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Parâmetros Curriculares Nacionais
e
Autonomia da Escola

 

José Mário Pires Azanha
(Conselho Estadual de Educação de São Paulo
Faculdade de Educação da USP)

                                                                          

I. Os PCN e os Estados e Municípios

A parte introdutória do texto que apresenta os PCN, após algumas considerações sobre a suficiente expansão do ensino fundamental nos últimos anos, detém sua atenção na qualidade desse ensino, com suas altas taxas de evasão e repetência, para finalmente concluir que “o modelo educativo que vem orientando a maioria das práticas pedagógicas não atende mais as necessidades apresentadas pelo atual cenário sócio-político-econômico do país”. (1, 1)

Essa conclusão baseia-se, em parte, nas análises feitas no âmbito de um projeto de pesquisa que examinou, sob alguns aspectos, as “propostas curriculares para o ensino de 1o. grau elaboradas pelas Secretarias de Educação de 21 estados e do Distrito Federal nos últimos 10 anos e, na sua maioria, em vigência nos respectivos sistemas de ensino”. (2, 1)

Em face desse estudo e de outros, concluiu-se que “uma tarefa essencial na busca da melhoria da qualidade do ensino passa a ser a de elaborar parâmetros claros no campo curricular, capazes de orientar as ações educativas nas escolas”. (1, 3)

O quadro é o seguinte: a insuficiência e a fragmentação das ações educativas, no âmbito das Unidades Federadas, exigiriam esforços que garantissem a generalização “no país, das orientações mais atualizadas e condizentes com o avanço dos conhecimentos no mundo contemporâneo” (1, 4) como condição para que alcancemos “padrões de qualidade” no ensino fundamental.

Como se percebe, os PCN apresentam-se como uma nova reforma do ensino fundamental brasileiro com todas as suas amplas conseqüências na formação e no aperfeiçoamento dos professores, na revisão de livros didáticos etc. Em face da relevância social da iniciativa, convém que examinemos alguns dos argumentos adiantados como justificativa do que se pretende.

Ora, um desses argumentos, como já foi dito, parte do estudo comparativo das propostas curriculares estaduais e municipais elaboradas a partir do início da década de 80 e vigentes ainda. Essas propostas, nos termos dos PCN, compõem um quadro nacional confuso, fragmentado, com diferentes níveis de elaboração e de justificação que dificultaria uma política global de melhoria do ensino fundamental. Para justificar a necessidade de superação dessa situação, foi feita uma descrição das principais tendências pedagógicas que convivem no Brasil atual e que, resumidamente, transcrevemos em seguida:

“Fazendo uma redução necessária a este contexto, serão expostas as quatro grandes tendências pedagógicas: a tradicional, a renovada, a tecnicista e aquelas marcadas centralmente por preocupações sociais e políticas. (...)

Pedagogia Tradicional é uma proposta de educação centrada no professor, sendo função deste vigiar, aconselhar, corrigir e ensinar a matéria através de aulas expositivas, ficando a cargo dos alunos prestar atenção e realizar exercícios repetitivos para gravar e reproduzir a matéria dada.

“A metodologia decorrente baseia-se na exposição oral dos conteúdos, seguindo passos pré-determinados e fixos para todo e qualquer contexto escolar. (...) Na maioria das escolas esta prática pedagógica foi caracterizada por sobrecarga de informações passadas aos alunos, tornando o conhecimento pouco significativo e burocratizado.

“O professor tem papel central no processo de ensino e aprendizagem (...) um organizador dos conteúdos e estratégias de ensino e, portanto, o guia exclusivo do processo educativo. (...)

“A Pedagogia Renovada inclui várias correntes, que de uma forma ou de outra estão ligadas ao movimento da Escola Nova ou da Escola Ativa, que embora admitam divergências, assumem um mesmo princípio norteador de valorização do indivíduo como ser livre, ativo e social. O centro da atividade escolar não é o professor nem os conteúdos disciplinadores, mas sim o aluno ativo e curioso. O mais importante não é o ensino, mas o processo de aprendizagem. (...)

