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Uma Visão Premonitória
Homenagem ao Geógrafo Milton Santos

 

Elian Alabi Lucci

Diretor da Associação dos Geógrafos
Brasileiros - Seção Bauru

 

O paradigma que norteou a Geografia nos últimos 30 anos foi: a ciência cuja preocupação maior era o processo de produção do espaço. De 1986, para cá, começando por Milton Santos (na comunicação apresentada na OEA naquele ano), passamos a ver a Geografia com novos olhos diante do processo de mudança em que o mundo vem se inserindo analisar o comportamento do homem segundo o meio técnico-científico-informacional que toma conta da humanidade. Por conta desse meio técnico-científico-informacional tudo no mundo hoje parece girar em tomo da informação. Fala-se em “revolução digital”, traduzindo-se a mesma competência para o acesso à informação. Ora o simples acesso à informação não se traduz por conhecimento.

O que a informação deve nos propiciar através da Geografia, até no dizer de um grande filósofo, Julian Marias, é elaborar uma correta visão do mundo. Nesta visão, fica implícita a necessidade de compreendermos o que é o global e o local, o que é a destruição “criativa” de Joseph Schumpeter e o que Edgar Morin quer dizer quando fala que toda a evolução é um jogo de desorganização e reorganização e que a humanidade vive uma crise sem par em toda sua história.

E por que a sociedade está em crise? E o que a Geografia tem a ver com ela? A sociedade está em crise porque, simplesmente, não consegue se constituir como humanidade. Está em crise porque o homem está em crise. Crise esta explicada por Morin magnificamente quando ele diz que: “o homo sapiens sapiens ainda vive não uma crise macroeconômica global, mas uma crise antropológica”. Daí Milton Santos falar em Metageografia , ressaltando o papel da Filosofia para ajudar a entender melhor o homem e seus desequilíbrios pessoais, que geram as desigualdades fruto da ótica capitalista em que ele se estriba para organizar uma nova ordem econômica hedonista e materialista; ordem essa, cujos reflexos cabe à Geografia, não só analisar mas tentar das soluções uma vez que o ápice dessa crise se situa no urbano, que congrega a maior parcela da população mundial; daí a ascensão do conceito de cidade global, como catalisadora de todas as expectativas da sociedade mundial. Esta cidade global é o fulcro de um novo sistema que poderá vigorar num futuro próximo — o espaço em redes. Para o espaço em redes (também já previsto por Milton Santos, na década de 1980), essas cidades são a interligação do virtual com o geográfico, dando a Internet a sua territorialidade.

O Espaço das Redes ou o Novo Homem entre o Ser e a Rede

No contexto da revolução científico-tecnológica, no limiar do século XXI, as realidades geográficas se renovam. Assistimos assim a emergência de novos matizes conceituais na ciência geográfica.

Dentro desse revisitado corpo conceitual da Geografia, três noções vêm ganhando notoriedade desde o final do século XX: meio técnico-científico-informacional, redes e cidade global. O espaço geográfico hoje tende a se tornar um meio técnico-científico-informacional, constituído por um grande conteúdo em ciência, técnica e informação, daí resultando uma nova dinâmica territorial. Isso se deve sobretudo ao processo de globalização, marcado, entre outros aspectos, pela expansão das empresas multinacionais, que investem maciçamente em pesquisa e desenvolvimento de novos produtos e sistemas de produção. Essa situação leva a um tipo de produção com um conteúdo em ciência, tecnologia e informações cada vez maior. Os caixas eletrônicos, os telefones celulares, os computadores conectados à Internet são apenas alguns exemplos desse espaço “carregado” de ciência, técnica e informação. Esse meio técnico-científico-informacional dá-se em muitos lugares de forma extensa e contínua (Estados Unidos, Japão, Europa e parte da América Latina), enquanto em outros (África, parte da Ásia e parte da América Latina), apenas se manifesta como manchas ou pontos. Desta forma nota-se cada vez mais uma oposição entre espaços adaptados às exigências das ações econômicas, políticas e culturais características da globalização e outras não-dotadas dessas virtualidades.

As Redes

Até há pouco tempo, a superfície do nosso planeta era utilizada de acordo com divisões criadas pela natureza ou pela história, chamadas regiões. Essas regiões, de uma maneira generalizada, correspondiam à base da vida econômica, cultural e às vezes também política. Hoje, devido ao processo das técnicas e das comunicações, a esse território se superpõe um território das redes, que num primeiro momento dá a impressão de ser uma realidade virtual.

