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O Referencial de Keirsey e Bates como um dos Fundamentos da Ação Docente

 

Maria de Lourdes Ramos da Silva

Prof. Livre-Docente  FEUSP

 

RESUMO - Ao defender a noção de temperamento como um aspecto fundamental para a compreensão entre as pessoas, considera-se o referencial de Keirsey e Bates como um subsídio valioso à atuação do professor e de todos os que participam do processo ensino-aprendizagem, para que a escola possa contribuir para o processo de humanização da pessoa do aluno consciente de si no mundo.

PALAVRAS CHAVE: temperamento, personalidade, educação.

 

 

As duas faces da educação escolar

Se considerarmos que a tarefa da educação é a formação da pessoa do aluno, temos que admitir que tal formação, à medida que recai sobre as atitudes fundamentais do homem em face do mundo e de si próprio, não se refere somente à aquisição de conhecimentos específicos, mas principalmente a opções morais e escolha de valores. Como defende Gusdorf, “o ponto central do ensino não consiste na aprendizagem de muitas coisas, mas no autoconhecimento e no autodomínio que conduzem à plena e humana realização, seja qual for o campo participar de exercício que escolheu” (Gusdorf, 1970, p. 80).

Tal preocupação reflete-se em educadores de diversas épocas, desde a Antigüidade Clássica. Talvez um dos primeiros textos da cultura ocidental onde se perceba uma nítida distinção instruir e educar é aquele no qual Protágoras de Abdera, segundo testemunho de Platão, afirma aos participantes do diálogo que o seu objetivo não se restringe ao ensino de técnicas particulares, mas sim o desenvolver em seus discípulos a capacidade de orientarem a si próprios e aos outros sobre a administração de suas casas e de dirigir com êxito os assuntos do Estado (Jaeger, 1989).

Rousseau, por sua vez, reflete essa mesma preocupação, ao afirmar, no Emílio: “Viver é o ofício que quero ensinar-lhe. Saindo de minhas mãos, ele mão será, concordo, nem, magistrado, nem soldado, nem padre; será primeiramente homem. Tudo o que um homem deve ser, ele o saberá, se necessário, tão bem quanto quem quer que seja; e por mais que o destino o faça mudar de situação, ele estará sempre em seu lugar” (Rousseau, 1968, p.15).

Entretanto, a fins do século XIX e início do século XX, movimentos sociais e culturais redundaram em amplas modificações na estrutura escolar. O avanço incontrolável da ciência e a crescente especialização dos diversos conhecimentos levaram o mestre a restringir cada vez mais seus saberes a áreas específicas, perdendo paulatinamente o contato com o todo cultural de sua época e com o aluno como um ser global em desenvolvimento.

A expansão das idéias democráticas e o crescimento de funções atribuídas à escola, devido principalmente ao empobrecimento da vida familiar e à complexidade da vida profissional, levaram a escola a abranger um número ilimitado de alunos ao quais fornece um mínimo de conhecimentos como bagagem a ser utilizada num mundo em que novas tecnologias se sucedem vertiginosamente, exigindo constantemente novas qualificações, tais como: conhecimentos teórico-práticos, capacidade de abstração, decisão e comunicação. Ao mesmo tempo, aumentam os conflitos pessoais e interpessoais como conseqüência da crise de valores e da complexidade das relações sociais.

No mundo de hoje, cada vez mais, os muros vão caindo, as redes informáticas crescem vertiginosamente, o sistema da mídia se impõe com força crescente, os meios de comunicação entrelaçam o mundo de uma forma cada vez mais densa e complexa, sem contar que os gêneros se mesclam e que as fronteiras estão cada vez mais vulnerá-veis. Assim, o conhecimento é um processo dinâmico que ocorre em sujeitos e institui-ções sociais em interação com seu meio ambiente vital e em permanente transformação.

Neste sentido, Morin (2001) afirma que os desafios básicos da humanidade no século XXI, quanto ao ensino-aprendizagem, podem ser agrupados nos seguintes: o desafio da globalidade, que se relaciona à inadequação entre um saber fragmentado e compartimentado em diversas disciplinas de um lado e, de outro, entre as realidades multidimensionais e os problemas cada vez mais transdisciplinares; e o desafio da não- pertinência de nosso conhecimento e de ensino, que nos leva a separar  as disciplinas umas das outras e não reunir aquilo que faz parte de um mesmo “tecido”.