“O professor é o facilitador no processo de busca de conhecimento do aluno, organizando e coordenando as situações de aprendizagem. (...)

“Esta concepção trouxe a idéia de globalização e dos centros de interesses que foram inadequadamente transformados em práticas espontaneístas. (...) Essa tendência teve grande penetração no Brasil, na década de 30, para o ensino pré-escolar e até hoje influencia muitas práticas pedagógicas.

“Nos anos 70, proliferou o que se chamou de ‘tecnicismo educacional’, inspirado nas teorias behavioristas da aprendizagem e da abordagem sistêmica do ensino, definiu uma prática pedagógica altamente controlada e dirigida pelo professor com atividades mecânicas inseridas numa proposta educacional rígida e passível de ser totalmente programada em detalhes. (...) O que é valorizado nesta perspectiva, não é o professor mas sim a tecnologia, o professor passa a ser um mero especialista na aplicação de manuais e sua criatividade fica dentro dos limites possíveis e estreitos da técnica utilizada. (...) Esta orientação foi dada para as escolas pelos organismos oficiais durante os anos 60 e até hoje persiste em muitos cursos com a presença de manuais didáticos com caráter estritamente técnico e instrumental.

“No final dos anos 70 e início dos 80, constituíram-se as denominadas Pedagogia Libertadora e Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, ambas propondo uma educação crítica a serviço das transformações sociais, econômicas e políticas para a superação das desigualdades existentes no interior da sociedade.

“A Pedagogia Libertadora tem suas origens no movimento da educação popular, no final dos anos 50 e início dos anos 60, quando foi interrompida pelo golpe militar de 1964, e retoma o seu desenvolvimento no final dos anos 70 e início dos anos 80. Nesta proposta a atividade escolar pauta-se em discussões de temas sociais e políticos e em ações sobre a realidade social imediata; analisa-se os problemas, os fatores determinantes e estrutura-se uma forma de atuação para que se possa transformar a realidade social e política. O professor é um coordenador de atividades que organiza e atua conjuntamente com os alunos.

“A Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos surge no final dos anos 70 e início dos 80 e é uma reação de alguns educadores que não aceitam a pouca relevância que a pedagogia libertadora dá ao aprendizado do chamado ‘saber elaborado’, historicamente acumulado e que constitui o acervo cultural da humanidade. (...) Compreende que não basta ter como conteúdo escolar as questões sociais atuais, mas é necessário que se possa ter o domínio de conhecimentos, habilidades e capacidades para que os alunos possam interpretar suas experiências de vida e defender seus interesses de classe.” (1, 12-13)

Além dessa exposição das grandes tendências dos modelos vigentes na educação brasileira desde a década de 30, os PCN ainda fazem referência à presença, nos últimos anos, da Psicologia Genética, que marcou “a pesquisa sobre a psicogênese da língua escrita” a partir dos anos 80, observando que “a metodologia utilizada na pesquisa foi muitas vezes interpretada como uma proposta de pedagogia construtivista para a alfabetização, o que expressa um duplo equívoco: redução do construtivismo a uma teoria psicogenética de aquisição da língua escrita e transformação de uma pesquisa acadêmica em método de ensino.” (1, 14)

As considerações anteriores, pretensamente descritivas das principais tendências pedagógicas históricas na educação, justificariam a proposta dos PCN como uma superação de modelos que, pelas suas insuficiências e equívocos, não mais têm condição de orientar as práticas pedagógicas vigentes.

É claro que a proposição dos PCN pressupõe que não valeria a pena uma atuação corretiva e reorientadora das várias tentativas estaduais e municipais que há anos se esforçam para consolidar orientações pedagógicas de seus respectivos siste- mas. A opção foi a de substituí-las por “uma referência curricular para todo o país”.

O texto introdutório dos PCN reconhece o caráter redutivista de suas descrições das tendências prevalecentes nas orientações das práticas pedagógicas brasileiras, mas esse reconhecimento é meramente formal, pois o que se propõe é uma substituição radical do que existe por uma nova ordenação curricular.

