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Religião se Aprende na Escola

 

Lara Sayão Lobato de A. Ferraz [1]

 

RESUMO - Neste texto procuramos desenvolver uma reflexão acerca das concepções de ensino religioso presentes no imaginário da escola, apontando para um dever ser desta disciplina, tendo como fundamentação teórica a filosofia do encontro de Martin Buber.

Palavras-chaves: Ensino Religioso – Filosofia do Encontro – Imaginário - Educação

Introdução

Seria a escola o espaço para um ensino religioso? A educação deve considerar o homem enquanto ser em relação com o transcendente? O que é o ensino religioso escolar? O que ele promove na sociedade? Como é percebido pelos alunos? O que esperam dele a família, a sociedade e a própria escola?

Neste artigo, procuraremos desenvolver uma reflexão acerca destas questões visando colaborar com uma discussão que se impõe como necessária e urgente.

Parece que o ensino religioso é mais uma questão do mundo dos homens, criada e nublada por eles. Mas, como não haveria de ser? Se não há como fugir da condição humana, não há espaço para pensar de modo diferente.

O fato é que há uma verdade, há uma certeza: a felicidade do homem, seu fim último é Deus. Todo educador enquanto pessoa que entende que deve trabalhar e viver a fim de promover seu semelhante à condição de felicidade, deve conduzi-lo a Deus. No entanto parece que custa-nos entender a simplicidade da proposta das religiões. Entendendo religião enquanto relação com o transcendente, esta  realidade é compreendida como um convite a pensar a existência humana em sua plenitude. O verbo que se faz carne é a palavra no meio do mundo, é a divindade que eleva a humanidade e a convida a ser plena.

É preciso que todos os homens compreendam e saibam deste seu fim. É preciso que a escola aponte para esta realidade que transcende e que propõe um ser mais. Entender-se convocado para a relação com Deus compromete a vida, transforma o homem e por ele, a sociedade. No entanto, procuramos conformar esta convocação a nossos mecanismos reducionistas. Por isso é preciso que o Estado crie leis para garantir que falemos da essência da vida. Como se fosse preciso. Precisamos das leis porque amamos  pouco (Comte-Sponville, 1995), porque nossas relações são envolvidas pela vontade de poder. Precisamos lutar por um ensino que considere a dimensão religiosa do homem, quando entendemos que este aspecto deveria ser considerado de modo natural. Há uma série de discussões no legislativo sobre a legitimidade de um ensino religioso escolar, questionando seus meios. Se fosse claro para nós que a felicidade humana depende de sua relação com Deus, desenvolveríamos toda a ciência de modo a sermos levados a Deus, de modo a alcançarmos a plenitude de nosso ser, de nossa humanidade que é entender-se um ser convocado à relação com Deus. Esta relação permeia toda a existência humana e permite um olhar novo sobre as questões com as quais o homem  tem que se deparar. O lugar do homem é o entre, a relação. (Buber,2001).

O campo da religião, no entanto, parece ser um campo minado no qual a maioria dos pesquisadores escolhe não pisar. Um campo delicado sobre o qual é preciso se lançar . É urgente buscar uma reflexão filosófica acerca da relação entre religião e educação. A sociedade brasileira possui um intenso apelo religioso, a religião está presente no imaginário popular, nas conversas de bar, na moda, na mídia, no folclore e até mesmo em cada esquina nas inúmeras seitas que surgem a cada dia. É fato que a educação não está alheia à interferência do fenômeno religioso e do modo como este é interpretado e vivenciado. Segundo Bourdieu (1998), o aluno traz consigo um capital cultural herdado, ou seja, uma visão de mundo e uma hierarquia de valores que define sua relação com a escola e sua atitude no processo do conhecimento. A religião é parte fundamental deste capital cultural, muitas vezes norteando as escolhas dos pais em relação à educação de seus filhos. Diante deste fato, pode a escola não pensar sua relação com a religião? Podemos nós educadores fugir deste desafio?

O Ensino Religioso no imaginário da Escola

O modo como conhecemos as coisas não é neutro. Está profundamente marcado por nossa herança cultural, desenvolvida através de inúmeras gerações e que molda nosso olhar diante do fato. Quando o fato analisado compreende uma realidade metafísica, dificilmente definida de maneira positiva, as imagens que formam nossa visão de mundo são fatores relevantes a serem considerados, pois são o que nos permite conhecer e estabelecer conceitos. Devido a um tempo bastante extenso de inserções arbitrárias de ‘ensinos religiosos’ diferentes nas escolas, por motivações muito diversas, foi se gerando ao seu entorno um imaginário, ou seja, idéias formadas a partir do modo como a escola o foi percebendo. O imaginário é interpretativo, relacionado ao preconceito, no sentido de conceito anterior à reflexão, herdado e reproduzido sem questionamentos. 