Diante desses obstáculos, torna-se imperativo o favorecimento da aptidão que se disponha a relacionar cada informação e cada conhecimento ao conjunto do qual é parte integrante. Concomitantemente, é preciso ainda fortificar a aptidão de interrogar e de interrogar-se continuamente, de relacionar o saber à dúvida, de integrar o saber particular em sua própria vida e não somente em um contexto global e de colocar a si mesmo os problemas fundamentais de sua própria condição e tempo. Assim, o fato de propiciar ao aluno a arte de organizar seu próprio pensamento, de religar e, ao mesmo tempo, de diferenciar, representa, sem dúvida, o aspecto essencial do ensino, que, entretanto, está quase sempre ausente, como afirma Morin (2001).

Em relação à subjetividade daquele que conhece, um novo conceito sobrepõe-se, de acordo com Najmanovich (2001), já que o mundo que nos é dado conhecer, incluindo o nosso “corpo-mente”, não é um mundo abstrato, independente de nosso conhecimento, mas um mundo co-criado em nossa interação constante com o ambiente. Trata-se, portanto, de um mundo que criamos e que convocamos a ser em nossa experiência interativa com o que está fora, mas não separado de nós.

Este é, pois, o grande desafio da aprendizagem, pois à medida que o mundo no qual vivemos não é um mundo independente de nós, mas um mundo que paulatinamente vai sendo construído, torna-se fundamental o desenvolvimento de nossa capacidade intelectual para que o mundo ganhe uma abordagem multidimensional, imprescindível para fugir das dicotomias clássicas.

Para tanto, a formação do jovem crítico, capaz de avaliar constantemente suas possibilidades, aliadas às várias alternativas e restrições que se lhe avizinham nos sucessivos momentos de vida, é sem dúvida um dos objetivos fundamentais da edu-cação. O ensino deve então promover a capacidade de tornar o aluno cônscio de suas idéias e percepções, sensibilizando-se ante os problemas encontrados e intrigando-se com o que os outros consideram como verdades indiscutíveis. Somente dessa forma, será possível ao aluno arriscar-se a pensar diferentemente, construindo novas formas de explicar a própria multidimensionalidade inerente ao mundo no qual interage.

Tais aspectos enfatizam a necessidade de um trabalho coletivo por parte de todos os que participam do processo ensino-aprendizagem, para que a escola possa transcender os objetivos relativos à instrução, contribuindo para o processo de humanização da pessoa do aluno consciente de si no mundo.

Face ao processo de fragmentação que envolve pessoas e organizações, a tarefa da educação relaciona-se ao estudo da realidade do aluno, trazendo-a para dentro da escola, concentrando-se na busca da totalidade tanto da pessoa que se almeja formar, como das propostas de trabalho que abranjam todos os que dela participam.

Neste caso, o currículo fundamenta-se, de um lado, na concepção de homem em sua totalidade, e de outro, na realidade na qual se insere a escola, já que a função básica da educação é a formação do aluno tanto como ser individual como ser social. Neste sentido, além de defender a dimensão humana, deve o professor comprometer-se com os vários aspectos do ensino-aprendizagem, propiciando ao aluno conhecer e interpretar as contradições e conflitos de seu cotidiano. Afinal, o que é educar senão propiciar aos alunos condições para que se desenvolvam através das mediações concretas de sua existência histórico-social? Ainda que regidos por determinações próprias da natureza e da sociedade, os indivíduos atuam também sobre esses determinantes num processo contínuo de relacionamento por meio do qual se transformam e transformam a natureza e a sociedade.

O referencial de Keirsey e Bates

Para alcançar tais objetivos, David Keirsey e Marilyn Bates (1984) propõem um referencial que pode representar um subsídio valioso à atuação do professor e de todos aqueles que concebem a educação como um processo mais amplo do que o da instrução, principalmente porque se preocupam em saber como os alunos percebem e reagem às diversas situações de vida.