Por isso, vale a pena adiantar alguns comentários sobre a análise das propostas curriculares oficiais:

1. O estudo prévio dessas propostas tomou como objeto de análise documentos oficiais e apontou, aqui e ali, a presença de justificativas e declarações de adesão a alguns princípios. O que se constatou foi a incipiência de algumas iniciativas, a insuficiência de outras, a presença de contradições, de descontinuidades administrativas etc. Nada existe no relatório a respeito de como essas propostas têm repercutido nas efetivas práticas escolares. É apenas uma visão genérica a respeito de orientações curriculares e programáticas. Utilizar essa visão genérica como uma radiografia do que ocorre nas escolas é ir muito além do que o estudo se propôs e o seu relatório permite. O estudo focalizou alguns documentos e identificou algumas idéias. Nada mais. Imaginar que essas idéias animam, de fato, as práticas a que visam pode ser enganoso do ponto de vista teórico e levar a apreciações equivocadas sobre a realidade. Muitas vezes, uma idéia, uma doutrina são inertes, isto é, não exercem nenhuma influência no plano da realidade. Conforme disse A. Lovejoy, “os grandes movimentos e tendências não são geralmente os objetos que, em último termo, interessam ao historiador das idéias, são apenas um ponto de partida.” (La gran cadena del ser, Barcelona, Icaria Editorial, 1983) É preciso, pois, ir além dos rótulos e dos “ismos”. Muitas vezes, sob um mesmo rótulo há, não apenas uma idéia ou uma doutrina, mas várias, combinadas de modos diferentes nos indivíduos ou grupos que identificamos como seus adeptos. Seria enganoso, pois, imaginar que a utilização de um rótulo de significação ambígua seja de fato uma descrição de um estado de coisas. É preciso lembrar ainda que expressões como “pedagogia tradicional”, “pedagogia renovada”, “pedagogia dos conteúdos” etc. são correntes nos meios acadêmicos, no ambiente de congressos e de seminários, mas de duvidoso valor descritivo com relação a instituições e práticas escolares. Aliás, é usual, nas academias brasileiras, que a pesquisa empírica da realidade educacional seja substituída pelos cacoetes do “abstracionismo pedagógico”. Expressões como “escola brasileira” ou “modelo educativo brasileiro” são exemplos de entidades lingüísticas semanticamente vazias, embora de amplo curso na retórica acadêmica ou política.

2. É indiscutível que o propósito dos PCN é, numa primeira etapa, a reforma do ensino fundamental brasileiro. Numa outra ocasião, já tive a oportunidade de dizer que “nas sucessivas reformas da educação brasileira, quando chegamos ao momento de uma nova reforma, invariavelmente, não se dispõe de estudos sobre a repercussão de reformas anteriores sobre a vida escolar. Quase sempre os estudos disponíveis são muito mais julgamentos ideológicos do que descrições confiáveis sobre as alterações da vida escolar provocadas pelos movimentos reformistas. No entanto, sabe-se que é no interior das salas de aula que se decide o destino de políticas e reformas educacionais. (...) A trajetória das reformas desde as decisões políticas que as instituem legalmente, passando pelas providências técnico-administrativas de vários níveis que a regulamentam, até as práticas escolares que deveriam implantá-las, é ainda um território não devassado pela pesquisa educacional”.

Nessas condições, com a adoção dos PCN, corre-se o risco de que novamente se faça uma reforma de uma realidade educacional da qual temos apenas uma visão em grande parte impressionista. É claro que, muitas vezes, uma reforma de aspectos da realidade educacional pode se justificar a partir de decisões políticas, mesmo na ausência de investigações empíricas extensas e exaustivas. Mas esse não é o caso dos PCN, nos quais são preconizadas alterações das próprias práticas escolares em todas as suas dimensões.