Por isso, percebemos que paira uma nuvem de confusão sobre o ensino religioso. É preciso definir seu objeto e seu objetivo. É preciso definir a perspectiva que o fundamente como necessário na escola. É necessário ir aos fundamentos que possam justificá-lo.

Uma imagem do ensino religioso irrefletidamente cristalizada no imaginário da escola, prejudica muito a discussão sobre seus fins e, principalmente sobre sua legitimidade. Neste sentido entendemos que nossa reflexão aqui colabora para elucidar o que seja o ensino religioso e seu espaço na grade curricular. Inicialmente procuraremos apontar para o que o ensino religioso não é, ou para o que, não deveria ser.

O ensino religioso não é uma aula de boas maneiras.

Em muitos momentos se espera que o ER dê educação aos alunos: que lhes ensine a sentar , a falar baixo, a não usar palavrões. Muitos pais escolhem escolas confessionais para seus filhos, esperando que esta, através do ER lhes ensine a serem bons meninos. As direções das escolas, em muitos casos cobram do professor de ER que instaure a ordem, promova a disciplina e colabore para dar jeito naquele aluno impossível. Os colegas professores, todos educadores, lançam para o professor de ER a responsabilidade de trabalhar os valores e a ética, enquanto estes temas deveriam estar permeando todas as disciplinas. Em muitos casos, é mais cômodo se abster da responsabilidade de educar e deixar para o ER, já que parece ser algo sem forma definida e que vai se orientando de acordo com a demanda dos focos de incêndio escolares.

No imaginário da escola, o professor de ER é aquele colega perfeito, que fala sempre baixo, não se irrita, está sempre sorridente e que pode atender os alunos mais difíceis e fazer uma boa oração por eles. As aulas de ER são aquelas que amansam a turma para as aulas mais sérias.

O ensino religioso não é uma aula de história.

As religiões se constituem em torno de fatos históricos, porém os transcendem. Através do conhecimento dos fatos, é preciso buscar o que seja significativo para a vida humana e que a mobilize e oriente. Na realidade concreta, é Deus que fala ao homem, se propõe, se revela e convoca à relação. Não se trata de um conhecimento frio e distante de fatos históricos, mas de fatos históricos que falam diretamente ao homem, seja qual for a situação em que este se encontre. A educação no Brasil, por sua influência marcadamente positivista, teme o metafísico. No entanto, é esta uma dimensão que coopera para a compreensão da realidade e do próprio homem e que não pode ser descartada pela ciência. Sendo apenas um ensinamento histórico sobre o desenvolvimento das diversas religiões, poderia ser um conteúdo das aulas de história, já que muitos dos temas tratados envolvem a história das religiões.

No entorno do ER, está presente esta imagem, as aulas de ER servem para uma visão panorâmica sobre o fenômeno religioso presente em todos os tempos e no mundo todo e suas diversas manifestações.

Reduzir o ER à aula de história das religiões é considerá-lo desnecessário no currículo escolar.

O ensino religioso não é um freio.

Por diversos motivos, a religião foi usada como fator moralizante e  como um freio à liberdade humana. Este tem sido seu aspecto mais criticado em todos os tempos por diversos pensadores e educadores: a idéia de um Deus- grande olho que tudo vê e espera sedento pelo momento de aplicar seu castigo. Na educação antiga, quando faltavam os argumentos, Deus era uma boa saída para controlar os filhos rebeldes. A formação moral pela culpa diante de um Deus castigador gerou no imaginário da escola a idéia de um ER moralizador. O que constrói no imaginário dos alunos um ER chato, uma aula de ‘ficar comportado, de não poder ser sincero, de ter que dizer o que o professor quer ouvir’. Certa vez, um aluno disse que nas avaliações de ER bastava escrever palavras chaves como  BONDADE, FRATERNIDADE, JUSTIÇA, AMOR E PAZ para se “dar bem”. Neste sentido, ficam proibidos brincadeiras, alegria, bom humor e qualquer espontaneidade. Felizmente, algumas práticas atuais já conseguem reverter este quadro, mas esta idéia ficou muito presente no imaginário da escola.