Ao considerar a personalidade como “o elemento estável da conduta humana, a forma habitual de ser do indivíduo e, em última análise, aquilo que o diferencia dos demais” (Sillamy, p. 243 e 244), os autores defendem a noção de temperamento como um aspecto fundamental para a compreensão das pessoas, já que a palavra corresponde ao fato de temperar tendências opostas, possibilitando uma uniformidade de coloração, uma tematização do todo, uma unidade diante da diversidade.

É o temperamento que imprime diferenciação ao indivíduo, semelhante à assinatura ou à impressão digital e que determina o comportamento individual, uma vez que este é o instrumento de que dispõe para obter o que mais necessita e deseja, satisfazendo assim suas aspirações em relação à finalidade básica em função da qual organiza sua vida. Representa, pois, um poderoso agente determinador em relação à forma de ser individual que, em sua essência, só pode transformar-se mediante o uso e o desenvolvimento de determinadas características pessoais, por meio da vontade própria.

No livro Character and Temperament Types (1984), Keirsey e Bates afirmam que as pessoas são diferentes umas das outras e que nenhum esforço de transformação pode realmente mudá-las, se esse esforço não partir do próprio indivíduo. E também não há razão plausível para mudá-las, já que o fato de existirem tais diferenças é sempre positivo. Pelo fato das pessoas quererem coisas diferentes, possuírem motivações, objetivos, impulsos e tendências diversas é que se ocasionam variações de comportamentos e de atitudes que, por sua vez, acionam em cada pessoa uma resposta específica e singular.

Tanto o pensar, como o sentir e o querer dependem da forma como cada um organiza suas funções psicológicas e só poderá haver verdadeiro diálogo se for possível compreender que as pessoas têm modos distintos de perceber a realidade e de reagir a ela. Tais diferenciações são evidentes em nosso cotidiano e proporcionam uma perigosa tendência que os autores denominam de projeto pigmaleão, mediante o qual se almeja transformar as pessoas, sobretudo as mais próximas, segundo nossa imagem e semelhança. Segundo os autores, o fato de querer transformar-se é o aspecto fundamental em qualquer mudança, e o esforço contínuo sobre si mesmo por meio da vontade é o elemento básico em qualquer tentativa de mudança, seja qual for a situação da qual se trate. Portanto, a auto-regulação da inclinação temperamental de uma pessoa é sempre estabelecida a partir da vontade e da determinação individual.

Entretanto, apesar da convicção de que cada pessoa é uma configuração única e intransferível, existe sempre a tendência para avaliar os demais de acordo com a sua forma específica de ser, de sentir, de pensar, de compreender e de reagir diante dos vários acontecimentos. Quando os demais não se conformam a esse esquema, surge forte sentimento de frustração e de mágoa, mesclados à decepção de comprovar, mais uma vez, essa divergência. Esse é, segundo Keirsey e Bates (1988), o grande paradoxo das relações humanas, pois embora se admita que cada pessoa é única e exclusiva, almeja-se, ao mesmo tempo, que ela pense, aja, sinta e perceba como nós mesmos.

Tal incongruência atinge o ser humano em toda a sua complexidade, pois se no aspecto intelectual ainda é possível racionalizar tais diferenças, no âmbito afetivo e emocional verifica-se uma forte resistência, o que acarreta no relacionamento entre as pessoas grandes possibilidades de discórdias, justamente como resultado de tais divergências. Portanto, em vez das pessoas se empenharem em compreender como os outros percebem, pensam e sentem, enclausuram-se em suas torres de marfim, considerando inútil o entendimento e o diálogo. Jung (1967), por sua vez, também denuncia esse fato, quando afirma que nas coisas importantes, e sobretudo naquelas em que estão em causa os ideais da pessoa, a compreensão parece impossível na maioria dos casos.

Infelizmente, o ser humano tende a desprezar e a ignorar tudo aquilo que não conhece, desconsiderando tudo o que escapa a seu campo de interesses e de conhecimentos. Esse comportamento é facilmente observável nos diversos campos profissionais, nos quais se verificam diálogos estereotipados sobre os quais se apóiam a convivência e o relacionamento profissional, os quais por sua vez passam a interferir tanto nas relações formais, como nas informais.

