Isócrates - Contra os Sofistas

Marcos Sidnei Euzebio

Isócrates nasceu em Atenas, no ano de 436 a.C. Contemporâneo de Platão e dos socráticos, a tradição afirma que, além de aluno dos sofistas Górgias e Pródico, também acompanhou as andanças de Sócrates pelos ginásios e praças de sua cidade. Com certeza, o tímido retor, incapaz de falar em público, [1] não ficou, ainda assim, imune ao cenário cultural de sua época. Transformando suas falhas em vocação e destino, Isócrates funda com sua paidéia aquilo que Cícero traduziria de modo perene como humanitas: uma educação predominantemente literária, que se concebe, ao mesmo tempo, como formação política, marcada por um "espírito de fineza" em tudo contrário à matematização e à pretensão dos platônicos e dialéticos. Professor de retórica que afirma fazer filosofia (a "verdadeira filosofia" [2] ), Isócrates dá início, junto com Platão, à velha e sempre renovada contenda entre o ensino científico e o estudo das humanidades. E o discurso "Contra os Sofistas" pode ser considerado um dos primeiros lances desse jogo.

Escrito em 390 a.C., quando Isócrates já contava 46 anos e iniciava suas atividades de professor, abandonando a carreira lucrativa mas pouco valorizada de escritor de discursos forenses, o "Contra os Sofistas" é um manifesto. Um texto curto [3] , escrito com o empenho de mostrar de que maneira sua concepção de paidéia, ao não se confundir com as demais, era melhor do que elas. Como todo polemista, Isócrates não ignorava - bem antes de Stendhal - que um duelo é a melhor maneira de se entrar em sociedade. E na abertura de sua escola de retórica ele ataca por todos os lados.

Os primeiros a serem criticados são os erísticos, ou seja, os disputadores. Nesta categoria estão todos os que se utilizam da dialética, a técnica retórica caracterizada pelas perguntas e respostas, seja para vencerem uma competição, simplesmente, e calarem o adversário ( e estes seriam os verdadeiros erísticos), seja para o fim mais nobre de se buscar a verdade. Essa crítica feita no início do Contra os Sofistas aos erísticos/dialéticos explica o motivo que impede Isócrates de tomar parte no clube dos filósofos: ao condenar os que "procuram a verdade", ele atinge um setor do socratismo que dará origem ao que se chamou filosofia, de fato. Se uma crítica geral à erística podia passar como um esforço de delimitação daquilo que a dialética pode fazer de válido e o que é irrelevante ou prejudicial, aqui Isócrates desconsidera justamente o que define o "filosófico", negando o valor da especulação levada a cabo pelos que inauguravam a "ciência do conceito." [4]

Além dos dialéticos, Isócrates vai criticar os que ensinam os "discursos políticos". [5] Estes não se preocupam em nada com a verdade, são desprovidos de talento e acreditam poder ensinar a qualquer um como se tornar um orador excelente. Para Isócrates, eles não sabem o que dizem, porque não levam em conta a natureza do discípulo (physis), nem a experiência (empeiria), este processo no tempo que, junto das capacidades naturais, determina os limites da educação. Tais mestres acreditavam que bastava memorizar uma grande quantidade de lugares-comuns para, mecanicamente, serem capazes de produzir discursos de todo tipo e em qualquer momento. Isócrates e Aristóteles [6] concordam aqui: isso é adestramento, e não formação - a verdadeira paidéia terá de ser, necessariamente, criadora. [7]

Por fim, Isócrates irá criticar os autores dos "manuais", as técnai, que inauguraram a retórica forense. Ao contrário dos anteriores, este últimos não alinhavavam lugares-comuns, mas indicavam em seus textos procedimentos para a litigância. Os autores dos manuais também são inferiores aos dialéticos que "se entregam às discussões" [8] porque estes, pelo menos, dizem buscar a virtude (areté) e a sabedoria (sophrosyne), enquanto aqueles incentivaram os discursos políticos ignorando suas possibilidades - tomando o político como manifestação particular de interesses particulares - e contentaram-se em ser professores de "intriga e cupidez." [9]