O ensino religioso não é qualquer coisa.

Pela falta de formação do professor de ER,  muitas escolas optaram por direcionar profissionais de outras áreas para ministrar a disciplina. Isto gerou no imaginário da escola a idéia de que qualquer um pode lecionar esta disciplina, basta ser bonzinho, já que vai entrar em sala para falar qualquer coisa, contar uma história bonitinha que comova a todos e toque os corações. Estes profissionais foram escolhidos mais por sua prática religiosa pessoal do que por sua competência e conhecimento do assunto e da didática do ER. Certamente, muitos exerceram e exercem de modo brilhante sua profissão, mas no imaginário, que registra apenas o que percebe, impregnado pela visão que se tem das coisas, fica a idéia de uma aula que pode ser ministrada por qualquer profissional, ou que nem precisa ser profissional para fazê-lo. Em alguns momentos também, profissionais do ER eram convencidos de que sua prática era uma missão e não um trabalho que devesse ser remunerado. Neste sentido, fica mais uma vez o ER reduzido, sendo menos do que é.

O ensino religioso não é catequese.

A catequese subentende a prática religiosa. É uma preparação doutrinária específica que tem seu lugar nas igrejas e nos grupos religiosos. Com a necessidade de muitas horas de trabalho, a família foi delegando à escola suas obrigações mais básicas. A formação religiosa, primeiramente escolha da família e função desta, passou a ser mais uma função da escola. As diversas igrejas também têm esta função: a de garantir a seus membros um aprofundamento na doutrina e as orientações básicas para os jovens. É responsabilidade das igrejas e grupos religiosos perpetuar sua doutrina pela transmissão de seus textos sagrados e de sua moral. Os grupos religiosos devem se organizar para garantir o estudo e o fomento da compreensão da doutrina, assim como propiciar a vivência em comunidade como experiência viva da doutrina. A catequese tem seu lugar nas igrejas e nas organizações religiosas, até mesmo para que se dê continuidade à prática após o período de vida escolar.

Uma confusão, presente principalmente nas escolas particulares, foi a inclusão da catequese na grade curricular, de modo a facilitar a preparação para os sacramentos. No horário das aulas, os alunos recebiam, no pacote, sua formação doutrinária. Algumas vezes os pais nem se davam conta de que seus filhos receberiam os sacramentos. Certamente, não é esta a função do ER, pois deste modo, deixava de contribuir para uma prática sincera, fruto de uma escolha consciente da família e do aluno. O ER deve mobilizar o aluno a buscar uma prática, não ser um curso comodamente inserido no currículo, desobrigando as famílias de freqüentarem suas comunidades religiosas.

O ensino religioso não é o ministério da justiça.

Quando se fala da necessidade da implantação do ER nas escolas públicas, muitas vezes parece que este ato político resolverá todos os problemas de criminalidade do país. É certo que uma vivência religiosa pode colaborar para a promoção de uma sociedade mais justa, porém não é a garantia da diminuição da criminalidade, que está atrelada a muitos outros fatores de ordem sócio-econômica e estrutural. O homem é livre e adere ao que lhe é proposto de acordo com a sua situação existencial. O ER tem muito a dizer ao homem, mas é este que livremente acolhe às propostas de vida e conduta.

Numa política de muitas cartadas desesperadas, o ER parece ser mais uma. Acredita-se que investindo no pagamento de professores de ER, está se investindo na segurança. defendemos a idéia de que o ER contribui fortemente para uma mobilização em favor de novas condutas, mas consideramos o ER um dos fatores essenciais para uma transformação da sociedade. Não podemos encara-lo como a solução.

O ensino religioso não é campanha beneficente

No imaginário da escola o professor de ER é o ‘pidão’, até fugimos dele, porque, sempre mendicante, está promovendo alguma campanha com seus alunos para nos deixar constrangidos por nossa falta de generosidade! Deixando os exageros de lado, temos que concordar que esta imagem do professor de ER  está muito presente em nossas escolas. Parece que essas aulas só servem para a realização de campanhas solidárias. Sem dúvida, este é um ponto central do ER: a promoção do espírito de solidariedade, de preocupação com o outro e com a realidade exigente na qual estamos inseridos, porém, não é uma atitude artificial e pontual: campanha de natal, campanha de páscoa, campanha de dia das crianças, visita ao asilo... se for, não atingiu o objetivo do ER. O ER deve gerar uma atitude solidária diante da vida, que desperte para ações concretas não pontuais, mas que sejam expressão de toda a reflexão e aprendizado nas aulas de ER.