Em decorrência, os vários campos de conhecimento e de atuação acabam por estabelecer certas expectativas quanto às características pessoais e tipos de comportamento julgados mais apropriados, o que leva as pessoas a esperarem que os demais reajam também de modo determinado e estereotipado, sem chegar nunca a questionar tais expectativas em profundidade.

Com o objetivo de contribuir para o esclarecimento a respeito de como as pessoas diferem em suas ações e preferências, os autores apóiam-se nas funções e disposições de personalidade descritas por Jung, acrescentando algumas modificações interessantes. Discriminam quatro pares de funções, que no conjunto, estabelecem certas diferenciações quanto ao modo de pensar, sentir e querer: extroversão/introversão (E/I), sensatez/intuição (S/N) [1] , razão/sensibilidade (T/F) [2] e julgamento/perceção (J/P).

Tais dimensões atuam sempre conjuntamente e nunca se excluem, possibilitando uma gradação de preferências em cada par. Neste caso, o que realmente passa a importar é a forma como a pessoa organiza os diversos pares de preferências e o modo como estas atuam na personalidade.

Conseqüentemente, são as preferências pelas funções que marcam e caracterizam as pessoas. Segundo os autores, as inclinações temperamentais podem ser observadas nas pessoas desde muito cedo (em alguns casos mais cedo do que em outros) e, por essa razão, sentem-se tentados a afirmar que talvez se trate de formas inatas (Keirsey e Bates, 1984, p.5).

Enquanto a extroversão (E) se relaciona com características pessoais tais como: sociabilidade, multiplicidade de relacionamentos e interesses em assuntos externos, a introversão (I) se relaciona com atitudes pessoais tais como: concentração, relações interpessoais limitadas e restritas, e interesses internos à pessoa.

A palavra sensible (S) é utilizada para pessoas voltadas para a sensation, cujo significado se refere àqueles que acreditam nos fatos, na realidade e, por essa razão, valorizam a experiência, o bom senso, o fato em si. Por isso, essas pessoas são essencialmente práticas e “pés no chão”. As pessoas N (segunda letra da palavra intuição) voltam-se para a fantasia, ficção e imaginação.

Os autores utilizam a palavra pensamento, de onde advém a denominação T (primeira letra da palavra inglesa thinking) como sinônimo de razão, que se traduz em características pessoais tais como: objetividade e abordagens impessoais nos diversos assuntos. Por outro lado, utilizam a palavra sentimento (primeira letra da palavra inglesa feeling) como sinônimo de sensibilidade, que se traduz em características relacionadas à harmonia nas relações humanas, valorização das circunstâncias e abordagens subjetivas nas diversas situações.

A atitude judicativa ou de julgamento (J) relaciona-se à necessidade de organização nas decisões a serem tomadas, ao planejamento das diversas ações, à busca de situações definidas e prazos estabelecidos, enquanto que a percepção (P) relaciona-se à flexibilidade, à necessidade de opções em aberto e improvisações.

Com base nos quatro pares de funções psicológicas, Keirsey e Bates (1984) estabelecem quatro perfis gerais de temperamento: SP (realista perceptivo), SJ (realista judicativo), NT (intuitivo racional) e NF (intuitivo sensível). Cada tipo apresenta características pessoais diferenciadas, como resultado da combinação das diversas variáveis pessoais.

Em função das funções que o caracterizam, o tipo SP (realista perceptivo) necessita de ação e liberdade, repudiando planos e objetivos a longo prazo. Indiferente a hierarquias baseadas em títulos e regulamentos rígidos, é o mais fraternal de todos os tipos e o mais apto a resolver situações de crise. O tipo SJ (realista judicativo), ao contrário, não gosta de improvisações e adapta-se com facilidade aos regulamentos, às regras e aos diversos modos de trabalho nas organizações, respeitando sempre as hierarquias. Por essa razão, o dever e a responsabilidade em relação a tudo que lhe diz respeito representam suas características pessoais marcantes.