O texto chega ao seu final. Porém, uma afirmação cortante se destaca poucas linhas antes do fim: " Que ninguém pense, no entanto, que na minha opinião a prática da justiça possa ser ensinada. " [10] De repente, como se quase esquecesse, Isócrates retoma a oposição ao programa de uma parte [11] do socratismo e da sofística. Não há para ele nenhum caminho para uma arte (técne) que traga sabedoria (sophrosyne) e justiça (dikaiosyne) a quem não tenha inclinações para a virtude (areté). [12] Entretanto, o estudo da eloquência - nos moldes isocráticos, subentende-se - pode encorajar vocações. [13] O trabalho do mestre é debruçar-se sobre o talento, [14] fazendo com que se expresse o mais amplamente possível, e só. Podemos chamar de conservadorismo esse modo de tratar o problema da paidéia. A mediocridade de Isócrates, em sentido platônico ou "filosófico" é defeito. Porém, aquilo que Isócrates principia por chamar de philosophía no Contra os Sofistas é conatural a essa noção de conhecimento como o possível entre prováveis, uma opinião (dóxa) experimentada na comunidade humana. Isócrates fala do que se convenciona chamar de virtude e felicidade, e se orgulha disso: [15] é esta a marca distintiva de um pensamento e ideal de formação que chama de filosofia o que nós, hoje, não podemos chamar. [16]

 

Isócrates - Contra os Sofistas*

 

1 Se todos os que se ocupam da educação (paidéia) quisessem realmente dizer a verdade, e não fazer promessas maiores do que as que poderiam cumprir, não seriam difamados pelos cidadãos. Mas os que, muito irrefletidamente, ousam gabar-se, têm feito com que se acredite encontrar as decisões mais sábias junto aos que nada fazem do que entre os que se ocupam da filosofia (philosophía). [17]

Quem, de fato, não detestaria e não desprezaria em primeiro lugar os que se entregam às discussões? [18] Eles fingem buscar a verdade (alétheia), mas desde o início de seu programa põem-se a mentir. 2 Com efeito, na minha opinião, é evidente para todos que prever o futuro [19] não é próprio da nossa natureza: estamos tão longe de uma tal presciência (phronesis) que Homero, o homem mais ilustre por sua sabedoria, representou algumas vezes os deuses deliberando sobre o futuro: não que ele conhecesse seus pensamentos, mas porque queria nos indicar que para os homens isso é uma coisa impossível.

3 Os erísticos chegaram a uma tal audácia que procuram persuadir os jovens de que, ao freqüentá-los, conhecerão o que devem fazer e, graças a essa ciência, tornar-se-ão felizes. Ora, embora se tenham constituído professores e mestres soberanos de tão grandes bens, não se envergonham de pedir por eles somente três ou quatro minas. [20] 4 Se vendessem qualquer outro objeto a um preço bem inferior ao seu valor, não contestariam que não estão usando o bom senso, mas quando colocam toda a virtude (areté) e a felicidade (eudaimonia) a preço tão baixo, pretendem ser inteligentes e tornarem-se professores dos outros. Dizem que não têm nenhuma necessidade de bens: chamam a riqueza vil metal e ouro desprezível e, procurando obter um ganho ínfimo, prometem fazer quase imortais seus discípulos. [21] O mais risível disso tudo, porém, 5 é que não confiam nas pessoas de quem devem receber, enquanto vão transmitir-lhes o conhecimento do justo, pois pedem a outros, de quem jamais foram professores, a garantia da soma a ser paga por seus alunos. Eles tomam boas medidas por sua segurança, mas entram em contradição com seu programa. [22] 6 De fato, convém aos que dão um ensinamento qualquer examinar cuidadosamente seus interesses, pois nada impede que homens hábeis em todas as outras coisas não sejam honestos em matéria de acordos. Mas, não é ilógico que os que inculcam nos outros a virtude (areté) e a sabedoria (sophrosyne) não tenham uma grande confiança em seus discípulos? Evidentemente, se estes são honestos e justos com os outros, não cometerão falta em relação aos que lhes ensinaram essas qualidades. 7 Então, quando os leigos refletem sobre tudo isso, quando percebem que faltam muitas coisas aos que ensinam a sabedoria e transmitem a felicidade cobrando quase nada de seus discípulos; quando os vêem espreitar as contradições nas palavras, mas ignorá-las nos atos [23] e, além disso, fingirem conhecer o futuro, 8 mas nada serem capazes de dizer ou aconselhar acerca do necessário no presente; [24] quando vêem os que seguem as opiniões comuns (dóxa) concordarem entre si e terem melhor êxito do que aqueles que se gabam de possuir a ciência (epistéme), é com razão, para mim, que desprezam tais ocupações, julgando-as tagarelice e mesquinharia, [25] e não cuidado da alma. [26]