Mas, ao contrário do que se pode imaginar, não se trata de um espaço virtual. As redes são realidades concretas, formadas por pontos interligados, que tendem a se espalhar por toda a superfície da Terra, ainda que com desigual densidade, conforme os continentes e países. Essas redes se constituem na base da modernidade atual e na condição necessária para a plena realização da economia global. Elas formam ou constituem o veículo que permite o fluxo das informações, que são hoje o motor principal da globalização.

Segundo Manuel Castells, no volume 71 de sua trilogia — A era da informação: economia, sociedade e cultura —, a nossa sociedade está constituída em tomo de fluxos: fluxos de capital, fluxos da informação, fluxos da tecnologia, fluxos de imagens, sons e símbolos. Esses fluxos não representam apenas um elemento da organização social, mas são a expressão dos processos que dominam nossa vida econômica, política e simbólica. O tipo de rede de visualização mais fácil para representar o espaço de fluxos é a rede constituída pelos sistemas de processos decisórios da economia global, especialmente os do sistema financeiro.

De acordo com Castells, o espaço de lugares teria sido substituído pelo espaço de fluxos, assim como tempo cronológico teria dado lugar ao “tempo intemporal”. (É o tempo das redes de comunicação “real”, que torna o futuro um eterno presente.)

A teoria social do espaço e a teoria do espaço de fluxos

O espaço de fluxos é, portanto, a organização material das práticas sociais de tempo compartilhado que funcionam por meio de fluxos.

Práticas sociais dominantes são aquelas que estão embutidas nas estruturas sociais dominantes.

O espaço de fluxos, com a forma material de suporte dos processos e das funções dominantes na sociedade informacional, pode ser descrito (em vez de definido) pela combinação de três camadas de suportes materiais, que juntas constituem o espaço de fluxos.

A primeira camada, o primeiro suporte material do espaço de fluxos, é constituída pelo circuito de impulsos eletrônicos (microeletrônica, telecomunicações, processamento computacional, sistemas de transmissão e transporte em alta velocidade), formando em conjunto a base material dos processos estrategicamente decisivos na rede da sociedade global, como as ferrovias definiam as regiões econômicas. Em consequência disso, a rede de comunicação é a configuração espacial fundamental: os lugares não desaparecem, mas sua lógica e seu significado são absorvidos na rede.

A segunda camada é constituída pelos nós e centros de comunicação. O espaço de fluxos não é desprovido de lugar, embora sua estrutura lógica o seja. Está localizado em uma rede eletrônica, mas essa rede conecta lugares específicos com as características sociais, culturais, físicas e funcionais bem-definidas. Ele é materializado pelas cidades. Esses nós são as cidades globais.

A terceira corresponde à organização espacial das elites gerenciais dominantes (e não das classes) que exercem as funções direcionais em torno das quais esse espaço é articulado.

A forma básica de dominação de nossa sociedade baseia-se na capacidade de organização da elite dominante que segue de mãos dadas com sua capacidade de desorganizar os grupos das sociedades que, embora sejam maioria numérica, vêem (se é que vêem) seus interesses pouco representados dentro da estrutura do atendimento dos interesses dominantes.

A articulação das elites e a segmentação e desorganização da massa parecem ser os mecanismos gêmeos de dominação social em nossas sociedades.

O espaço desempenha papel fundamental nesse mecanismo: em síntese, as elites são cosmopolitas, enquanto as pessoas são locais. O espaço de poder e riqueza é projetado pelo mundo, enquanto a vida e a experiência das pessoas ficam enraizadas em lugares, em sua cultura, em sua história.

As Cidades Globais

A qualidade e quantidade dos fluxos é que diferenciam as regiões e lugares, proporcionando aos mais bem dotados uma posição relevante, em detrimento dos menos dotados.

Cabem aos nós dessas redes presidirem as atividades mais características (as pós-industriais) do nosso mundo cada vez mais globalizado.

Cada um de nós precisa ter uma infra-estrutura tecnológica adequada, um sistema de empresas auxiliares fornecendo os serviços de suporte, um mercado de trabalho especializado e o sistema de serviços exigido pela força de trabalho liberal.

