De Psicologismos, Pedagogismos e Educação
(Conferência proferida na 21a.reunião anual da Anped, setembro de 1997.

 

José Sérgio Fonseca de Carvalho
(Faculdade de Educação da USP -
jsfcusp@usp.br

 

Gostaria de começar esta reflexão sobre algumas questões ligadas às idéias e às práticas educacionais e escolares pela apresentação de um fenômeno que nos causa um certo estranhamento ou mesmo uma perplexidade. Possivelmente nunca na história da educação escolar falou-se, escreveu-se e pesquisou-se tanto sobre problemas da educação e da escolaridade como hoje. O mesmo poderíamos dizer a respeito da organização de congressos, cursos, encontros a respeito do tema, promovidos por instituições públicas ou privadas, ainda que freqüentemente reclamemos por mais informações, pesquisas ou discussões.

Por outro lado, parece ter crescido quase que na mesma intensidade nossa insatisfação a respeito dos resultados obtidos em nosso trabalho cotidiano nas instituições escolares. Temos, então, um possível disparate: pesquisamos, escrevemos, discutimos porque acreditamos que essa é uma forma de melhorar nossas práticas; porque esperamos que os resultados apresentados pelos nossos alunos e escolas sejam cada vez mais satisfatórios. No entanto, poucos dentre nós arriscariam dizer que hoje, com todo esse arsenal de informações e teorias disponíveis, nossas práticas estão mais satisfatórias ou que nosso trabalho tem sido mais gratificante do que era e, talvez, um número ainda menor de professores diria que seus alunos aprendem mais e melhor do que antes.

A busca pela compreensão das causas desse disparate entre nossos esforços, nossas expectativas e os resultados que temos obtido, pode nos levar a levantar uma série de hipóteses diferentes, algumas eventualmente contraditórias, mas muitas complementares. Isso porque os problemas envolvidos nas relações entre as pesquisas, as teorias e os debates sobre a educação escolar e a nossa prática são muito complexos e de naturezas diferentes. Tal disparate pode ser fruto, por exemplo, de uma expectativa exagerada quanto aos resultados dos estudos. Pode ainda ser fruto de problemas advindos da passagem de uma escolarização reduzida para uma escolarização de massas, ou de pesquisas equivocadas, ou ainda de um hiato entre teoria, discurso e prática educacional, enfim, podemos buscar explicações em muitos planos e perspectivas diferentes. Assim, o caminho que vou propor nestas reflexões está longe de ter a pretensão de esgotar um problema tão complexo, mas espero que ele contribua, de alguma forma, para pelo menos elucidar alguns dos possíveis motivos pelos quais nossos esforços no sentido de compreender melhor a natureza de nosso trabalho e, eventualmente, melhorar nossa prática ainda estão longe de produzir um resultado satisfatório.

Freqüentemente, quando pensamos sobre as causas da crise de nossas instituições escolares - sobretudo quando as comparamos com resultados de escolas de outros países - acreditamos que isso se deva a um certo atraso de nossas concepções e de nossas práticas educacionais. É como se devêssemos nos renovar mais, buscar certas novidades ou até mesmo abandonar nossas visões e práticas e adotar posturas mais modernas. A educação em nossas escolas, segundo essa visão, atingiria um grau de desempenho mais satisfatório se ela se modernizasse, material e intelectualmente. Eventualmente, esse raciocínio pode estar, em parte, correto. Mas há um certo aspecto nele que merece um pouco mais de atenção.

Hannah Arendt, ao falar sobre a crise da educação nos Estados Unidos, faz algumas reflexões que, guardadas as devidas diferenças entre os dois países, pode ser interessante para pensarmos alguns de nossos problemas. Diz a autora que: " ...a resposta à questão ... Por que os níveis escolares da escola americana média acham-se tão atrasados em relação aos padrões médios na totalidade dos países da Europa? - Não é, infelizmente, simplesmente o fato de ser este um país jovem que não alcançou ainda os padrões do Velho Mundo, mas ao contrário, o fato de ser este país, nesse campo particular, o 'mais avançado' e moderno do mundo. E isso é verdadeiro em um dúplice sentido: em parte alguma os problemas educacionais de uma sociedade de massas se tornaram tão agudos, e em nenhum outro lugar as teorias mais modernas no campo da Pedagogia foram aceitas tão servil e indiscriminadamente". (1972. pp. 227/8 grifos nossos).