9 Devemos, no entanto, criticar não somente a eles, mas também aos que prometem ensinar a eloquência política. Pois estes, sem se importarem com a verdade, pensam que a ciência (téckne) consiste em atrair o maior número de pessoas possível, por conta de seus baixos salários e da grandiloqüência de suas declarações, e receber delas alguma coisa. Sendo estúpidos, acreditam que também os outros o sejam, a ponto de escreverem discursos piores do que aqueles que um leigo improvisaria. Prometem, entretanto, fazer de seus alunos oradores tão hábeis que não deixarão escapar nenhum argumento possível de qualquer assunto. 10 Não atribuem esta capacidade, de modo algum, nem à experiência (empeiria), nem às qualidades naturais do discípulo (phisis), [27] e pretendem transmitir a ciência do discurso (lógon epistemen) da mesma maneira que a da escrita, sem terem examinado o que são essas duas coisas, acreditando que o exagero de suas declarações fará com que sejam admirados e manterá em alta estima o ensino da arte oratória. Ignoram que o progresso nas artes se deve não às pessoas que se envaidecem a seu propósito, mas sim àquelas que podem descobrir todas as possibilidades contidas em tais artes. 11 E eu, antes de uma grande riqueza, preferiria que a filosofia tivesse tanto poder quanto dizem, pois não estaríamos, talvez, privados de grande parte dela, nem dela aproveitaríamos uma parte mínima. Mas, já que não é assim, gostaria que esses charlatães parassem de falar, pois noto que as maledicências recaem não apenas sobre os que cometem erro, mas que também são desacreditados todos os outros que se ocupam de trabalhos semelhantes.

12 Fico espantado quando vejo serem considerados dignos de terem discípulos pessoas que, sem que percebam, dão como exemplo de uma arte criativa procedimentos fixos. [28] Pois quem, excetuando eles mesmos, ignora que as letras são fixas e possuem um mesmo valor, de modo que continuamos a empregar sempre as mesmas letras para o mesmo objeto, enquanto o que ocorre com as palavras é justamente o contrário? Aquilo que um homem disse não tem a mesma utilidade para alguém que fale depois dele, e o mais hábil nesta arte parece ser aquele que se exprime de modo apropriado aos assuntos, usando expressões diferentes das usadas pelos outros. 13 Eis a melhor prova da diferença entre essas duas coisas: os discursos não podem ser belos se não estão de acordo com as circunstâncias (kairós), [29] adequados ao assunto e cheios de novidade, mas as letras não têm necessidade de nada disso. Assim, os que utilizam tais exemplos deveriam antes pagar do que receber dinheiro, porque tendo eles próprios necessidade de serem instruídos, se decidem a educar os outros.

