Resenha Crítica

sobre revistas da Mandruvá, recém-publicada na prestigiosa revista Signum - Revista da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais), São Paulo, No. 3, 2001, pp. 289-294.

 

Revista Internacional d’Humanitats, Barcelona/São Paulo, n. 3, 2000, 136 p.

Mirandum, Porto/São Paulo, a. IV, n. 10, jul./dez. 2000, 84 p.

Notandum, Porto/São Paulo, a. III, n. 6, jul./dez. 2000, 90 p.

 

Desde 1998, um conjunto de revistas acadêmicas tem sido publicado com a mesma finalidade: efetivar a parceria editorial entre a Universidade de São Paulo e universidades européias; publicar artigos e entrevistas de pesquisadores dedicados aos estudos clássicos, medievais e humanísticos em geral. Dentre as que interessam aos medievalistas, mais especificamente, estão a Revista Internacional d’Humanitats, Mirandum e Notandum.

As “Notas editoriais” dessas revistas pontuam brevemente, desde os primeiros números, as metas daquela iniciativa conjunta, quais sejam, abertura de temática, pontos de vista e opiniões e acessibilidade do leitor e/ou do internauta aos conteúdos publicados. Os artigos são disponibilizados na íntegra pela Internet (www.hottopos.com), o que permite a pesquisa mais ágil dos estudiosos contemporâneos.

O Departamento de Ciències de l’Antiguitat i de l’Edat Mitjana, da Universitat Autònoma de Barcelona, e o Departamento de Filosofia e Ciências da Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, criaram e lançaram o terceiro número da Revista Internacional d’Humanitats. Dos sete artigos sobre lingüística, pedagogia, história e filosofia, dois tratam da cultura medieval: “Shatranj: o xadrez árabe e a sua transmissão ao Ocidente medieval”, de Luiz Jean Lauand, e “Tres cuartos de siglo de monacato en el Reino de León: 1050-1125”, de Antonio Linage Conde. Naquele artigo, Lauand comenta sobre as lendas que explicam a origem do jogo árabe – já registradas pelo sábio Alfonso X, em seu Libro del acedrex –, e discute a disseminação do xadrez na Idade Média, inclusive a maneira alegórica com que os medievos o tomam para interpretar moral e existencialmente a vida. Para os enxadristas, sobretudo, interessa a exposição ilustrada de três “problemas” árabes (“Dilaram” ou a rainha; “mansuba ad-dulabiya” ou a roda; “exércitos em guerra”) e suas versões modernas. De fato, Lauand recolhe e desenvolve, no artigo, alguns temas constantes de seu livro O xadrez na Idade Média, de 1988. No artigo de Antonio Conde, apresenta-se uma exposição dos processos de construção e manutenção de mosteiros na região leonesa. Repovoamento, doação e militância religiosa, além da implantação da regra de São Bento na Península Ibérica, perfazem parcialmente a história do monacato do reino de Leão.

O décimo número da revista Mirandum é publicada pelo Gabinete de Filosofia Medieval, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e pelo Departamento de Filosofia e Ciências da Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Todavia, esta Instituição co-publicou outros números com outras instituições, como, por exemplo, a Albert-Ludwigs-Universität Freiburg e o Raimundus-Lullus-Institut, de Freiburg im Breisgau. Aquele número é dedicado, como o anterior, aos estudos medievais.

Três artigos, dos cinco que constam da revista, incluem-se nos estudos medievais. J. M. Costa Macedo, em “La philosophie du verum chez Anselme de Cantorbéry”, apresenta comentário sobre a obra de Anselmo de Cantuária, enfocando o conceito de verum em relação aos de rectitude (a realização do dever-ser [devoir-être] das coisas) e debendum, e observando a noção de Deus, tempo e eternidade a partir de obras como Monologion, De veritate e Prologion. Em “A Espanha medieval, fronteira da cristandade”, três objetivos permeiam o estudo de Fernando Domínguez Reboiras: desfazer a idéia simplificadora da historiografia centro-européia de uma “cristandade medieval unida e compacta, exemplo de harmonia e de estabilidade ideológica”; observar a imagem contraditória que se tem da Espanha, a de tolerância e de intolerância religiosa, e, por fim, apontar a especificidade da obra de Raimundo Lúlio no contexto hispânico medieval. Para tanto, o autor reavalia a imagem paradoxal de intolerância e fanatismo religioso e tolerância e convivência das três religiões da área mediterrânea (judaísmo, cristianismo e islamismo) na Espanha medieva, ambas divulgadas por aquela historiografia. O reexame de Domínguez Reboiras expõe uma Espanha inicialmente aberta a outras culturas e religiões, o que lhe valeu o preconceito europeu de heterodoxia. A tentativa de os espanhóis se inserirem na cristandade européia, ou seja, rejeitando a convivência com judeus e muçulmanos, provoca sua fama de intolerância, cujo grau máximo se dá nos famosos autos inquisitoriais. Esse contexto de preconceito e reajustamento cultural é trazido à tona pelo autor para orientar a maneira como deve ser considerada a obra de Raimundo Lúlio, “pensador na fronteira da cristandade à margem das instituições acadêmicas”, o que determinou sua posição no pensamento medieval cristão. O artigo “A filosofia no século XII (2): Em Portugal: os mosteiros e a cultura que vem da Europa”, de José Francisco Meirinhos, segunda parte de uma série de estudos de história da filosofia (a primeira parte consta do n. 9), trata do desenvolvimento da filosofia em território português, através dos mosteiros de Santa Cruz de Coimbra e de Alcobaça. Nesses centros fomentadores de cultura, se se observa a presença de títulos importantes, sobretudo os doados pelo Mestre Martins, por um lado, percebe-se, por outro, a falta de influência direta da nova literatura filosófica que se dissemina no restante da Europa: obras cosmológicas dos chartrenses, os comentários lógicos e dialéticos, as novas enciclopédias, as sumas etc. Francisco Meirinhos centra-se no estudo da formação, constituição e influência das livrarias dos mosteiros portugueses no século XII, o que lhe permite concluir que a contribuição dessas instituições para uma produção filosófica local só começará a se fazer sentir no século seguinte.