Talvez não sejamos "o país mais avançado e moderno do mundo" em termos de educação, mas entre nós o problema da ampliação do alcance da educação formal a todos os segmentos da população é ainda mais dramático do que nos Estados Unidos. A exclusão - interna e externa às práticas escolares - é seguramente mais comum e mais perversa. Além disso, tal como nos Estados Unidos ou talvez ainda mais do que lá, nossas instituições educacionais parecem sempre propensas a aderir, "servil e indiscriminadamente" às teorias mais modernas, às metodologias redentoras, verdadeiras panacéias que prometem revolucionar o ensino ou sua pesquisa, enfim, a toda sorte de pedagogismos e psicologismos. Tal como os norte-americanos, temos também uma desenfreada paixão pelo novo.

E é sobre este último aspecto - o predomínio do psicologismo e do pedagogismo aceitos servil e acriticamente , talvez nem sempre nas nossas práticas, mas seguramente em nossos discursos sobre a escola -, que gostaria de refletir. Não é o caso de discutir as mais diversas formas de pedagogias renovadas ou modernas nem de abordar as diferentes correntes psicológicas que se alternam no discurso oficial ou na moda entre os pesquisadores. Gostaria de pontuar alguns problemas nos pressupostos, ou seja, em algumas das idéias básicas subjacentes a essas teorias renovadoras, fundadas em correntes pedagógicas e psicológicas que têm dominado os discursos das instituições escolares.

O primeiro desses pressupostos - que recebe as mais diversas formas, dependendo da teoria ou mesmo da metodologia proposta - é o de que nosso ensino deve ser centrado na criança. No campo metodológico, por exemplo, apontando que devemos sempre trabalhar segundo o interesse da criança(1). No campo psicológico, porque devemos conhecer essas crianças, como funcionam suas mentes, seus afetos, como elas desenvolvem suas estruturas cognitivas e do que elas são capazes. Provavelmente o primeiro grande slogan(2) que refletiu essa tendência foi aquele retirado da teoria de J. Dewey e que virou uma palavra de ordem das pedagogias modernas e dos modelos educacionais derivados da psicologia: "Nós não ensinamos matérias, ensinamos crianças".

Em sua formulação original não se tratava, evidentemente, de um slogan, mas estava inserido em uma teoria educacional complexa, cujo maior mérito era, sem dúvida, chamar a atenção para o fato de que o sistema educacional tradicional era exageradamente formal e seletivo, que ele pouca ou nenhuma atenção prestava ao fato de que o êxito do ensino não consiste em uma exposição rigorosa, correta, logicamente organizada de um conteúdo qualquer, mas no fato de que os alunos foram capazes de aprender o que lhes foi exposto. Mas, separado do contexto histórico e teórico em que foi engendrado, esse princípio acabou sendo banalizado e sofrendo um grave reducionismo. E, o que é pior, tomado literalmente, como se educar em uma instituição escolar significasse formar crianças independentemente de ensiná-las conteúdos escolares.

Os professores e as instituições escolares passaram a centrar sua atenção, ou pelo menos seu discurso, na criança, em seu processo de desenvolvimento cognitivo, afetivo, etc. E isso à custa, muitas vezes, de uma desimportância crescente dos conteúdos, disciplinas e valores que caracterizam o ensino escolar. O professor passou a ser discursivamente definido como aquele que respeita, ama, considera a criança. É evidente que todos esses sentimentos e atitudes em face da criança são benéficos, comumente até necessários para o ensino. Mas também é verdade que é possível amar, respeitar e se dedicar às crianças sem que tenhamos como opção profissional o compromisso social de ensiná-las algo. Há muitos modos de se respeitar e de se cuidar das crianças: entre eles, o de iniciá-las em uma educação escolar, através do ensino. Este é o modo específico que caracteriza nossa profissão.

