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O Sujeito Passivo da Contribuição
 Social do Salário Educação -

u
ma interpretação do art. 212, § 5º,
 da Constituição da República

 

Sérgio Chermont
LL. M. Class of 1955

 

Muito já se debateu, quase mesmo de forma exaustiva, tanto na doutrina como na jurisprudência, acerca da denominada Contribuição Social do Salário-Educação. O tema, invariavelmente, foi a inconstitucionalidade formal dos diversos diplomas legais que ao longo do tempo regularam a cobrança da referida exação, seja em face da pretérita como da atual Constituição da República. Todavia, parte da questão restou pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, que ao ensejo do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 3, declarou a constitucionalidade do art. 15, da Lei nº 9.424/96 [1] , que dispôs sobre a Contribuição Social em exame.

Movidos por uma inconstitucionalidade que macula sobremaneira a exigência da Contribuição Social do Salário-Educação com relação a certos contribuintes, ao nosso ver evidente mas que de certo modo tem passado despercebida da comunidade jurídica, resolvemos abordar, correndo o risco de parecermos repetitivos, o referido tributo neste pequeno estudo.

Para tanto, sempre com o inestimável auxílio da melhor doutrina, analisaremos primeiro as disposições constitucionais pertinentes e, depois, os dispositivos infraconstitucionais aplicáveis, para ao fim, expormos nossas conclusões.

1. A contribuição social do salário-educação e a Constituição da República de 1988

Dispõe o § 5º do artigo 212, da Constituição Federal, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº 14/96, que "o ensino fundamental público terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-educação, recolhida, pelas empresas, na forma da lei". Esta nova redação não difere muito da original, que estabelecia somente a possibilidadede as empresas deduzirem do valor a recolher "a aplicação realizada no ensino fundamental de seus empregados e dependentes".

Fato é que desde a promulgação da Carta de 1988, a natureza jurídica de tributo da contribuição do salário-educação é inequívoca, sendo este o entendimento manifestado pela melhor doutrina e jurisprudência, inexistindo controvérsia a respeito. Portanto, inserindo-se dita exação no Sistema Tributário Nacional disciplinado pela Constituição da República, para que se possa determinar com exatidão o propósito do constituinte originário ao estabelecer que o salário-educação seria recolhido "pelas empresas", necessário se faz transcrever o disposto no caput e inciso I, do art. 195, da Carta de 1988, in verbis:

"Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:"

Confrontando-se o disposto no inciso I, do art. 195 com o teor do § 5º, do artigo 212, ambos da Carta de 1988, vê-se claramente que o constituinte teve a nítida e firme intenção de atribuir só e tão-somente às empresas - e não, dê-se o devido destaque, a qualquer empregador ou também às demais entidades a elas equiparadas por lei- a obrigação de pagar a contribuição do salário-educação. A vontade do constituinte foi claríssima, pois que quando desejou atribuir sujeição passiva genérica assim o fez expressamente, não sendo lícito presumir que também tenha querido quando não manifestada de forma expressa tal intenção.

Tal questão há de ser analisada a luz dos denominados Princípios da Interpretação Sistemática e da Unidade da Constituição, o qual, segundo Luis Roberto Barroso [2] , "é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas". Quanto à importância do primeiro dos princípios suso mencionados à atividade do intérprete, colhe-se a seguinte lição do ilustre jurista [3] :

"Uma norma constitucional, vista isoladamente, pode fazer pouco sentido ou mesmo estar em contradição com outra. Não é possível compreender integralmente alguma coisa - seja um texto legal, uma história ou uma composição - sem entender suas partes, assim como não é possível entender as partes de alguma coisa sem a compreensão do todo. A visão estrutural, a perspectiva de todo o sistema, é vital."

No mesmo sentido é a lição do saudoso Carlos Maximiliano, que em sua clássica obra Hermenêutica e Aplicação do Direito [4] , a respeito do método sistemático de interpretação das leis, ensinava:

"Consiste o Processo Sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto.

Por umas normas se conhece o espírito de outras. Procura-se conciliar as palavras antecedentes com as conseqüentes, e do exame das regras em conjunto deduzir o sentido de cada uma.