14 Se é necessário que, não satisfeito em acusar os outros, mostre meu próprio pensamento, creio - e isto junto de todos os homens razoáveis - que muitas pessoas, depois de terem se dedicado à filosofia (philosophía), permaneceram simples particulares e que outros, sem jamais terem freqüentado sofista algum, tornaram-se oradores e políticos hábeis. É que a capacidade de fazer discursos e de agir aparece nas pessoas dotadas de qualidades naturais e naqueles que se exercitaram pela prática, 15 mas a educação (paidéia) os torna mais hábeis e mais bem preparados para a investigação, porque são instruídos a procurar no lugar adequado aquilo que encontrariam por acaso. Os que têm uma natureza menos rica não poderiam, pela educação, chegar a ser bons polemistas nem inventores de discursos, mas ela pode fazê-los progredir e torná-los mais ponderados em vários pontos. 16 E já que cheguei até aqui, gostaria de me explicar ainda mais claramente. Afirmo que adquirir o conhecimento dos elementos que servem para que se pronuncie e se componha todo tipo de discurso não é coisa difícil, se nos colocamos nas mãos não de pessoas que prometem coisas implausíveis, mas nas dos que são sábios nesta matéria; no entanto, escolher para cada assunto os procedimentos dos quais necessita, combiná-los e arranjá-los em uma ordem conveniente (táxis), [30] não se enganando acerca do momento indicado (kairós) de empregá-los, dar aos pensamentos o ornamento (poikilía) [31] que convém ao conjunto do discurso e empregar expressões harmoniosas e artísticas, 17 eis o que exige muito cuidado, e é tarefa de um espírito penetrante e enérgico. [32] O aluno, além das qualidades naturais necessárias, deve conhecer os elementos do discurso e exercitar-se em seu uso, e o mestre deve ser capaz de expô-los tão exatamente que não se omita nenhum ponto a ensinar e, quanto ao restante, se dar como exemplo, [33] 18 de maneira que os que receberam sua influência e sejam capazes de imitá-lo possam ser reconhecidos desde o início como oradores mais agradáveis e brilhantes que os outros. Se todas essas condições forem preenchidas, aqueles que se dedicam a filosofia (philosophía) chegarão à perfeição; mas se alguma das qualidades citadas estiver ausente, necessariamente os discípulos se encontrarão em desvantagem.

19 Os sofistas que recentemente apareceram, entregando-se à jactância, serão convencidos a adotar estes princípios, eu bem sei, apesar de seus excessos atuais. Porém, ainda é necessário falarmos dos que vieram antes de nós, e se permitiram escrever o que se costuma chamar de “manuais” (técnai). [34] Não podemos deixá-los sem crítica, porque prometeram ensinar a litigar: escolheram assim a expressão mais desagradável, que deveriam ter empregado aqueles que os invejam, e não os mestres em um tal método de educação (paidéia). 20 Além disso, esta disciplina, na medida em que pode ser ensinada, é capaz de servir tão bem para os outros gêneros de discurso como para o gênero judiciário. E eis aqui ainda em que eles permanecem inferiores aos que se intrometem em todas as discussões: estes últimos, ainda que exponham querelas que poderiam causar logo uma multidão de males a qualquer um que continuasse fiel a sua prática, prometeram, entretanto, a virtude (areté)e a sabedoria (sophrosyne); mas esses outros, que incentivavam as pessoas a fazer discursos políticos, negligenciaram tudo o que de bom havia neste tipo de discurso e aceitaram ser professores de intriga e cupidez.

21 E os que queiram obedecer aos preceitos deste tipo de filosofia poderão alcançar mais sucesso pela honestidade do que pela eloquência. Que ninguém pense, no entanto, que na minha opinião a prática da justiça (dikaiosyne) possa ser ensinada. Em geral, julgo, que não há nenhuma arte capaz de inspirar a sabedoria e a justiça naqueles em que a natureza não dispôs para a virtude (areté); contudo, creio que o estudo dos discursos políticos muito pode ajudar a estimular e exercitar essas qualidades.

22 Para impedir que se acredite que eu destruo os programas dos outros ultrapassando os limites do possível, farei ver facilmente, suponho, o que me persuadiu de que as coisas são como eu digo.

(~390 a.C.)

Bibliografia

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• Isócrates, Discursos, trad. J. M. Guzmán Hermida, Madrid, Ed. Gredos, 1979 (Vol. I: Contra Eutino, Recurso Contra Calímaco, Contra Loquites, Sobre el Tronco de Caballos, Sobre un Asunto Bancario, Eginético, A Demónico, Contra los Sofistas, Elogio de Helena, Busiris, Panegírico, Plateense, A Nicocles, Nicocles, Evágoras, Arquidamo - e Vol. II: Sobre a Paz, Areopagítico, Sobre el Cambio de Fortunas/Antídosis, Filipo, Panatenaico, Cartas).