O perfil NT (intuitivo racional) orienta-se para a competência, a capacidade e o saber. Aprender é uma preocupação constante, já que é o mais autocrítico de todos os perfis, sentindo compulsão para modificar o ambiente em que atua. O NF (intuitivo sensível), por sua vez, orienta-se essencialmente para a sua auto-realização e a defesa de sua individualidade, integridade e coerência interna, trabalhando mediante uma visão de perfeição interior.

Com o objetivo de identificar a finalidade máxima de vida para cada temperamento, Keirsey e Bates consideram que quatro personagens mitológicas gregas podem representar simbolicamente e de forma mais precisa, ainda que metafórica, os quatro temperamentos. Assim, o SJ (realista perceptivo), representado por Dionísio, caracteriza-se pela impetuosidade e a busca de liberdade. O SJ (realista perceptivo), associado a Epimeteu, tem como essência o senso do dever e o da responsabilidade. O NT (intuitivo racional), identificado com Prometeu, caracteriza-se pela busca pelo saber e pela competência. E o NF (intuitivo sensível), representado por Apolo, tem a necessidade compulsiva de encontrar sua própria autenticidade e sentido existencial (Keirsey e Bates, 1984).

Os perfis temperamentais como esquemas de compreensão

Ao defender uma visão holística em relação às pessoas, Keirsey e Bates (1984, 1988) afirmam que os perfis não derivam simplesmente da soma das diversas funções. A pessoa forma um bloco único e, por essa razão, os autores afirmam que preferem a terminologia adotada por Spranger (1976), ao defender a existência de valores que afetam a unidade existencial.

Por outro lado, os perfis não pressupõem necessariamente a existência de representantes típicos, já que os quatro perfis temperamentais apontados - dos quais resultam dezesseis subtipos -, devem ser entendidos sempre como esquemas de compreensão com a finalidade de ajudar os professores a desenvolver novas percepções sobre si mesmos e sobre os alunos, propiciando-lhes mudanças na forma de encarar as diversas situações de classe.

Portanto, não há a pretensão de classificar os indivíduos segundo determinados padrões, mas a de permitir uma generalização de tendências que acaba se ajustando a cada indivíduo particularmente, embora existam sempre aspectos circunstanciais a serem considerados em cada caso.

Vários estudiosos denunciam os riscos adjacentes a essa classificação, já que o aspecto heurístico-descritivo encontra-se constantemente ameaçado pela idealização axiológico-nomativa. (um tipo vale mais do que outro tipo). Esse cuidado deverá estar sempre presente, já que um perfil não é melhor do que outro, pois cada qual apresenta características diferenciadoras que devem ser sempre apreciadas.

À medida que os perfis correspondem a tipos ideais, é necessário que o investigador tenha sempre presente o seu caráter nominalista, visto que se tratam de conceitos construídos. Por essa razão, representam um quadro de pensamento e não um quadro de realidade autêntica, refletindo um conceito-limite ideal por meio do qual se mede a realidade, a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns de seus elementos. Portanto, os perfis representam tipos psicológicos ideais, “caricaturas” e imagens que podem ajudar a entender os diversos casos individuais. Embora possam dar a impressão de fragmentar o homem em diversos elementos, podem por outro lado possibilitar uma síntese na qual todos os elementos se integrem, evidenciando a originalidade e singularidade inerente a cada pessoa.

Além desses aspectos, os perfis temperamentais defendidos por Keirsey e Bates (1984,1988) não excluem a importância da influência que o meio ambiente exerce sobre o indivíduo. Ao admitirem a possibilidade de modificar o temperamento principalmente por meio da vontade e do hábito, que é, para os autores, uma segunda natureza, reconhecem a possibilidade de mudança inerente ao homem a partir da consciência de si. O importante a considerar é que as pessoas apresentam formas diversas de se reportarem à realidade e é com base nesses mapas que se orientam nas diversas circunstâncias.