Aliás, o próprio estudo das propostas curriculares vigentes nos estados e em alguns municípios observou que

“O quadro que se esboça sobre esses produtos depende do olhar e das tintas que podem carregar o traçado das dificuldades, dos descaminhos e induzir a uma avaliação rígida e reducionista dos resultados obtidos ou podem evidenciar a multiplicidade e riqueza de soluções aventadas, e os avanços inegáveis na formulação teórica de uma ampla gama de questões afetas ao ensino básico, que nada ficam a dever em relação às referências internacionais disponíveis. Os sistemas estaduais avançam no ritmo de suas possibilidades e no esforço para identificar e superar suas contradições. (...)

“A trajetória da construção social das propostas curriculares deve ser reconhecida como uma conquista dos educadores, um movimento inédito que necessita ser valorizado na exata perspectiva das possibilidades postas pela realidade.” (2, 139)

Ora, essas ponderações não podem ser interpretadas como justificadoras de uma proposta curricular nacional que substitua aquelas em vigência nos estados e municípios. Pelo contrário. Se alguma recomendação pode ser extraída dessas conclusões é a de que estados e municípios deveriam ser orientados e assistidos técnica e financeiramente, para correção de suas falhas e insuficiências. Aliás, é o que determina o Art. 211 da atual Constituição Brasileira.

II. Os PCN e a concepção construtivista

Os autores do texto introdutório dos PCN assumiram um claro compromisso com a concepção construtivista de aprendizagem e ensino, mas o caráter sintético da exposição dificulta, algumas vezes, a percepção de importantes implicações desse comprometimento. A preocupação de elaborar um texto destinado a amplas discussões pelo magistério acabou conduzindo a afirmações simplificadas cujo significado é de difícil apreensão, principalmente para o não especialista, como é o meu caso e certamente o de muitas outras pessoas.

Por isso, as questões que proponho não devem ser recebidas como objeções, mas como indicação de dificuldades de entendimento.

1. Será que teorias psicológicas sobre aprendizagem e ensino devem constituir a matriz para a elaboração das diretrizes de um projeto curricular nacional?

Parece-me que o texto dos PCN não deixa dúvidas a esse respeito, embora aqui e ali haja referências sem maior importância a cultura, função social da escola, relações interpessoais etc. No entanto, não me parece evidente que deva haver uma prioridade da Psicologia nesse assunto, embora seja trivial que a ministração do ensino sempre pressupõe algumas idéias sobre aprendizagem e ensino e que muitas dessas idéias são insuficientes ou até mesmo equivocadas. Portanto, o que se discute não é a importância da Psicologia no esclarecimento de algumas questões de ensino, mas a sua prioridade em matéria das diretrizes curriculares nacionais. Será que para discussão desse assunto não deveria haver uma convocação de especialistas em outras áreas da cultura e da vida social como a Sociologia, a História, a Antropologia, o Direito, a Religião, a Arte etc.? É possível que os autores dos PCN respondam que todas os demais saberes sociais e culturais foram levados em conta no estabelecimento dos conteúdos curriculares. Isso é verdade, mas é apenas meia verdade. A tônica dos PCN é psicologizante num assunto que nem mesmo pode ser reduzido a uma questão científica, qualquer que seja a área de abrangência da ciência da qual se parte. Na verdade, as diretrizes nacionais de um currículo para o ensino fundamental somente podem ter como matriz a cultura no seu significado mais amplo. Os saberes a serem convocados para a indicação dessas diretrizes incluirão obrigatoriamente todos os aspectos culturais da nação relevantes para a compreensão do povo brasileiro na multiplicidade de suas práticas políticas, de suas crenças, tradições, manifestações artísticas, religiosas, literárias e outras.

Não se trata apenas de substituir a Psicologia pelo conjunto das demais ciências sociais e humanas. O problema das diretrizes nacionais de um currículo de ensino fundamental não é uma questão estritamente científica, mas sobretudo de acuidade cultural para os valores relevantes na formação da cidadania brasileira. Somente um trabalho dessa natureza e amplitude poderia dar base para o envolvimento do magistério e a formulação de políticas de formação e de aperfeiçoamento do professor.