O ensino religioso não é campo de guerra religiosa

Já que as pessoas estão indo pouco às igrejas, aproveitemos as aulas de ER para ganhar adeptos. Esta idéia errônea do ER é também a mais perigosa. Não se trata de fazer proselitismo, mas de permitir um aprofundamento na fé já escolhida. Não podemos permitir que nossas escolas se tornem um campo de batalha religiosa, onde nossos jovens serão vítimas de uma triste disputa por fiéis, como presenciamos na mídia e nas esquinas. Parece que paira sobre a discussão em torno do ER confessional um espírito bélico que é extremamente preocupante. Os interesses político-ideológicos não podem estar acima da real função do ER, sob o risco de causar mais mal que bem.

Sabemos que o imaginário, enquanto idéias que vão se formando na teia das relações humanas, suscita atitudes e gera as concepções de mundo que norteiam as condutas. Estas idéias só podem ser superadas pela reflexão, que é um dobrar-se sobre a questão. É urgente um dobrar-se sobre o ensino religioso a fim de superar o imaginário em busca de uma compreensão maior sobre ele que promova os fins da educação.

Uma primeira questão que nos parece pertinente é a reflexão sobre o que seja religião, escolhemos a concepção de religião como autêntica relação Eu-Tu, elucidada na obra de Martin Buber e que nos aponta para o aspecto relacional intersubjetivo. Procuraremos então definir o que seja autenticidade e questionar sobre a possibilidade de uma educação para a autenticidade. Apresentaremos então,o que nos parece ser um caminho para o dever ser do ER: a perspectiva dialógica de convocação para o encontro e a responsabilidade.

Conceito de autenticidade

Segundo Jaspers (1925), autêntico é o que é próprio do homem, não superficial, é o mais profundo; o que toca fundo sua existência psíquica, não apenas sua epiderme. Não é momentâneo, é acolhido pela própria pessoa e torna-se ela mesma. O que persegue a educação senão levar o educando ao que permanece? Ao que não seja superficial e momentâneo? A educação tem por fim gerar um ser educado. As grandes discussões sobre currículos e métodos giram em torno da eficácia em gerar algo que se torne a própria pessoa e não a reprodução conteudista que é esquecida em alguns poucos meses.

Para Kant (1996), a condição de autonomia exige a reflexão como essencial para a acolhida do princípio de ação, neste sentido, a educação visa a autonomia para a escolha refletida das ações e dos usos das competências e potencialidades. Um sujeito não autônomo não poderia ser considerado educado. Como falarmos em autonomia sem compreendermos que ela só é verdadeira enquanto autêntica decisão e opção do sujeito? A prática educativa então nos remete a uma educação para a adesão autêntica aos princípios de ação a partir da reflexão.

É possível educar para a autenticidade?

Entendemos que só é possível educar para a autonomia e, por conseqüência, para a autenticidade, de outro modo, o processo educativo não se completaria. Do ponto de vista do indivíduo, a educação é um aprimoramento, um aperfeiçoamento que tem em vistas os aspectos mais nobres do sujeito. Estes aspectos englobam a noção do ser mais, de Paulo Freire (1987), que subentende um reconhecimento de si diante da realidade e uma liberdade de ação. O sujeito educado deve ter as condições básicas para fazer suas escolhas, reconhecendo-se ser convocado a escolher e aderir ao que considera valor. Entendendo-se sempre como sujeito que acolhe, adere, senhor de sua história, consciente de sua situação no mundo e de sua condição existencial plena de ser humano. Como a educação é normativa, deve apontar para uma teoria do valor que favoreça a adesão aos valores não arbitrários correspondentes ao dever ser do homem.

A educação é entendida como processo que deve levar ao conhecimento do essencial de si mesmo, do mundo e do outro, que vai permitir a autodeterminação, é preciso que se encaminhe o processo educativo para o essencial, não para o acidental (Werneck ,1991:156), logo, a educação encaminha-se para a autenticidade.

O ensino religioso numa perspectiva dialógica de convocação para o encontro e a responsabilidade

Quando nos deparamos com a expressão Ensino Religioso, estamos penetrando em duas áreas extremamente fecundas e significativas da vida humana: a Educação e a Religião. Partindo da premissa que afirma ser a educação uma prática normativa instauradora de valores e a religião uma possibilidade de relação com o transcendente, é essencial e urgente um pensar sobre as implicações filosóficas de um ensino religioso.