Implicações para a docência

As diversas tendências individuais representam subsídios importantes para o docente, uma vez que se refletem tanto no relacionamento que se estabelece entre professores e alunos, como nos diversos modos de aprendizagem, nas formas de reagir ante as adversidades da vida escolar e familiar, nos objetivos propostos em relação aos empregos e à vida em geral e na escolha profissional.

As tendências psicológicas apontadas por Keirsey e Bates (1984 e 1988) podem servir de base não só à análise das diversas áreas vocacionais e profissionais pelas quais se inclina o aluno, como também à reflexão sobre quais tarefas, dentro dessas áreas, podem corresponder às principais inclinações demonstradas pelos alunos na vida profissional [3] .

No campo da aprendizagem e da relação entre professor e aluno, os perfis identificados pelos autores permitem esclarecer alguns aspectos altamente relevantes. O principal deles relaciona-se à necessidade de se considerar sempre os limites de cada natureza com respeito ao querer, ao sentir e ao pensar (ethos, pathos e logos) e que por sua vez representa um dos aspectos éticos mais delicados da educação, pois entre vontade, sentimento e pensamento há sempre uma inter-relação complexa nem sempre diferenciada. Somente no concreto, segundo a natureza pessoal de cada um, é que o pensamento pode prevalecer sobre o sentimento e a vontade, ou um destes sobre os outros dois.

Neste sentido, será praticamente impossível um perfeito equilíbrio entre as três valências, mas a busca da harmonia entre os três é sem dúvida a função básica da educação. Para tanto, é fundamental que o professor compreenda seus alunos, colocando-se no lugar destes, para ajudá-los a redimensionar sua situação no mundo, capazes de interagir nesse mundo e sendo, concomitantemente, influenciados por ele.

Entre essas valências, o pensar (logos) se coloca como um objetivo básico da educação, já que se refere ao desenvolvimento do pensamento, da intelectualidade, da capacidade de formular juízos e de raciocinar com a devida coerência. Relaciona-se, entretanto, tanto ao querer (ethos) como ao sentir (pathos) e, por essa razão, o fato de conhecer o querer, a vontade e os sentimentos dos alunos com os quais interage assume um aspecto de importância capital para o decente.

Para tanto, é essencial tanto o conhecimento como a compreensão do aluno, os quais Dilthey denomina de explicar (erklären) e compreender (verstehen) (Silva, 1992). Enquanto o conhecimento se refere à aquisição da verdade com base na experiência atual, que, por sua vez, se apóia em experiências passadas, a compreensão envolve sempre um ato de adesão ao outro para envolvê-lo num sentido de reconhecimento, baseado numa compreensão elevadora da qual nos fala Spranger (1986). Portanto, o ato de compreender envolve necessariamente a sensibilidade ao outro, sensibilidade essa que implica em colocar-se no lugar do outro e perceber que ele pode ter uma forma completamente diversa da minha para reportar-se à realidade. 

Além disso, o homem é um ser situado, pois ser homem é ter uma dada condição humana. Por essa razão, o situar-se é condição inseparável da existência. E se não existe, por parte do professor, um esforço contínuo para se colocar no lugar do outro, dificilmente se forma a ponte através da qual se estabelece a comunicação que, por sua vez, proporciona a construção do conhecimento por parte do aluno.

A percepção de que as diversas atitudes dos alunos em classe têm uma significação própria, baseada na forma de perceber-se e de organizar-se face à situação de classe, representa muitas vezes um fator decisivo para que se desencadeie a aprendizagem. E é neste sentido que os perfis apresentados por Keirsey e Bates podem ter importância determinante para o professor.

Diante disso, é preciso que o professor não se limite a conhecer seus alunos, mas que vá ao encontro deles, de seu querer, de seus sentimentos, trazendo-os para si,  possibilitando-lhes participarem do que irão estudar, levando em conta suas experiências, vivências, conhecimentos prévios e os seus cotidianos, repletos de valores e significados.

Se não há essa co-participação do ser que aprende, não há educação do querer, do ethos, pois, basicamente, a educação é um ato de compreensão do outro, já que cada um oferece uma resistência própria, derivada de tendências pessoais que devem ser respeitadas. Tais resistências e tendências interferem a todo o momento no processo ensino-aprendizagem e devem ser consideradas para que haja compreensão do ser que aprende em sua complexidade.