Teorias sobre como os alunos aprendem e sobre como se deve ensinar podem até ser importantes em momentos específicos, mas seria um equívoco tomá-las como ponto de partida para propor soluções sobre a questão das diretrizes curriculares nacionais. Fazer isso é optar por uma visão tecnocrática da questão do ensino fundamental e da formação de professores. Diretrizes curriculares são matéria de adesão a valores e não a teorias científicas.

Embora essa opção tecnicista não esteja claramente explicitada no texto dos PCN, está muito clara numa passagem de um trabalho de César Coll, um dos principais assessores da iniciativa ministerial. Diz ele:

“Seria um erro, entretanto, pensar que as respostas sobre o que ensinar e quando ensinar determinam unidirecionalmente a resposta sobre como ensinar. A influência se exerce também em sentido oposto, pois a resposta às duas primeiras perguntas depende em parte de como foi entendido o processo de aprendizagem. (...) Assim o que ensinar, quando ensinar e como ensinar são três aspectos do currículo intimamente interrelacionados; por isso, é absurdo considerá-los de forma totalmente independentes. (...) Com efeito, a concepção construtivista da aprendizagem escolar e da intervenção pedagógica, que abrange uma série de opções básicas sobre como ensinar, foi o ponto de partida e o referencial contínuo para as decisões que fomos adotando, a fim de delinear um modelo de Projeto Curricular.

(...) Reiteramos que as opções básicas sobre como ensinar presidem e impregnam a totalidade do currículo” (Psicologia e Currículo, São Paulo, Ática, 1996) [grifos nossos].

Não temos a intenção de fazer um escrutínio do pensamento de C. Coll. Recorremos a essas passagens porque elas lançam luz sobre a visão de currículo dos PCN. É o que nos parece.

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Mesmo que não se coloque em dúvida a questão da prioridade da Psicologia ou da Psicopedagogia, ainda haveria a questão da preferência por uma particular teoria. É compreensível que as opções teóricas sejam assumidas de maneira persistente por cientistas individuais, mas a própria ciência como um empreendimento cultural coletivo necessita das divergências e das visões antagônicas, isto é, do pluralismo teórico. Isso nos leva a uma outra indagação.

2. Por que devemos preferir a concepção construtivista de aprendizagem e ensino a outras?

Os estudos de história da ciência nas últimas décadas e o próprio desenvolvimento da ciência desde o final do século XIX têm mostrado que a idéia da ciência como um conhecimento estável e seguro não tem fundamento histórico nem lógico. A pretensão neo-positivista de que somente poderíamos considerar como científicos aqueles conhecimentos que estivessem verificados ou que fossem em princípio verificáveis perdeu a sua credibilidade desde as críticas de Popper, Toulmin, Kuhn, Feyerabend, Hanson e de muitos outros. Enfim, o que não mais se admite por razões históricas e lógicas é a existência de teorias que possam ser consideradas como a “explicação definitiva” dos fatos disponíveis. Sabe-se, hoje, que os próprios “fatos” não são entidades independentes do observador, isto é, da teoria a partir da qual o mundo é percebido e descrito.

Nesse quadro, ter uma teoria é, num sentido amplo, dispor de um particular conjunto articulado de enunciados e de conceitos que seja capaz de explicar fatos que, de outro modo, seriam estranhos e surpreendentes. É claro que a ciência busca criar teorias verdadeiras, mas apenas consegue confirmar parcialmente as teorias de que dispõe, o que enseja muitas vezes a convivência de teorias alternativas sobre o mesmo conjunto de fenômenos, todas elas parcialmente confirmadas. Por isso, só a pluralidade teórica e a crítica mútua que ela favorece permitem o desenvolvimento do saber científico.

A pretensão de ter encontrado a teoria verdadeira é uma pretensão de infalibilidade sem sustentação histórica nem lógica. De fato, quem se arroga como infalível retira-se do jogo da ciência porque neste, como disse Popper, não há teorias imunes à crítica.