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[1] Isócrates várias vezes expressou sua incapacidade para a tribuna política, cf. Isócrates, Carta a Dionísio, 9-10-; Carta aos Magistrados de Mitilene, 7; Filipe, 81, Panatenaico, 10-12.

[2] cf. Isócrates, Antídosis, 271-275.

[3] O modo como o discurso termina parece indicar que ele seria originalmente mais extenso. Quanto às discussões sobre isso, ver Mathieu-Brémond, Isocrate - Discours, Paris, Les Belles Lettres, 1928, Notice, p. 140, onde são contempladas as posições de Auger, Drerup, Blass e Muenscher. Mathieu concorda com este último, que considera a obra completa. É também o caminho que propomos.

[4] Sobre Sócrates como "inventor" dessa ciência, ver Magalhães-Vilhena, V. de, O Problema de Sócrates - O Sócrates Histórico e o Sócrates de Platão, Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 1984, p. 81.

[5] Isócrates, Contra os Sofistas, 9.

[6] "Com efeito, o adestramento proporcionado pelos profes­sores pagos de argumentos sofísticos assemelhava-se à maneira como Górgias tratou da matéria. Pois o que eles faziam era distribuir discursos para serem aprendidos de memória, alguns deles retóricos, outros sob a forma de perguntas e respostas, na suposição de que os argumentos de cada uma das partes estivessem todos, de modo geral, incluídos ali. E assim, o ensino que ministravam aos seus alunos era rápido, mas rudimentar. Imaginavam, com efeito, adestrar as pessoas trans­mitindo-lhes não a arte, mas os seus produtos, como se um homem que pretendesse ser capaz de transmitir o conhecimento de como evitar as dores nos pés não ensinasse ao seu aluno a arte do sapateiro nem lhe indicasse as fontes onde poderia adquiri-la, mas lhe apresentasse uma porção de calçados de todo tipo: pois esse homem o teria ajudado a satisfazer a sua necessidade, mas não lhe teria comunicado uma arte. Aristóteles, Dos Argumentos Sofísticos, 183 b 36. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, São Paulo, Nova Cultural, 1991, p. 197.

[7] Isócrates, Contra os Sofistas, 12.

[8] idem, Contra os Sofistas, 20.

[9] idem.

[10] idem, 21.

[11] Antístenes, p. ex., acreditava que para se alcançar a virtude bastava "a firmeza de Sócrates"(Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, VI, I, 11, trad. Mário da Gama Kury, Editora da Universidade de Brasília, 1987).

[12] Isócrates, Contra os Sofistas, 21. É o que Isócrates afirmara no início do texto (§ 4).

[13] idem.

[14] idem, 15-18. Cf. Antídosis, 188. Platão também sabe disso ( cf. Carta VII, 340c).

[15] idem, Antídosis, 84.

[16] O texto não se encerra com a negação do ensino da dikaiosyne. Nas últimas linhas, Isócrates afirma que irá justificar suas posições, para que não imaginem que destruiu gratuitamente o programa dos outros mestres (§ 22). Pois bem, mas este é o final do discurso: não há tal justificativa. Talvez ao discurso faltasse um pedaço, ainda que ele não fosse muito importante - Isócrates, ao se referir ao seu programa na Antídosis cita apenas o trecho compreendido entre os parágrafos 14 e 18. Uma possibilidade arriscada seria pensar que Isócrates, para provar "que as coisas eram como dizia" ( § 22), termina o texto e começa a aula, ou seja, dá por encerrado o que a palavra escrita pode conseguir - a apresentação de seu método e de sua "promessa" ao auditório da pólis - lançando-se ao trabalho da paidéia que só pode ser feito por meio da palavra falada. Ainda que Isócrates, como Platão, tenha sido um escritor profícuo, é ao lógos vivo - aquele que pode se defender - que dará a palma da preferência ( cf. Isócrates, Carta a Dionísio, 2-3; Filipe, 25-26; Platão, Fedro 275e).