Na religião é o infinito que se revela e o finito responde compreendendo-o e colocando-se em relação. O homem como finito tende ao infinito. Se a religião é revelação do infinito, revela a realidade do objeto, sendo portanto um valor para o homem e parte essencial da condição humana.

Parece-nos então que um ensino religioso deveria encaminhar-se necessariamente para uma formação nos valores que permitam a autêntica relação com o infinito. Relação que envolva e comprometa toda a existência humana de modo a ser capaz de tocar e transformar a realidade na qual o homem está inserido. Autêntica, enquanto livre de adornos superficiais que alienam,  e geradora de uma adesão consciente à vivência coerente dos princípios cristãos. Tomamos como referencial o filósofo contemporâneo Martin Buber que aponta para esta concepção responsável de religião enquanto relação com Deus no cotidiano da vida :

Eu não possuo nada além do cotidiano, do qual nunca sou retirado. O mistério não se abre mais, ele se subtraiu e fixou domicílio aqui, onde tudo acontece como aconteceu. Eu não conheço mais nenhum além daquele de cada hora mortal, de exigência e responsabilidade. Longe de estar à altura dela, eu sei, porém que sou solicitado pela exigência e posso responder à responsabilidade, e sei quem fala e quem exige resposta. Muito mais eu não sei.  Se isto é religião, então ela é simplesmente tudo, o simples todo vivido na sua possibilidade do diálogo. Quando tu rezas e com isto não te afastas desta tua vida, mas justamente te referes a esta vida rezando, quer dizer, admitindo-a, seja no inaudito como no assaltante, quando és chamado do alto, requerido, eleito, autorizado, enviado. Com este teu pedaço mortal de vida estás na mente, este instante não é retirado, ele se apóia no que foi e acena para o resto ainda muito vivo. Não és tragado em uma plenitude sem compromisso, és desejado para a solidariedade. [2]

            No contexto atual da sociedade brasileira, parece-nos urgente uma real educação religiosa. É necessária uma convocação para o viver responsável e comprometido com o outro, pois somos desejados para a solidariedade. A sociedade está carente de condições básicas de convivência.

A falsa liberdade instaura um relativismo contraditório, que aceita tudo o que seja relativo e rejeita veementemente o que possa ter ares de verdade. O relativismo não considera o outro, nem sequer promove a solidariedade. Na medida em que cada homem se torna criador de seus próprios valores, é inevitável o choque com o outro que também quer ter o direito de criar os seus.

A intolerância, ora velada, ora declarada, torna-se uma questão com a qual temos que nos deparar enquanto educadores e procurar dar uma resposta que contribua para o viver reciprocamente comprometido. Não podemos falar de compromisso e responsabilidade pelo outro se não entendermos o valor do outro e os valores essenciais à vida humana.

Logo, a educação, como prática normativa, não poderá estabelecer valores arbitrários que não correspondam ao dever ser do homem, enquanto ser que tende ao infinito e que está em relação com outros seres que também tendem à completude, mas considerar valor somente aquilo que corresponda a este dever ser e que colabore para sua edificação.

O Ensino religioso como busca do essencial

As religiões de modo geral, apontam para algo essencial que possa nortear a vida. Não faz sentido pensar uma relação com Deus que desconsidere o sujeito em relação (o homem). Considerando o homem, há que se considerar o cotidiano; a vida em seus aspectos dos mais simples aos mais complexos. Infelizmente, na história das práticas religiosas, encontramos relações de poder que parecem desconsiderar o essencial: questões político-ideológicas que, longe de atrair ao essencial, distanciam, gerando um fundamentalismo que se constitui um obstáculo ao dialógico.

“Com Deus declarou-se guerra à vida, à natureza e ao desejo de viver.” (Nietzsche, 1983, p.146), esta concepção de religião impregnou nossos dias de uma contestação à prática religiosa, fundamentada não na autêntica relação com o Tu Eterno, mas em relações reducionistas e ideológicas. As críticas de Nietzsche, presentes nas rodas acadêmicas e nos mil aforismos utilizados de acordo com interesses individuais na mídia reforçam a polêmica acerca do ensino religioso.

Entendemos que suas críticas consideram apenas práticas que não correspondem ao Encontro do homem com Deus, que é uma convocação e não uma abstração. A relação com Deus não é uma negação da vida, mas uma afirmação desta em toda a sua  plenitude. A pessoa humana como relação vive e é nesta situação que pode experimentar seu Encontro com o Infinito. A escola como lugar privilegiado de formação e edificação do homem, não pode desconsiderar este aspecto fundamental de sua existência.