Por outro lado, a interação do aluno no grupo é, muitas vezes, um fator crucial para o desenvolvimento de sua singularidade. Tal interação baseia-se, em grande parte, na auto-estima e na auto-imagem que o aluno constrói paulatinamente por meio das relações que se estabelecem na escola, principalmente com os docentes.

A auto-imagem pode impor-se como obstáculo à aprendizagem, à medida que marca negativamente as relações que se estabelecem com os professores e com a escola em geral. Conseqüentemente, o processo ensino-aprendizagem é permeado pelas imagens que o aluno estabelece em relação ao professor e pelas imagens que o professor desenvolve em relação aos alunos. Tais imagens, geralmente assentadas em atitudes idealizadas que dificilmente se concretizam, definem as relações que se estabelecem em sala de aula, afetando de diversas formas e em diversos níveis, o processo ensino-aprendizagem (Silva, 1996).

Segundo Ramos de Oliveira (1994), há sempre uma tensão extraordinária na dissonância sempre presente entre as representações e valores oficiais transmitidos pela escola e suas contrapartidas semi-ocultas, informais e indiscutidas. Neste sentido, a auto-imagem pode impor-se como obstáculo à aprendizagem, à medida marca negativamente as relações que se estabelecem com os professores e com a escola em geral.

Na maioria das vezes, os alunos considerados indisciplinados e difíceis, com  um aproveitamento escolar inferior às suas possibilidades, tecem julgamentos pouco satisfatórios de si mesmos, considerando-se incapazes de realizar certas tarefas. Alguns tentam realizá-las, mas desistem à primeira dificuldade que encontram, envolvendo-se com outras tarefas, e propiciando ao professor a impressão de desinteresse para com as tarefas em classe. E ainda que a recusa em participar das atividades escolares seja freqüentemente avaliada como um foco de resistência ao processo de dominação da escola e ao tipo de aluno que esta se propõe a formar, essa não participação se justifica muitas vezes para incapacidade que sente o aluno ao realizá-las.

Neste sentido, pode-se inferir um aspecto fundamental que denuncia a relação estabelecida entre professor: a imagem (muitas vezes negativa) que o aluno faz de si próprio em relação ao conhecimento e às habilidades que lhes são exigidas no processo de constituição de sua personalidade. Muitas vezes, sucessivas e repetidas experiências de fracasso escolar podem levar o aluno a formar uma imagem de si próprio como incapaz, ocasionando sentimentos de desvalorização, os quais, por sua vez, desencadeiam a possibilidade de outros fracassos na escola.

Freqüentemente, as expectativas dos docentes implicam em contradição, pois ao mesmo tempo em que esperam dos alunos atitudes de respeito, docilidade e senso de limite, esperam também que haja interesse, participação e diversidade de opiniões. Foucault denuncia este fato afirmando que o sujeito obediente é produzido e sustentado por um poder difícil de denunciar, que molda e informa a psiqué e que ao mesmo tempo vale-se de diversas técnicas, tais quais as provas e exames, numa rede de instituições sociais, como a escola ( Silva, 1994).

Tais comportamentos transformam-se num círculo vicioso difícil de romper, já que os bons alunos tornam-se cada vez melhores e os maus alunos cada vez piores, com poucas possibilidades de reversibilidade depois de algum tempo. Ainda que a escola tenha como objetivo a formação de pessoas que saibam pensar por si e que tenham opiniões próprias, espera, na verdade, atitudes baseadas no conformismo e docilidade em relação à palavra do professor, que por sua vez incentiva essa atitude de dependência a todo o momento. Por outro lado, a transformação da educação exige, cada vez mais, o desenvolvimento de novas formas de avaliação em consonância com os valores, atitudes e estilos de ensino que se busca promover e potencializar, aceitando a diversidade de respostas adequadas possíveis que possam propiciar a busca da autonomia.

