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Três Crônicas do Quotidiano do (sub)Mundo

 

Maria Cristina Castilho de Andrade

(A autora exerce em Jundiaí trabalho pastoral carcerário e com mulheres de rua.
É autora do livro Nos Varais do mundo / Submundo, São Paulo, Loyola, 2001)

 

Filhos-Anjos

A menininha veio para ficar pouco. Quarenta e cinco dias. O tempo não é nosso, cabe a Deus. Vinícius diria: “Aí, pergunto a Deus/ Se foi pra desfazer, / por que é que fez?” Mas, na verdade, apenas o corpo se desmancha, o encanto permanece para sempre. Foi Guimarães Rosa que escreveu e gosto de repetir: “As pessoas não morrem, ficam encantadas!” A menininha veio de pele de pêssego e os anos foram interrompidos  não a tornando áspera. A mãe e o pai carregaram-na, desde os primeiros dias da concepção, como em cesto com cortinado de tule rosa, onde ela embalava, ainda no útero, os seus sonhos de viagem em direção ao porto do Reino.

“Sim! Pois tu formaste os meus rins/ tu me teceste no seio materno. Eu te celebro por tanto prodígio, e me maravilho com as tuas maravilhas!

Conhecias até o fundo do meu ser: / meus ossos não te foram escondidos/ quando eu era feito, em segredo, / tecido na terra mais profunda.

Teus olhos viam o meu embrião./ No teu livro estão todos inscritos/ os dias que foram fixados/ e cada um deles nele figura.” ( Salmo 139)

O pai da menininha conta que a enterrou no coração, quando ela, sem laços de fita, sem rendas de adorno, pisou no barco de Pedro e foi para outro Mar. Incoerência diante da saudade que sente, da vontade que permanecesse e, de alguma forma, a faz presente? Entendo! Era o que desejava por se sentir, de alguma forma, dono daquele pedacinho de gente que era festa na espera e no momento do nascimento. Foi a experiência mais forte de compreensão, mesmo não querendo, de que os pais articulam a multiplicação das células que forma o corpo, mas tudo acontece e a vida transborda porque o Espírito de Deus paira sobre o ser humano. Não somos donos de nada e de ninguém, somos apenas portadores.

“Mas, a mim, que difíceis são teus projetos, / Deus meu, como sua soma é grande! / Se os conto... são mais numerosos que areia!” ( Salmo 139)

O pai da menininha tem na alma uma harpa. Procura não dedilhar todas as cordas, de uma vez, a fim de não se entregar plenamente à emoção. Penso que tem medo de ultrapassar-se e morrer de agonia por estar preso a terra. Há dias, contudo, em que esbarra numa delas e um cântico, bonito e comovido, desperta, para ele, a filha que mora no Jardim do Paraíso. Foi assim um dia desses, após ler um texto que falava sobre pais que têm filhos-anjos. Sofrem muito quando eles partem, mas nem imaginam a bênção que recebem, até pela possibilidade de entenderem: o valor da renúncia no amor, a profundidade da vida humana e que somos eternos. Penso que, naquele dia, sobre sua vida em Deus, a menininha dizia ao pai -que ainda não concluiu o que aconteceu - ao ouvi-lo chamar pela cantiga de ninar da harpa:

“Para onde ir, longe do teu sopro? / Para onde fugir, longe da tua presença? / Se subo aos céus, tu lá estás; / se me deito no Xeol, aí te encontro.

Se tomo as asas da alvorada/ para habitar nos limites do mar,/ mesmo lá é tua mão que me conduz,/ a tua mão direita me sustenta.”( Salmo 139)

Tolerância

Três dias chorando. Dezoito anos. Horário errado. O menor passava exatamente por ali, quando ele saiu no portão, e se deteve para conversar um pouco. Lugar errado. Saída de sua casa. O morro, o barranco. Os cômodos agora, tijolo à vista, de alvenaria. Lá embaixo, em volta da habitação, o jardim feito do silêncio amedrontado que, quase sempre, engole detritos da alma humana; da escuridão imposta. Flores murchas. A miséria percorrendo o meandro do córrego fétido, que, outrora, de pés descalços, servia-lhe como caminho de embarcação. Foi mais tarde que percebeu haver, em lugar do porto, uma rocha comprimindo seus pés.