Em toda ciência, o resultado do exame de um só fenômeno adquire presunção de certeza quando confirmado, contrasteado pelo estudo de outros, pelo menos dos casos próximos, conexos: (...)

Possui todo corpo órgãos diversos; porém a autonomia das funções não importa em separação; operam-se, coordenados os movimentos, e é difícil, por isso mesmo, compreender bem um elemento sem conhecer os outros, sem os comparar, verificar a recíproca interdependência, por mais que a primeira vista pareça imperceptível. (...)

O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma em seu lugar próprio."

Ainda a propósito, ensina Luis Roberto Barroso [5] que

"O direito não tolera antinomias. Para impedir que tal ocorra, a ciência jurídica socorre-se de variados critérios, como é o hierárquico e o da especialização, além de regras que solucionam os conflitos de leis no tempo e no espaço. Contudo, à exceção eventual do critério da especialização, esse instrumental não é capaz de solucionar conflitos que venham a existir no âmbito de um documento único e superior, como é a Constituição. Mais que isso: do ponto de vista lógico, as normas constitucionais, frutos de uma vontade unitária e geradas simultaneamente, não podem jamais estar em conflito. Portanto, ao intérprete da Constituição só resta buscar a conciliação possível entre proposições aparentemente antagônicas, cuidando, todavia, de jamais anular integralmente uma em favor da outra."

Ora, se as normas constitucionais lógica e naturalmente não podem estar em conflito, nem tampouco podem anular as disposições daquelas outras que aparentemente lhe antagonizam - mas em essência lhe complementam, tornando possível extrair-lhes o verdadeiro significado -, é evidente e mesmo intuitivo que há de se levar em conta a distinção feita pelo constituinte no inciso I, do art. 195, ao interpretar-se o § 5º, do art. 212, quando então alcançar-se-á a única conclusão possível, qual seja: somente as empresas, e não qualquer empregador, podem ser sujeito passivo da obrigação de pagar a contribuição do salário educação.

Entender-se o oposto é o mesmo que admitir que o constituinte tenha se utilizado de palavras supérfluas, o que não é aceitável:

"O intérprete da Constituição deve partir da premissa de que todas as palavras do Texto Constitucional têm função e um sentido próprios. Não há palavras supérfluas na Constituição, nem se deve partir do pressuposto de que o constituinte incorreu em contradição ou obrou com má técnica. Idealmente, ademais, deve o constituinte, na medida do possível, empregar as palavras no mesmo sentido sempre que tenha de repeti-las em mais de uma passagem." [6]

Idêntica a posição do Ministro Marco Aurélio, como se lê do seguinte trecho do voto que proferiu por ocasião do julgamento do RE 148.304-MG [7] , in verbis:

"O conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força dos estudos acadêmicos, que, no caso do Direito, pela atuação dos pretórios."

De conseguinte, fixada a premissa básica que o intento do constituinte foi o de cometer somente às empresas a obrigação de pagar o Salário-Educação, convém recordar pertinente lição do saudosoGeraldo Ataliba [8] a esse respeito, no que se refere especificamente à sujeição passiva tributária:

"Em todos os casos, no Brasil, só pode ser onerado o destinatário constitucional tributário, porque esse juízo político-financeiro foi exaurido pelo constituinte."

Mais adiante [9] , valendo-se de lição de Cleber Giardino, conclui:

"Em princípio, só pode ser posta, pelo legislador, como sujeito das relações obrigacionais tributárias, a pessoa que - explícita ou implicitamente - é referida pelo texto constitucional como destinatário da carga tributária".

2. A legislação infraconstitucional e o Salário-Educação:

Ocorre, entretanto, que a legislação ordinária que ao longo do tempo regulou a cobrança da Contribuição Social para o Salário-Educação, jamais obedeceu aos estreitos limites fixados pelo constituinte. Veja-se o que dispunha o § 5º, do artigo 1º, do revogado decreto-lei nº 1.422, de 23 de outubro de 1975, cujo teor era o seguinte:

"Art. 1º. Omissis. (...)