As instituições estrangeiras que, junto à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, publicaram a revista Notandum são mais diversificadas: além do Gabinete de Filosofia Medieval (n. 4, 5 e 6), e do Albert-Ludwigs-Universität Freiburg/Raimundus-Lullus-Institut (n. 3), há a participação do Centro de Estudios Universitarios, da Faculdad de Humanidades da Universidad San Pablo, Madrid (n. 1). O sexto número dessa revista também é dedicado aos estudos medievos: três, dos cincos artigos publicados. Luiz Jean Lauand desenvolve seu artigo “Tomás de Aquino e a metafísica das línguas bantu e tupi” a partir do cotejo entre alguns conceitos teológicos com a visão de mundo expressa nos provérbios bantu e na língua tupi, de que sobressai a idéia de Deus como verbo, comum às três culturas justapostas pelo autor. Curioso e erudito, o artigo estabelece pontes imprevisíveis entre a cultura ocidental e as tribos indígenas. Outro estudo curioso é o de Luís Miguel Duarte, “Dos licores aos hospitais: as sugestões da Regra de São Bento”. Trata-se de um rastreamento relativamente detalhado da criação de técnicas e modos novos de estar em sociedade, suscitada a partir do projeto monástico de Bento de Núrcia, expresso na Regra. A vida em grupo e as necessidades decorrentes de uma vivência afastada da cidade propiciaram a inventividade dos monges em áreas como a alimentação, a arquitetura e a engenharia civil, determinando mudanças na cultura medieval européia. Ruy Afonso da Costa Nunes apresenta uma das obras de relevo do monge cisterciense germânico, Otão de Freising, da primeira metade do século XII, no artigo “Reflexões sobre a Crônica ou a história das Duas Cidades”. Aspectos genológicos (traços de crônica e história), formação intelectual (Aristóteles e Boécio), estrutura do texto (oito capítulos dedicados à narração da história universal, de Adão aos fatos contemporâneos da primeira metade do século XII, sendo que o oitavo Livro trata do destino das Duas Cidades: a de Cristo e a do Diabo), fontes (Paulo Orósio, Eusébio de Cesaréia, Jerônimo, além da tradição oral e do testemunho pessoal dos eventos) e fatos históricos discutidos por Otão de Freising (o conflito entre o Sacerdócio e o Império) são apontados por Costa Nunes com vistas a dar ao leitor uma idéia panorâmica do livro e do pensamento histórico e teológico do monge germânico. As notas, aproveitadas de modo diferente, indicam as relações entre a Crônica e tópicos nela citados: Aristóteles e a lógica, a vida monástica, o Prestes João e os Guelfos e Guibelinos.

Ligadas pela mesma editora, Mandruvá, e pelo mesmo projeto gráfico – a que falta, aliás, critério e padronização, além de revisão mais rigorosa –, e acadêmico, essas revistas realizam um importante vínculo universitário internacional, efetivado sobretudo por sua marca “internética” de acesso integral aos textos, o que poucas academias, salvo melhor informação, têm proporcionado. Os artigos se pautam seja pela discussão de conceitos, seja pela divulgação de aspectos culturais clássicos, medievais e humanistas em geral. Essa abertura temática num amplo leque de períodos e áreas – o que poderia, inadvertidamente, levar à pulverização da linha editorial de uma revista –, acaba por propiciar à Revista Internacional d’Humanitats, à Mirandum e à Notandum um perfil enriquecedor, devido inclusive a sua proposta de rapidez e agilidade eletrônica. Impresso ou virtual, esse conjunto de revistas aprimora o processo contemporâneo de incrementação da pesquisa e de sua divulgação nos meios acadêmicos locais e internacionais.

           

Paulo Roberto Sodré
Universidade Federal do Espírito Santo