Roseli
Fischmann
Vivemos
dias terríveis. O acirramento sangrento do conflito no Oriente Médio
tem deixado a todos perplexos e com profundos sentimentos de impotência.
Quem se encontra longe, geograficamente, de cenário tão brutal tende
a analisar os fatos do frio ponto de vista do espectador. As perguntas
que podem ser levantadas a cada acontecimento são inúmeras, proporcionais
à complexidade da situação. Muitas vezes operam-se julgamentos dos
lados envolvidos, como se análises aleatórias dessem conta do drama.
Contudo, a análise fria denuncia a tranqüilidade de quem está distante:
nada a perder. Na Guerra do Golfo pudemos assistir à frieza dos
comentários da mídia que falava em ‘‘precisão cirúrgica’’ dos ataques,
transmissões famosas por se assemelharem a videogames, quando estavam
em jogo vidas humanas. Contudo, logo percebeu-se o erro, pois todos
têm a perder. No tabuleiro do destino mundial, são lances em que
se joga o próprio futuro da humanidade.
Sede da origem das três religiões que têm Abrahão por patriarca
— o judaísmo, o cristianismo e o islamismo —, ao mesmo tempo em
que ponte com o mundo oriental, todo conflito que eclode no Oriente
Médio repercute, porque é o coração da humanidade, em nossa era,
que ali está, onde cada dia é tenso, e a paz, fugidia a cada passo.
Como coração, o que ali se passa espalha-se para o planeta de forma
inevitável, como comprovam os atentados quase imediatamente ocorridos
em outros locais.
Desenvolvemos um trabalho há dez anos (www.hottopos.com/convenit2,
Breve Histórico do Instituto Plural),
cuja força reside na articulação de diferentes comunidades, praticando
diálogo e apoio mútuo, demonstrando que sempre que se percebe e
se pratica a pluralidade, e não a bipolaridade, é que se avança.
Em respeito aos muitos anos de fraterno e solidário trabalho, do
qual a paz no Oriente Médio foi ponto original, busquei ouvir a
opinião do professor Mohamed Habib, responsável pela Coordenadoria
de Relações Internacionais da Unicamp, ambientalista e pacifista
histórico, nascido no Egito e brasileiro há quase trinta anos. Desolado,
minutos antes de ir à mesquita, lembrava que o efetivo início do
processo de paz no Oriente Médio começara com os acordos de Camp
David, de 1978, com Menachem Begin, Jimmy Carter e Annuar Sadat,
brutalmente assassinado em 1981. Falava de sua decepção com os grandes
líderes mundiais, que levam vinte anos para alinhavar uma paz que
é ameaçada fatalmente em poucos dias — e a cuja ameaça não conseguem
reagir. Afirmava que, no momento em que ‘‘uma pessoa sente que não
poderá constituir família, pensar um futuro, que, enfim, para ela
a vida se iguala à morte, faz qualquer coisa; as pessoas precisam
sentir que a vida vale a pena’’. E que os líderes mundiais precisam
acordar para suas responsabilidades nesse processo.
É de fato importante que a opinião pública internacional esteja
atenta ao fato de que precisa respeitar os sentimentos dos povos
envolvidos no conflito, que nada ali é simples e o sofrimento, brutal.
Trata-se de processo onde a cooperação internacional tem a possibilidade
de serenar os ânimos e garantir condições a ambos para que possa
haver negociação direta entre Israel e a Autoridade Palestina, único
caminho.
O processo de paz iniciado com o Acordo de Oslo, em 1993, assinado
em Washington, tem sido construído com cautela das partes envolvidas,
cooperação de muitos países e líderes. Teve também suas vítimas
brutais, como Yitzhak Rabin. Poucos dias de intenso conflito parecem
ameaçar todo o esforço construído com base em compromissos e concessões
de ambas as partes, articulado em um processo gradual. Temerariamente,
a Autoridade Palestina liberta os que estavam presos por terrorismo.
O governo de Israel busca unir trabalhistas e a direita. O movimento
de reaglutinação indiferenciada de forças internas, em cada um dos
lados, sinaliza a disposição para o conflito, ou, antes, o medo
alavancador da violência, que elimina as divergências internas na
união contra o ‘‘inimigo comum’’.
A disposição para o conflito é mais antiga e mais conhecida do que
a prática de tolerância. Não é preciso esforço para ressurgir. Contudo,
a necessidade imprescindível da paz está na consciência de ambos.
Fazer com que a consciência se transforme em disposição renovada
para a construção da paz somente será possível se a ação internacional
se mobilizar sem mais demora, permitindo romper a bipolaridade.
As negociações são bilaterais, mas o poder de sustentação envolvido
há de ser multipolar, de Estados, sociedades e indivíduos, pelo
destino humano.
A terrível imagem vinda de Ramallah, de um homem palestino exibindo,
na janela, suas mãos banhadas no sangue dos jovens soldados israelenses
massacrados, para uma multidão enfurecida, talvez seja o melhor
símbolo do que nos espera, se nada fizermos em favor da paz. Antes
de ser israelense ou palestino, soldado ou civil, trata-se de seres
humanos com direito à vida, com direito a sonhar e a construir o
futuro.
Derramamento de sangue vem do ódio e o realimenta. Mas sangue é
sobretudo vida fluindo, é fazer planos e vislumbrar tempos com justiça
e liberdade para todos, bases da paz. Muito sangue já foi derramado.
Em vez de alimentar o conflito, que possa, em honra das muitas vítimas
do qual verteu, fertilizar o solo sagrado com serenidade e sabedoria,
onde é possível construir a paz.
Roseli Fischmann é professora de pós-graduação
na USP e na Universidade Presbiteriana Mackenzie, coordenadora do
Instituto Plural e membro do Júri Internacional do Prêmio Unesco
de Educação para a Paz
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