Perdê-lo de vista é perder a própria especificidade e concretude de nosso trabalho. Para explicitar algumas conseqüências desse aspecto distintivo de nossa profissão, lancemos um olhar à própria noção do verbo “ensinar”. Seja qual for a definição que se tenha de ensino, aprendizagem ou mesmo de criança, toda vez que usamos o verbo ensinar nós o utilizamos dentro de uma estrutura triádica. Ou seja, sempre que há ensino, há alguém que ensina, algo a ser ensinado e alguém a quem se ensina. A ação de ensinar pressupõe, portanto, além do sujeito, que é quem ensina, dois objetos que à sua ação se referem e se complementam. Não há sentido em se dizer que ensinamos matemática, mas a ninguém. Podemos até expor um conteúdo de matemática sem que haja alguém a quem se destine tal informação, mas não se trata, neste caso, de ensino e sim de exposição. Por outro lado, não se pode dizer que estamos ensinando alguém, mas não estamos lhe ensinando nada.

Essa constatação da relação necessariamente triádica(3) do verbo “ensinar" - que é a ação característica de nossa profissão -, embora trivial, é fecunda para refletir sobre uma série de equívocos em nossos discursos ou mesmo práticas educativas. Ela nos mostra, por exemplo, que o respeito a quem se ensina é tão importante e constitutivo da relação, quanto o respeito ao que se está ensinando. Isso implica que a educação escolar tem um duplo compromisso: com o aluno, a quem tentamos ensinar; e com a sociedade e as realizações históricas que constituem os conteúdos, as disciplinas e os valores socialmente escolhidos que buscamos ensinar.

Nosso trabalho é, assim, duplo e antagônico. Em uma de suas pontas - a quem ensinamos - ele representa um compromisso com o futuro, com a transformação guiada por certos valores e objetivos. Na outra ponta, que se refere ao que é ensinado, ele representa a conservação, a manutenção de certas práticas sociais como a escrita, as operações matemáticas, certas ciências, certas artes(4). Enfim, ensinamos para manter vivos, naqueles que são ensinados, alguns saberes, tradições e conquistas do espírito humano que consideramos úteis ou valiosos.

Nosso trabalho é, portanto, iniciar os jovens em certas heranças culturais(5) cuja sobrevivência depende do fato de que os novos delas se apoderem, que eles façam dessa herança seu legado cultural e as transformem e modifiquem de acordo com as suas possibilidades, desejos e capacidades. Nosso trabalho não está, portanto, ligado só ao futuro, mas faz a mediação entre o passado e o futuro. Temos que respeitar ambos, assumir responsabilidades em face de ambos. "A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele... A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos...".(Arendt, 1972. p.247).

O mundo a que se refere Arendt na citação acima não é simplesmente um aglomerado de coisas, mas um conjunto de realizações humanas, de conceitos, linguagens, valores, modos de vida que compõem as heranças culturais humanas. "Só podemos penetrar, possuir e desfrutar desse mundo através da aprendizagem. Um quadro pode ser comprado, mas não se pode comprar a compreensão desse quadro. ...Esse mundo é o que chamo de nossa herança comum, porque penetrar nele é a única forma de nos tornarmos seres humanos. ...É neste mundo espiritual que a criança, mesmo na mais tenra idade, se inicia; e iniciar alunos nesse mundo é a tarefa do professor.” (Oakeshott, 1968. p. 158).

Note-se que nessa distinção sutil que o autor faz entre a tarefa dos pais, na primeira infância, e a dos professores, ele aponta algo óbvio, novamente trivial, mas de suma importância: ao falar da iniciação da criança não se fala de um profissional de uma instituição, mas ao falar de um professor o autor não mais usa simplesmente o termo criança, mas o termo aluno. E isso nos leva a pensar a respeito das contribuições e, sobretudo, dos limites da aplicação de conceitos originários da psicologia no discurso de professores e agentes institucionais do ensino escolar, que constitui o segundo pressuposto sobre o qual gostaria de refletir.

Nos últimos anos, a psicologia parece reinar quase absoluta nos discursos subjacentes a teorias e programas educacionais das mais variadas linhas. Tal como aconteceu com a teoria de Dewey, autores como Piaget e Vigotsky, entre outros, tiveram sua obra transformada em slogans e programas de intervenção escolar. Novamente, incorremos em alguns flagrantes reducionismos.