Estes nós são, em geral, as metrópoles, onde um grande número de fatos e acontecimentos próprios de nossa época se combinam e acontecem.

Mas numa classificação mais rigorosa só se deve incluir entre as metrópoles ou cidades globais algumas poucas como Nova York, Los Angeles, Tóquio, Londres, Paris, cidades que são efetivamente capazes de exercer um papel de comando sobre outras cidades e sobre uma boa parte do mundo.

Podemos inserir também nesse rol, num segundo nível, algumas cidades como São Paulo, Cidade do México, Johannesburgo, cuja influência se dá em áreas menores e mais circunscritas do globo.

Mas o exercício da ação hegemônica sobre a face da Terra não é algo exclusivo das metrópoles de primeira grandeza sem as outras cidades, a economia global não se realizaria.

Concluindo, meio técnico-científico-­informacional, espaço em redes e cidades globais se constituem no novo tripé em o qual a Geografia deverá trabalhar no século XXI, exigindo de nós geógrafos não apenas a preocupação formacional voltada para o magistério mas para a pesquisa e o planejamento em inúmeros sentidos.

 

Bibliografia

CASTELS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo, Paz e Terra, 1999.

CASTRO, Iná Elias (org.) Geografia: Conceitos e Temas. São Paulo, Bertrand Brasil, 1995.

LUCCI, Elian A. et al (org). Milton Santos: cidadania e globalização. São Paulo, Saraiva/AGB-Bauru/UNESP-Bauru/SINPRO, 2000.

SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional. São Paulo, Hucitec, 1994.

________ O período técnico-científico e os estudos geográficos. Comunicação apresentada no  Seminário Internacional sobre o ensino de estudos sociais, promovido pela OEA. Washington, 28 de julho de 1986.

SCHWARTZ, Gilson. Estratégias valorizam a formação de redes locais. In: Folha de São Paulo. 31/12/2000. Caderno Dinheiro, p.2

Notas

1-       “(...) A geografia está na vanguarda de muitas frentes de trabalho. Do ponto de vista teórico lidera uma das correntes mais respeitadas, pois decidimos enfrentar o desafio de procurar uma maior aderência da nossa disciplina para fazer face às rápidas mudanças do mundo de hoje. Assim, tivemos de revisitar todos os seus conceitos básicos: espaço geográfico, território, região, lugar, cidades, entre outros. Com isso, esperamos oferecer um conhecimento geográfico mais competente e ajustado às características do mundo em que vivemos. A velha geografia descritiva, analítica, sem teoria perde hoje para as imagens. A descrição foi superada pelo vídeo, pelo cinema, pela fotografia. Esse é o problema maior da velha geografia. Assim, ao enfrentarmos esse problema, teremos condição de avançar do ponto de vista teórico e sermos mais necessários para a compreensão do mundo, fazendo face ao mundo da globalização, do processo de fragmentação dos territórios que caracteriza a geopolítica contemporânea e assim por diante. Isto sem falar nos agudos problemas das metrópoles, da chamada questão ambiental. Mas, do ponto de vista técnico, a geografia aliada à cartografia — pois são inseparáveis —também avançou, graças aos Sistemas de Informação Geográfica (SlGs) e ao sensoriamento remoto, permitindo uma cartografia de precisão, além de uma interpretação mais ágil e correta sobre os processos na superfície do planeta. (...)” Extraído de: Maria Adélia Aparecida de Souza. Os próximos passos da ciência. In Ciência Hoje. Vol. 24, n.9 140, julho 1998, p.47

2-       “(...) No inicio existia o que chamamos Meio Natural, onde homens organizados retiravam do meio-ambiente as coisas de que necessitavam pra viver. Essa ‘era’ durou até o século XVIII. A partir de então, houve a mecanização do meio (chamado Meio Técnico), onde o homem interfere diretamente no meio-ambiente. Data daí a criação das grandes técnicas, chamado Meio-Técnico-Científico. E, por fim, chegamos ao momento em que vivemos, que pode ser denominado Meio-­Técnico-Científico-Informacional, onde o grande passo é a inclusão da informação. (...)” Extraído de: Aylene Bousquat. Cidades Sustentáveis. In: Tema/Radis. Fiocruz.. Rio de Janeiro, maio 2000, p. 08.