Feita essa breve digressão preliminar, retornemos à pergunta inicial. O texto introdutório dos PCN, apesar de em muitas passagens fazer referência à necessidade de discussões e ao caráter não impositivo da proposta curricular, de fato não oferece concepções alternativas para discussão, e até as deprecia, mas expõe e privilegia uma concepção. Na parte intitulada “Fundamentos psicopedagógicos”, há a clara e sumária adesão a uma concepção de aprendizagem e de ensino, a uma concepção de conhecimento, e o seu encaminhamento de uma maneira impositiva, como por exemplo, nos seguintes casos:

“Hoje sabemos que é necessário tocar o ponto chave de todo o processo educativo tanto no ensino quanto na aprendizagem, uma vez que, em última instância, sem aprendizagem não há ensino. A tarefa consiste então em re-significar a unidade entre aprendizagem e ensino. (...) O conceito de conhecimento para o qual convergem as teorias contemporâneas aproxima-se cada vez mais da idéia de que conhecer é construir significados. (...) Hoje, graças ao avanço significativo da investigação científica na área da aprendizagem tornou-se possível interpretar o erro como algo inerente ao processo de aprendizagem. (...) O processo de ensino e aprendizagem constitui-se em uma unidade indissolúvel.” (1, 9-11)

Como se pode perceber, o tom dessas afirmações não é o de quem faz uma proposta a ser discutida, mas o de quem comunica verdades. O sentimento de posse da verdade não favorece o diálogo e a discussão.

Não se trata, evidentemente, de preconizar um relativismo inconseqüente, segundo o qual todas opiniões e posições têm o mesmo valor. Há inúmeros trabalhos que demonstram o caráter autocontraditório de todo relativismo radical. Trata-se apenas de reivindicar a importância de um pluralismo crítico capaz de diferentes encaminhamentos das questões de ensino e aprendizagem cuja complexidade não recomenda senão prudência.

III. Os PCN e a legislação

O Art. 210 da atual Constituição Federal estabelece, no seu caput, que “Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”.

Este seria o fundamento constitucional para a iniciativa do MEC na proposição dos Parâmetros Curriculares Nacionais. O próprio artigo não estabelece qual a esfera do Poder Público que deveria fixar esses conteúdos mínimos para o ensino fundamental, embora esteja implícito que uma tal tarefa somente poderia ser desempenhada pelo Poder Público Federal e, nessa esfera, desde a lei 4.024/61, o assunto foi da competência do Conselho Federal de Educação. Com a extinção desse órgão e sua substituição pelo Conselho Nacional de Educação (Lei 9.131/95), houve uma alteração nessa tradição.

Nessa nova lei, uma modificação feita no Art. 9o, § 1o, letra “C”, da Lei 4.024/61, estabelece que a Câmara de Ensino Básico terá dentre suas atribuições a de “deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação e do Desporto”. Em rigor, não se pode dizer que o tratamento legal da matéria tenha sido em uma direção descentralizadora, pois a expressão constitucional “conteúdos mínimos” transformou-se, na lei, em “diretrizes curriculares” que, evidentemente, é muito mais ampla no seu significado, e retirou-se a competência de proposição do órgão normativo, como era da tradição.

No entanto, a respeito do amparo legal para a iniciativa ministerial dos PCN, há um aspecto mais interessante. Trata-se do fato de que não houve no texto dos PCN referência ao Art. 206 da Constituição, que fixa os princípios segundo os quais o ensino será ministrado. O inciso III desse artigo diz que o ensino deverá atender ao “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas”. Retornamos assim à idéia da necessidade de pluralismo.

Esse retorno não é casual. O convívio com a divergência é um valor comum aos ideais da ciência e aos ideais da democracia. No caso da ciência, a possibilidade de florescimento de divergências visa impedir que sentimentos subjetivos de certeza favoreçam a repressão a idéias novas e eventualmente anômalas no quadro dos paradigmas prevalecentes. No caso da democracia, a possibilidade de florescimento de divergências visa impedir que minorias sejam suprimidas pela hegemonia das forças políticas vencedoras. Em ambos os casos, o pressuposto é o de que a unanimidade de opiniões e o consenso político não são garantia, em quaisquer condições, de alcance da verdade e de defesa do interesse público.