Mas o que nos interessa aqui não é, uma vez mais, descer a detalhes dessas ou outras teorias, mas apontar para alguns problemas gerais da tentativa de derivar uma ação pedagógica a partir de dados psicológicos, seja qual for a teoria em que tais dados se baseiam. Comecemos pela própria distinção entre criança e aluno. O primeiro termo, em seu uso psicológico, designa um determinado momento no desenvolvimento psico-biológico de qualquer ser humano, pertença ele ou não a uma sociedade que usa instituições como a escola para a sua educação. Já o segundo designa uma realidade muito mais específica.

O termo “aluno” pressupõe a existência de uma determinada relação institucional, sem a qual ele não existe nem faz sentido. Essa relação se estabelece necessariamente em um contexto que é específico de uma instituição social determinada, que é a escola. Essa instituição é impregnada pelos conteúdos escolares e o próprio saber escolar, ou seja, as práticas concretas dos professores, diretores e demais agentes institucionais. Compreender as relações concretas entre crianças e adultos pressupõe compreender a especificidade de cada relação dentro da qual assumimos certos papéis sociais que diferem de outros, como pais e filhos, professores e alunos etc. A compreensão de fenômenos sociais como escola, aluno, professor, currículo não pode ser lograda em abstração dessas instituições que estabelecem as mediações entre as pessoas que nela se encontram, nem por meio de conceitos que a elas não façam referência primordial e direta.

Nesse sentido, trabalhamos com crianças que são alunos. Novamente aqui reside a especificidade do nosso trabalho. Há crianças que, dado um determinado contexto, são vistas e compreendidas como pacientes, como consumidores, como trabalhadores, etc. Aquelas com as quais trabalhamos devem ser vistas como alunos, se desejamos compreendê-las em nosso papel de professores, agentes institucionais da educação ou pesquisadores ligados à educação. E é essa característica específica que necessitamos conhecer e, em grande medida, ignoramos. Claro que não deixam de ser crianças, sujeitas às mesmas características, etc. ... . Mas, o que mais nos importa são as características específicas desse contexto particular, que para nós é determinante e não acidente(6).

Na verdade, nossa experiência, nosso trabalho nos fornece informações sobre esse aluno. Mas, como nos sentimos impotentes frente a muitos de nossos problemas, apresentam-nos fórmulas redentoras, embaladas com rótulos de ciência, e diante das quais temos de nos transformar, abandonar nosso saber e adaptá-lo à "verdadeira criança", "descoberta" por uma ciência, como a psicologia, por exemplo. Só que essa "verdadeira criança" se parece muito pouco com nossos alunos. E isso não é um defeito da teoria, mas um erro na sua transposição. Expliquemo-nos.

É evidente, pela própria natureza do trabalho de um psicólogo, que seu interesse em geral não se restringe à especificidade da relação de aprendizagem como fruto de um ensino em uma instituição escolar. O que as teorias de desenvolvimento cognitivo tentam, com ou sem êxito, é dar conta de factores que expliquem os mecanismos gerais subjacentes a qualquer forma de desenvolvimento cognitivo. Notadamente em Piaget, a questão da escolaridade é, e deve ser, colocada a parte. O que interessa é o desenvolvimento psico-biológico da criança como ser cognoscente (ou do sujeito epistêmico, para usar um termo próprio da área) e não o ensino formal de um aluno. Mas, a tentativa de exportar para o campo da educação conceitos, procedimentos e objetivos da psicologia tem resultado em um transplante, a meu ver mal sucedido, de imagens, metáforas e slogans que tem pouco valor prático para o trabalho do professor.