O Ensino Religioso deve oportunizar a possibilidade deste Encontro, promovendo a reflexão sobre o que seja essencial nesta relação: a  abertura ao diálogo, a consciência da alteridade e a responsabilidade do viver. Se pensarmos o Ensino Religioso nesta perspectiva, estaremos recusando a prática político-ideológica que o impregnou durante muitos anos e fez com que grandes pensadores da educação o condenassem, e abriremos caminho para a autenticidade da relação que é possibilidade de acesso ao essencial. Estaremos considerando-o como parte constituinte de uma antropologia filosófica que, no mundo da técnica, se faz cada vez mais necessária.

O Ensino Religioso, enquanto processo educativo, deve agregar valores e  remeter ao eu capaz de autônoma e livremente aderir como pessoa a Pessoa Divina, dialogar com ela e estabelecer um compromisso que altere seu ser e o ser do mundo. Caso contrário, será apenas um depósito de ensinamentos sem significado ou uma estratégia para reprimir a indisciplina. Estará assumindo um papel de freio e não de mola propulsora de uma vivência plena, digna e autêntica. É somente o encontro entre pessoas, Eu-Tu – o homem e Deus, que se compromete a vida e se transforma uma realidade social exigente.

A fé cristã reconhece e exalta a dignidade do homem ao proclamar incessantemente sua origem e destino mais alto: o amor criador de Deus Pai que nos chama a ser seus filhos e em seu Filho Jesus Cristo, fundamento da fraternidade universal entre os homens. Para a Igreja, a pessoa humana é  um valor central em si mesma que fundamenta o serviço gratuito e a solidariedade com todos, especialmente com os menos favorecidos. Por isso, o professor de religião, como educador cristão, há de ser mestre de humanidade. [3]

Neste sentido, entendemos o Ensino Religioso como uma oportunidade de humanização e promoção do ser humano e da sociedade fundamentada nos valores cristãos. Este entendimento nos faz vislumbrar uma metodologia dialógica que promove uma síntese entre fé e cultura, analisando os acontecimentos contemporâneos sob a ótica do cristianismo, dialogando com a realidade e promovendo um encontro com  Deus no cotidiano da vida. A doutrina é a base para a análise do contexto social e existencial e para a formação para a vivência da fé.

Para alcançar este fim, é preciso estabelecer conexões com as outras disciplinas do currículo escolar, visando tornar clara a relação fundamental da religião com a vida e com todas as áreas do conhecimento, buscando superar a dicotomia fé e ciência.

É urgente superar as imagens presentes no imaginário da escola e entender o ER como o referencial que aponta para o dever ser do homem de modo pleno, e que o capacite a viver de modo autêntico a sua condição de ser religioso.

Conclusão

Sendo o homem um ser essencialmente religioso e sendo o mundo contemporâneo, o mundo do absurdo, contraditoriamente fundamentalista e indiferente, com valores manipuláveis pela mídia e com um apelo religioso confuso, o ER deve ser uma possibilidade de encontro autêntico com Deus, já que inserido no contexto educativo, deve ser uma prática refletida diante dos fins da educação, livre de interesses imediatos dos diversos grupos, uma promoção da oportunidade de adesão autônoma à convocação para uma vida de diálogo com Deus, com o mundo e com o outro. Conhecendo-se a si mesmo e entendendo-se ser convocado a estar em relação, o aluno do ER deve ter a oportunidade de perceber-se no entre, onde lhe é exigida uma resposta responsável.

A educação não pode negar-se considerar este aspecto da existência humana, por isso, religião se aprende na escola.

Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001.

COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 29ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

KANT, Immanuel. Pratical Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004

WERNECK,Vera Rudge. O Eu Educado: uma teoria da educação fundamentada na fenomenologia. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed. 1991.



[1]   Mestranda em Filosofia da Educação pela Universidade Católica de Petrópolis, licenciada em Filosofia. Professora de Ensino Religioso e Filosofia das redes pública e particular na cidade de Petrópolis/RJ. larafilo@redetaho.com.br

[2] BUBER, M. Encontro - fragmentos autobiográficos. Petrópolis: Vozes, 1963, p.43.

[3] Informe a Unesco da Comissão Internacional sobre a educação para o séculoXXI, Madri 1996, p.22.