As palavras, entre o menor e ele, eram monótonas. Conversavam por conversar. A sirena interrompeu o opaco da transição do dia para a noite e penetrou nos dois. O menor carregava o ilícito para consumir e multiplicar. O maior continha, apenas, o conhecimento, de boca fechada, sobre o menor. Não adiantaram: a confirmação de que trabalhava e que chegara há pouco, o testemunho do menor, os comentários dos vizinhos, foram os dois levados para celas com prenúncio de intempérie.

Três dias chorando. A “família do barraco” não agüentava mais o som da lamentação. Um dos líderes, trinta anos mais ou menos, propôs-se a ensiná-lo. Os outros repartiram a experiência. O ódio foi colocado como mestre para o “convívio” não doer. Tempestade de palavras: desejo de vingança; vingança; estilete; sociedade que não oferece oportunidade para os egressos das cadeias; corrupção sem punição; pobres infratores acotovelados nos cárceres, enquanto ricos infratores comem pizza em casa; a falta de preparação para voltar ao convívio social; o delito repetido em nome da sobrevivência; os olhares que excluem, marginalizam e condenam. Aconselharam-no, ainda, que esquecesse qualquer palavra, acontecimento ou lição que dissessem de amor, iluminando a alma. Deveria conter a ira e cultivar o rancor violento, demonstrando repulsa ao bem.

O rapaz ignorou os ensinamentos. Pediu uma folha de papel a quem, de fora da cela e daquele mundo, os observava, desenhou um coração e solicitou que fosse enviado à mãe, dizendo da vontade de abraço, da esperança na verdade de Deus e acrescentando que pedisse ao pai para deixar de fugir no álcool. Tolerância.

Estancaram os ruídos das falas irritadas. O que havia se feito mestre, anunciando o ódio, pediu, à portadora do bilhete, que lhe trouxesse, na semana próxima, um livro sobre a eternidade.

Fissura

Chegou com olhos de procura. Tentou desvendar-me para verificar se em alguma gaveta da mesa, onde eu estava, cabia um pouco dele, mesmo eu não o tendo conhecido.

Menina nova, olhos com poucas estrelas, roupa desfeita de adereços. Não me disse dele, disse dela em relação a ele e, sem palavra alguma, somente com os olhos prenhes de lágrimas.

Descobriram-se aos poucos. A vontade de estar juntos. Os passeios. A pele. Carinhos. Murmúrios dizendo de amor e o sonho da casa de três cômodos com cortinas azuis no quintal da sogra. Faria para ele um canteiro com hortênsia azul e gerânios vermelhos e brancos. Faria para ela vasos com amor-perfeito de todas as cores. No jardim, a lua em forma de candeeiro.

A sogra estava com ela quando veio. Cabelos pretos desbotados. Em volta dos olhos, em lugar de sulcos, para ajudar a semeadura, crateras. Em volta dos lábios, traços vermelhos interrompidos, acordes de outrora. Oscila entre o ser e o não ser “dama da noite”. “Dama da noite...” Noite... Damas... Peça somente no tabuleiro. O dado decide quem começa o jogo. Nunca fora da sorte, mas também não esperava que sua história, entre um tablado e outro, atingiria, com desgraça, as vidas ao redor. Tinha um destino certo para o filho, destino com justificativas e motivos para o jogo que entrara. Amavam-se com silêncios e compreensão. Amavam-se no desejo de que as coisas fossem diferentes.

Pensando não conseguir explicar como se encontram as entranhas, após a partida de “seu menino” – um engano no meio marginal o levou - menino bom e responsável, comenta: “O mundo ficou tão grande, depois que ele morreu!” Entendo em profundidade! O espaço tornou-se vazio de sua maior criação. Tenta excluir da alma o que o olhar viu ao identificar o corpo depois de quase um mês jogado na “selva”.

Devolvo à mãe os papéis do velório e do enterro que se encontravam comigo. A moça pede para ver. Lê, atenta e abraça com força, a história da tragédia com fisionomia de ressurreição. Troca olhares de imensidão de águas com a sogra, que lhe abraça a barriga e me diz: “O que ficou dele está aqui e nascerá na volta do Outono”.