* Para esta versão, baseamo-nos, preferencialmente, no texto grego estabelecido por Mathieu-Brémond, para a tradução francesa da Belles-Lettres, mas também na tradução de G. Norlin para a edição Loeb e na tradução espanhola de Guzmán-Hermida, edição Aguilar. A ajuda das professoras Gilda Naécia Maciel de Barros (FE-USP), Ísis Lana Borges Belchior (FFLCH - USP) e Anna Lia Amaral de Almeida Prado (FFLCH - USP) foi essencial. É claro que todos os erros são meus.

[17] Aqui é a primeira vez que Isócrates usa a palavra.

[18] Somente na Antídosis, 266, e no Panatenaico, 27, a dialética assume um significado positivo, como propedêutica para a "filosofia", mas não filosofia ela mesma.

[19] Prever o futuro quer dizer garantir a eudaimonía, um caminho certo para a felicidade. A presunção reside em acreditar que um gênero de prosa dê aos homens o que só pertence ao imponderável: "Antes de tudo, deveis saber que os gêneros de prosa não são menos numerosos que os das composições métricas. Alguns prosadores passaram a vida investigando a genealogia dos semideuses, outros filosofaram sobre os poetas, outros quiseram reunir as façanhas guerreiras, e outros se dedicaram às perguntas e respostas, os chamados dialéticos". (Isócrates, Antídosis, 45).

[20] Uma mina, pelo sistema eubólico - aquele da época de Isócrates - correspondia a 436 g de prata. (cf. Lévêque, P., A Aventura Grega, Lisboa, Edições Cosmos, 1967, p. 126). Górgias pedia, em seu tempo, cem minas; Isócrates, dez.

[21] "É provável que Platão não recebesse nada, mas resta a possibilidade de contribuições, 'ações entre amigos', que poderiam ter existido desde o tempo de Sócrates"( Jaeger,W., Paidéia - A Formação do Homem Grego, São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 1079, n. 51). Antístenes usava, além de um bastão e uma sacola, apenas um manto, que dobrava para servir também de túnica (Diógenes Laércio, VI, 1, 13). Diógenes, discípulo de Antístenes, morava em um barril (D. L., VI, 2, 23). Ésquines foi aconselhado por Sócrates a emprestar de si mesmo, comendo menos (D. L., 2, 7, 61). Aristipo é considerado o primeiro dos socráticos a cobrar honorários, que mandava para o mestre (D. L., 2, 8, 65). No Panegírico, 188-9, e no discurso A Nícocles, 39, Isócrates reafirma a necessidade de se manter distância de tais mestres.

[22] Essa é uma crítica comum e quase irresistível de se fazer aos mestres preocupados com um ensinamento moral. Platão, no Górgias, investe contra essa pretensão da retórica (456e - 457c, 460d - 461a), ainda que seus condiscípulos possam não estar imunes a ela: basta lembrarmos de Crítias e Alcibíades.

[23] No Elogio de Helena, 4, Isócrates reclama de charlatães que fingem convencer com palavras, mas que foram refutados pelos fatos há muito tempo.

[24] Veja-se também em Xenofonte, Sobre a Caça, 13, 6, uma crítica aos sofistas e a sua falta de sentido prático muito parecida com a que faz Isócrates.

[25] A mesquinharia desses homens (micrologia) é simétrica àqueles discursos enormes (macrói lógoi) que Sócrates, no Górgias, 461 d- 462, não quer ouvir. Pode-se pensar que também esta crítica fosse generalizada à época, o senso comum enxergando nas preocupações dos dialéticos uma perda de tempo e um esforço inútil (Górgias, 484c-485d).

[26] Termo caro à tradição socrática (cf. Apologia 29d, 29e, 30b; Protágoras 313 a). Interessante seria imaginar o que realmente Isócrates pensava ao deparar-se com tais questões. Isso depende de que ponto ele se manifesta: se de dentro do socratismo (cf. Magalhães-Vilhena, O Problema de Sócrates..., p. 496, e o prefácio de G. Norlin à sua tradução das Obras Completas de Isócrates) e então estaria dizendo que os socráticos não faziam juz à herança do mestre; ou de fora, como alguém que não compreende o que possa ser esse "cuidado da alma", ou o compreende de maneira diversa. Como afirma Jaeger sobre Sócrates, "nada se diz para demonstrar o superior valor da alma em comparação com os bens materiais ou com o corpo. Isto é algo de evidente por si mesmo e que se aceita sem discussão, por mais que os homens o esqueçam na sua conduta prática. Para o homem de hoje isto não tem nada de surpreendente, antes constitui para ele uma coisa banal. Mas seria este postulado tão evidente para os gregos daquele tempo, como é para nós, herdeiros de uma tradição de dois mil anos de cristianismo?"( Jaeger, Paidéia, p. 527)