Para o professor, tais aspectos são extremamente relevantes, já que professores e alunos na sala de aula caracterizam um grupo novo, com relações próprias. É nessas relações que o processo de percepção e de avaliação de certas características pessoais assume importância decisiva. Por outro lado, o conhecimento dos valores básicos por meio dos quais o docente organiza seu comportamento constitui sem dúvida um subsídio valioso a serviço do entendimento dos diversos comportamentos conflitantes em sala de aula.

Assim, se o professor é uma pessoa SJ (realista judicativo), terá facilidade em seguir as normas adotadas pela instituição escolar, mas ao mesmo tempo poderá apresentar dificuldades em compreender um aluno cuja principal característica é a busca da auto-realização (NF, intuitivo sensível) ou a busca da liberdade (SP, realista perceptivo). Se for uma pessoa NT (intuitivo racional), movido pelo desejo do saber, certamente terá dificuldade em entender um aluno NF (intuitivo sensível), que se move pela busca de perfeição, ou um aluno SP (realista perceptivo) que se move pelo desejo de ação e liberdade.

Embora os alunos sejam diferentes entre si, são invariavelmente avaliados mediante o mesmo padrão, o qual estipula as qualidades positivas ou negativas. E à medida que a escola privilegia certos tipos de inteligência, como a inteligência lingüística e a lógico matemática (Gardner,1994 e 2000), principalmente quando se relacionam ao conformismo social, aqueles que apresentam essas qualidades supervalorizadas pela escola tendem a acentuá-las cada vez mais, enquanto aqueles que não apresentam tais qualidades, como os SP (realistas perceptivos), buscam formas alternativas de marcar sua presença, alternando comportamentos tais como: excessiva docilidade, hostilidade manifesta ou indiferença displicente .

Trata-se, pois, de um jogo complicado, porque quase sempre o professor está cego para algumas das melhores qualidades dos alunos se não as identifica em si mesmo e, em outros casos, tende a valorizar demasiadamente as qualidades que já tem ou que gostaria de ter. Assim, terá mais facilidade em identificar a função F (sensibilidade) ou T (razão), de acordo com a predominância de cada uma em seu temperamento, em detrimento da outra não predominante.  

Em outras ocasiões, ao atribuir a um aluno uma característica que é dele, o professor pode provocar o aparecimento desse comportamento em classe. Se considerar que um aluno possui procedimentos organizados (J), pode motivá-lo a desenvolver esse tipo de procedimento. Se, por outro lado, considerar que outro aluno apresenta sentimentos hostis, se comportará de forma a provocar o aparecimento de tal comportamento. À medida que essa manifestação de hostilidade por parte do aluno confirma a previsão anteriormente feita, cria-se um círculo vicioso, já que um tipo de comportamento passa a ser um estímulo para o outro.

Esses aspectos representam fontes inexauríveis de paradoxos que se instalam nas relações interpessoais entre professores e alunos, interferindo de modo decisivo nos resultados da aprendizagem e nas mudanças tanto de comportamentos como de atitudes por parte dos alunos.

A compreensão de que tais paradoxos possam ter como origem maneiras diferenciadas de se reportar à realidade pode ser um fundamento básico que possibilite ao professor incentivar uma forma de trabalho coletivo onde as diferenças pessoais possam ser contempladas e respeitadas em suas especificidades.

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[1] Keirsey e Bates denominam a intuição com a letra N (2a letra da palavra intuição), para não confundi-la com a letra I de introversão.

[2] Keirsey e Bates utilizam a letra T ( da palavra inglesa thinking) para caracterizar a razão e a letra F ( da palavra inglesa feeling)  para denominar a sensibilidade.

[3] Quanto às relações entre tendências temperamentais e campos profissionais, a autora realizou uma pesquisa na grande maioria dos cursos da Universidade de São Paulo, com o objetivo de verificar a dominância das tendências temperamentais nos diversos cursos, partindo-se da hipótese que estes favorecem o desenvolvimento dessas tendências. Os resultados desse estudo exploratório, sujeito a algumas variações e interferências, permitem estimar uma correlação possível entre tendências de temperamentos e campos profissionais. Silva, M.L.R. Personalidade e Escolha Profissional: subsídios de Keirsey e Bates para a orientação vocacional. São Paulo: EPU, 1992.