventuras da "blanca palomica" enamorada, que em demanda de seu Rei percorre as moradas do castelo, vencendo riscos e surpresas. Este passear com a “palomica” por todo o “hermoso y deleitoso castillo” [29] , se nem sempre ajudará a chegar à experiência mística, sempre poderá ser experiência da beleza, experiência estética.

E aqui podemos concluir como a escritora, circularmente, voltando ao início destas considerações. Dizíamos que Teresa de Jesus é das poucas mulheres que conquistou lugar entre os escritores clássicos das grandes literaturas européias. Lembramos que  suas obras, em particular as Moradas, são pontos culminantes da literatura mística e da prosa castelhana. Pois bem, parece que é tempo de reconhecer a Teresa um novo título, além dos que já lhe são atribuídos. Nela encontramos também a mulher que no século XVI escreve em castelhano uma arrebatadora narrativa de amor e de aventura: as sete fascinantes Moradas del Castillo Interior.



[1] Libro de la Vida, 40, 21.

[2] Moradas, Prólogo, 1.

[3] Libro de la Vida, I, 1.

[4] Marcel Bataillon, Erasmo y España, México, Fondo de Cultura Económica, 1996, p. 191

[5] Moradas, VI, 7, 6.

[6] Moradas, IV, 1, 5.

[7] Libro de la Vida, 15, 9.

[8] Moradas, Prólogo, 5.

[9] Moradas, IV, 3, 2.

[10] Moradas, idem.

[11] Moradas, IV, 3, 4.

[12] Moradas, VI, 9, 4.

[13] Libro de la Vida, 2, 1.

[14] Libro de la Vida, 27, 18.

[15] Victor García de la Concha, El arte literario de Santa Teresa, Barcelona, Ariel, 1978, p. 51.

[16] Efrén de la Madre de Dios, Tiempo y vida de Santa Teresa. Teresa de Jesús, Obras Completas, vol. I, BAC, 1951, p. 516.

[17] Miguel de Cervantes,  Don Quijote, II, 16.

[18] Montaigne, Essais, livro 2, cap. 10.

[19] Desafio Espiritual, 3.

[20] Introdução às Moradas, Proceso de Burgos, 26, A, fólio 1610. Teresa de Jesus, Obras Completas, op. cit.

[21] Moradas, I, 1, 1.

[22] Moradas, I, 1, 3.

[23] Apud. Emilio José Sales Dasí, La aventura caballeresca: epopeya y maravillas, Alcalá de Henares, Centro de Estudios Cervantinos, 2004, p. 130.

[24] Moradas, I, 2, 8.

[25] Moradas, VI, 6, 3-4.

[26] Moradas, V, 3, 1.

[27] Moradas, V, 4, 1.

[28] Moradas, Epílogo, 20, 22.

[29] Moradas, I, 1, 5.