[27] As qualidades naturais indispensáveis para a perfeição na "filosofia" isocrática são a capacidade de aprender , de se esforçar e de memorizar, além de boa voz, dicção clara e ousadia. (Antídosis, 189).

[28] Isócrates define a verdadeira retórica como obra de artista. Sua comparação com os maiores artistas da Grécia ( Antídosis, 2) radica nessa convicção.

[29] A preocupação com o kairós fazia parte da tradição retórica desde seus inícios. Se Górgias foi quem apareceu como o gênio no uso correto da oportunidade, nem por isso podemos afirmar que é somente a ele que Isócrates deve estar ligado quanto a isso: "Na realidade, também esta doutrina já está presente, mais ou menos explicitamente, no mundo pitagórico da Magna Grécia do século V. Segundo o testemunho de Aristóteles (Met. 1078b 21 segs), os pitagóricos entendiam o kairós como uma harmonia numérica: 'Primeiro os pitagóricos haviam procurado definir as coisas e, para defini-las, serviram-se dos números: por exemplo, o que é kairós, o que é a justiça, etc." (Plebe, A., Breve História da Retórica Antiga, trad. Gilda Naécia Maciel de Barros, São Paulo, EPU/EDUSP, 1978, p. 6).

[30] "Arrangement (táxis) means the organization of a speech into parts, though the order in which arguments are presented, whether the strongest first or toward a climax, is sometimes discussed." (Kennedy, G., The Art of Persuasion in Greece, New Jersey, Princeton University Press, 1963, p. 11).

[31] "O ornatus (Quintiliano, VIII, 3) foi, até parte do século XVIII, a grande aspiração de quem escreve. Beatriz envia Virgílio para ajudar Dante, por ser ele mestre da parola ornata (Inf., II, 76). De suas próprias canções diz Dante: La belleza è nell'ornamento delle parole (Conv. II, 11,4). Ainda ensinam os Éléments de littérature de Marmontel (1787), muito lidos em seu tempo: Le style de l'orateur et celui du poète a besoin d'être orné.' " (Curtius, E.R., Literatura Européia e Idade Média Latina, trad. Paulo Ronái e Teodoro Cabral, São Paulo, EDUSP/Hucitec, 1996, p.110).

[32] Platão também se refere ao espírito penetrante e forte necessário ao orador (Górgias, 463 a).

[33] "Herdeiro da tradição mais remota, Isócrates transpunha, para o plano literário, os conceitos fundamentais da educação homérica, a saber, o 'exemplo' (paradigma) e a 'imitação' (mímesis). Com isto, inaugura uma tradição que seria duradoura: com efeito, sabe-se quão longa fortuna teve esta noção clássica de imitação literária." (Marrou, H.I., História da Educação na Antiguidade, trad. Mário Leônidas Casanova, São Paulo, Ed. Herder/E.P.U., 1975, p. 138).

[34] "Em que medida pode ser levado em consideração, como inventor desta nova arte, o filósofo Empédocles, é algo que deixamos sem resolver; é certo que nesta época Córax de Siracusa, que já havia sido muito apreciado na corte de Hierón, era bastante considerado como orador popular e advogado ante os tribunais; dele procedia a mais antiga Técne rhetoriké, ou simplesmente Técne, que continha uma teoria da forma e da divisão dos discursos, indicações sobre proêmios, etc. Já nele, como em seu discípulo e rival Tísias, que igualmente compôs uma Técne, se realça a grande importância do 'verossímil."(Burckhardt, J, História de la Cultura Griega, Barcelona, Ed. Iberia, (5 vol.), vol. III, 1947, p. 436).