§ 5º - Entende-se por empresa para os fins deste decreto-lei, o empregador como tal definido na Consolidação das Leis do Trabalho, e no artigo 4º da Lei 3.807, de 26 de agosto de 1960, com a redação dada pelo art. 1º da Lei nº 5.890, de 8 de junho de 1973, bem como as empresas e demais entidades públicas e privadas, vinculadas à previdência social, ressalvadas as exceções previstas na legislação específica e excluídos os órgãos da administração direta."

Para que se possa dimensionar com exatidão o alcance do dispositivo legal acima transcrito, necessário se faz transcrever os comandos legais nele mencionados, que dispõem:

Consolidação das Leis do Trabalho:

"Art. 2º. Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

§ 1º. Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados."

Lei 3.807/60, com a nova redação dada pela Lei 5.890/73:

"Art. 4º. Para os efeitos desta lei, considera-se:

a) empresa - o empregador, como tal definido na CLT, bem como as repartições públicas autárquicas e quaisquer outras entidades públicas ou serviços administrados, incorporados ou concedidos pelo Poder Público, em relação aos respectivos servidores no regime desta lei."

O referido Decreto-lei foi revogado pela Lei nº 9.424/96, que em seu artigo 15 dispôs:

"Art. 15. O salário-educação, previsto no artigo 212, § 5º, da Constituição Federal e devido pelas empresas, na forma em que vier a ser disposto em regulamento, é calculado com base na alíquota de 2,5% (dois e meio por cento) sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, a qualquer título, aos segurados empregados, assim definidos no art. 12, inciso I, da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991."

Tal norma veio de ser posteriormente complementada pela Medida Provisória nº 1.565, sucessivamente reeditada e depois substituída pela de nº 1.607, também reeditada inúmeras vezes antes de ser convertida na Lei nº 9.766/98, que no § 3º, de seu art. 1º, determina:

"Art. 1º. Omissis.

§ 3º. Entende-se por empresa, para os fins de incidência da contribuição social do salário-educação, qualquer firma individual ou sociedade que assume o risco da atividade econômica, urbana ou rural, com fins lucrativos, bem como as empresas e demais entidades públicas ou privadas, vinculadas à seguridade social."

Como se pôde perceber do itinerário até aqui traçado, o que fez o legislador federal ordinário foi atribuir a todo e qualquer empregador (no que pareceu estar regulando a cobrança de contribuições previdenciárias, de acordo com a sujeição passiva genérica estabelecida no inciso I, do art. 195, da Constituição da República) o dever de pagar o salário-educação, com relação ao qual, todavia, o constituinte originário atribuiu à União Federal competência para tão-somente cobrá-lo das empresas, pelo que em assim fazendo contrariou frontalmente a Carta de 1988. Evidente, portanto, a não recepção pela Constituição de 1988 da parte do § 5º, do art. 1º, do Decreto-lei 1.422/75, que estendeu a todo e qualquer empregador, assim entendido em sua acepção mais ampla, a obrigação de pagar a exação em exame, bem como a manifesta a inconstitucionalidade do § 3º, do art. 1º da Lei 9.766/98 (que resultou da conversão das MP's 1.607 e 1.565), que possui disposição de teor semelhante, se não idêntico.

Não obstante, além desta flagrante inconstitucionalidade, padecem também os diplomas legais que sucessivamente regularam a matéria, pelo menos após o advento da CF de 1988, de uma cristalina ilegalidade, por desatenderem ao disposto no artigo 110 do Código Tributário Nacional, que dispõe:

"Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Cons-tituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias."

É que, como já asseverado, a Constituição atribuiu à União Federal competência para cobrar a contribuição social em exame somente das empresas, sendo manifestamente ilegais, por violarem o disposto no art. 110, do CTN, os dispositivos que alargaram o conceito de empresa para, no afã de aumentar as receitas federais, pretender cobrar dita exação de todo e qualquer empregador, assim entendido, como já explicitado, em sua mais ampla acepção. Veja-se, a propósito, a seguinte lição de Luiz Emygdio F. da Rosa Júnior [10] , de inteira aplicabilidade à hipótese dos autos:

"Aliomar Baleeiro, comentando o art. 110 do CTN, leciona que o legislador não poderá, por exemplo, definir coisa móvel, como navio, como bem imóvel, para sobre a alienação fazer incidir o imposto de transmissãointer-vivos. Isso porque a Constituição, quando se refere aos atos de transmissão de bens imóveis, fixa rígidos limites e tais atos são os assim considerados pelo Direito Privado. Assim, o art. 156, II, da CF, define a competência dos Municípios para instituir imposto sobre transmissãointer-vivos, a qualquer título, por ato oneroso de bens imóveis, e refere-se a esse instituto tal qual ele é conceituado no Direito Privado. Da mesma forma, a CF refere-se à mercadoria para determinar a competência tributária dos Estados e Distrito Federal no que toca ao ICMS (art. 155, II), está adotando o conceito de mercadoria segundo o Direito Comercial."

Com efeito, ao determinar que o sujeito passivo da obrigação tributária são as empresas, com muita técnica laborou o constituinte de 1988, pois que se valeu de conceito moderno e amplo, mas não absoluto, que fez permitir a cobrança do salário-educação de uma muito maior gama de obrigados, comparativamente à previsão existente na Carta anterior. O conceito de empresa, que nos permitirá determinar, com precisão, os destinatários da norma do § 5º, do art. 212, da Lei Superior, é definido pelo Direito Comercial, ou, como prefere a doutrina moderna, Direito Empresarial, que assim considera "a estrutura fundada na organização dos fatores de produção (natureza, capital e trabalho) para a criação ou circulação de bens ou serviços" [11] . A boa técnica com que obrou o constituinte é elogiável, pois que diversamente do que ocorria antes, agora podem ser sujeito passivo tanto as sociedades comerciais como as civis, ambas inclusas no conceito de empresa. Tal conceito, formulado pela economia, é atualmente de larga aceitação dentre os estudiosos do tema, pátrios ou estrangeiros, que entendem que o mesmo foi juridicizado. Este é o entendimento de Rubens Requião [12] , Waldírio Bulgarelli [13] , dentre muitos outros.

3. Conclusões

Tem-se, pois, diante do disposto no art. 212, § 5º combinado com o art. 195, I, ambos da Constituição Federal, que a Contribuição Social do Salário-Educação somente das empresas, assim entendidas as estruturas fundadas na organização dos fatores de produção (natureza, capital e trabalho) para a criação ou circulação de bens ou serviços, e não de qualquer empregador, pode ser exigida.

Inconstitucionais, assim, os diplomas legais que ao longo do tempo regularam sua exigência, de vez que, ultrapassando os lindes fixados na Constituição, atribuíram a qualquer empregador e não só às empresas a condição de sujeito passivo da referida obrigação tributária. Não obstante, pelo mesmo motivo, não prevalecem tais diplomas legais em face do art. 110, do Código Tributário Nacional, que impossibilita altere a lei tributária "a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal ... para definir ou limitar competências tributárias"



[1] O art. 15, da Lei nº 9.424/96, é do seguinte teor: "O Salário-Educação previsto no art. 212, § 5º, da Constituição Federal é devido pelas empresas, na forma em que vier a ser disposto em regulamento, é calculado com base na alíquota de 2,5% (dois e meio por cento) sobre o total das remunerações pagas ou creditadas a qualquer título, aos segurados empregados, assim definidos no art. 12, inciso I, da Lei nº 8.212/91!".

[2] In, Interpretação e Aplicação da Constituição, 3ª ed., Saraiva, p. 188

[3] In, op. cit., p. 134.

[4] 9ª ed., Forense, p. 130.

[5] In, op. cit., págs. 189-190

[6] Barroso, Luis Roberto. Op. cit., p. 130

[7] Ac. Unân. da 2ª Turma do STF, DJ 12.5.95, p. 12.993.

[8] In, Hipótese de Incidência Tributária, 6ª ed., Malheiros, p. 86.

[9] In, op. cit., p. 87

[10] In, Manual de Direito Financeiro e Tributário, 10ª ed., Renovar, págs. 425 e 426.

[11] In, Tavares Borba, José Edwaldo; Direito Societário, 5ª ed., Renovar, p. 7.

[12] In, Aspectos Modernos de Direito Comercial, 2º Vol., Saraiva, 1980, p. 18 e segs.

[13] In, Estudos e Pareceres de Direito Empresarial, RT, 1980, p. 17.