A competência privativa da União para fixar as diretrizes e bases da educação nacional não inclui a possibilidade de erigir em norma nacional a adesão a uma particular concepção pedagógica que deverá sempre ser opção de escolas ou de professores para que possa ser, finalmente, opção das famílias.

Nessas condições, sem atentar para a exigência constitucional de pluralismo, corre-se sempre o risco de que a proposta dos PCN possa, na prática, nos seus vários desdobramentos até a sala de aula, chegar aos professores como imposição e não como algo a ser discutido e eventualmente modificado ou substituído.

IV. Conclusões

1. Embora o texto dos PCN refira-se a uma “integração com a experiência educacional já realizada pelos Estados e Municípios” e à possibilidade de adaptações pelas Secretarias de Educação, é claro que a própria iniciativa ministerial implica a expectativa de uma profunda alteração da situação atual, com a adoção de novas diretrizes e de uma nova ordenação curricular a partir das posições e sugestões preparadas. Ora, na atual Constituição Federal, é dos Estados e Municípios a competência de organização de seus próprios sistemas de ensino, respeitadas as diretrizes e bases da educação nacional. O Art. 210 da Constituição refere-se apenas a “conteúdos mínimos” para o ensino fundamental, mas a lei no 9.131, que criou o Conselho Nacional de Educação, ampliou a expressão constitucional para “diretrizes curriculares” a serem propostas pelo MEC. Nessa alteração, que aumenta o poder central, há uma evidente diminuição do grau de autonomia de Estados e Municípios. Essa diminuição de autonomia foi agravada pela iniciativa ministerial elaborando diretrizes curriculares declaradamente comprometidas com uma particular concepção pedagógica, desrespeitando assim o princípio do “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas”, fixado no Art. 206 da atual Constituição.

Esse fato é ainda mais grave porque, além de ilegal, representa um desrespeito aos ideais da democracia e da ciência, que se fundam no direito de florescimento das divergências, único caminho para o aperfeiçoamento do convívio político e do desenvolvimento do saber.

2. Práticas pedagógicas são instituições complexas que não podem ser reduzidas à aplicação de uma teoria da aprendizagem e do ensino. Há professores que ensinam com pleno êxito e há professores que ensinam com êxito menor ou até mesmo quase nulo. Quais são os fatores presentes em cada situação de ensino e que condicionam o êxito? É claro que não há respostas simples para essa questão. Presumir que o grau de êxito depende de uma correta ou incorreta teoria do ensino e da aprendizagem é, no mínimo, uma simplificação do problema. Além daqueles fatores específicos de cada sala de aula e de cada professor, há o complexo ambiente social de cada escola. Por ignorar essa complexidade, as políticas de aperfeiçoamento de docente não têm alterado substantivamente a situação do ensino brasileiro.

Ensinar com êxito é ter o domínio de uma prática, de um saber fazer. Qualquer teoria do ensino, inclua-se aí portanto a teoria construtivista, é um esforço prescritivo, isto é, uma tentativa de elaborar regras para a prática de ensinar. Ora, nem todas as práticas são exaustivamente reguláveis. Saber fazer poesia ou saber contar piadas com graça são, da mesma forma que saber ensinar, o domínio de uma prática não inteiramente regulável. Trata-se das complexas relações entre teoria e prática.

São essas condições que nos levam a pensar que pode ser uma temeridade, de efeitos até desastrosos, fazer uma tentativa de induzir centenas de milhares de professores a alterar suas práticas a partir de uma teoria do ensino e da aprendizagem que presumimos verdadeira. Há ainda o seguinte agravante: a ampla difusão dessa teoria, que é muito complexa, poderá transformar-se numa difusão de slogans e expressões metafóricas que, por si mesmas, são incapazes de ser operativas na situação de sala de aula. O desastre será se conseguirmos apenas criar insegurança nos professores com relação às próprias práticas a partir de um patrulhamento pretensamente fundado em verdades definitivas. Nesse sentido, as diretrizes dos PCN poderão ser, eventualmente, um desserviço à autonomia profissional de cada docente e à autonomia pedagógica de cada escola.