Acredito que tanto a pertinência quanto os limites desse transporte teórico da psicologia para a educação estão muito bem ilustrados em um texto de Scheffler, onde o autor comenta o uso e os limites da metáfora do crescimento do organismo para compreendermos no que consistiria o processo educacional, segundo uma visão preponderantemente desenvolvimentista. Permitam-me, então, uma longa citação dessa obra:

"Há uma analogia evidente entre a criança que cresce e a planta que cresce, entre o jardineiro e o professor. Em ambos os casos, o organismo em desenvolvimento passa por certas fases que são relativamente independentes dos esforços do jardineiro ou do professor. Nos dois casos, todavia, o desenvolvimento pode ser auxiliado ou prejudicado por esses esforços. Para um e para outro, o trabalho de cuidar desse desenvolvimento pareceria depender do conhecimento das leis que regulam a sucessão de fases do desenvolvimento. Em nenhum dos dois casos o jardineiro ou o professor é indispensável para o desenvolvimento do organismo e, depois de terminada a sua tarefa, o organismo continuará a amadurecer. Os dois estão interessados em ajudar o organismo a florescer e em cuidar de seu bem-estar proporcionando condições ótimas para que operem as leis da natureza.... (mas)...

“Onde sucumbe a metáfora do crescimento? ...A natureza e a ordem desses estágios de desenvolvimento..., bem como das aptidões de comportamento que eles tornam possíveis, são, na verdade, relativamente independentes da ação de outros indivíduos, embora fatores culturais, mesmo aqui, tenham seu impacto.

“No entanto, se alguma vez perguntarmos de que maneira essas aptidões deverão ser exercidas, para que deverá ser dirigida a energia temperamental da criança, que tipos de conduta e que tipos de sensibilidade deverão ser encorajados (bem como que tipo de conteúdos, valores e práticas escolares devemos apresentar-lhes) começaremos, então, a perceber os limites da metáfora do crescimento. A sequência de etapas de desenvolvimento é, de fato, compatível com um número indeterminado de respostas irreconciliáveis a essas perguntas...Por essa razão, não há nenhum sentido literal em dizer, em relação a esses aspectos: 'Desenvolvamos todas as potencialidades de cada criança'. Essas potencialidades entram em conflito e, portanto, não podem ser todas desenvolvidas. Desenvolver algumas significa impedir outras.... ". (1972. p.62/3).

Ou seja, o nosso trabalho como professores que ensinam alunos - que é diferente de adultos que têm contato com crianças e as influenciam de algum modo - implica escolhas de metodologias, procedimentos, conteúdos, valores, condutas que julgamos adequadas ou inadequadas, não a partir de uma ciência qualquer, mas de escolhas de natureza moral, política, enfim, escolhas culturais que exigem um tipo de justificação racional diferente daquela que uma teoria psicológica pode nos fornecer(7). Tais escolhas incidem tanto sobre os conteúdos de nossas práticas como sobre as formas pelas quais as conduzimos. É possível, por exemplo, levar uma criança a se alfabetizar ou a ter determinada conduta, através de uma infinidade de formas: através de ameaça, de violência, de coação, de mentiras. Mas nenhuma dessas forma é considerada adequada àquilo que chamamos “ensino” em seu uso escolar canônico.

Isso porque “ensinar”, em seu uso padrão nas instituições escolares, freqüentemente implica uma forma distinta de conseguir desenvolver uma habilidade ou um padrão de conduta. Tal forma pressupõe, segundo Scheffler, "submeter-se, pelo menos em alguns pontos, à compreensão e ao juízo independente do aluno, à sua exigência de razões e ao seu senso daquilo que constitui uma explicação adequada. Ensinar a alguém que as coisas são deste ou daquele modo não significa meramente fazer com que ele o creia; o engano, por exemplo, não constitui um método ou modo de ensino. Ensinar envolve, além disso, que, se tentarmos fazer com que o estudante acredite que as coisas são deste ou daquele modo, tentemos, ao mesmo tempo, fazer com que ele o creia, por razões que, dentro dos limites de sua capacidade de apreensão, são nossas razões. Ensinar, assim, exige de nós que revelemos as nossas razões aos estudantes e, ao fazê-lo, que as submetamos à sua avaliação e à sua crítica".(Ibidem, p.70/71). A escolha dessa forma não se funda, portanto, em sua veracidade, falsidade e nem sequer em sua eficácia, mas em seu valor moral e social.

Por essas razões, ensinar algo a nossos alunos não equivale a propiciar que crianças se desenvolvam de forma geral, mas significa que buscamos desenvolver certos tipos específicos de habilidades, capacidades, comportamentos e conteúdos e de uma certa forma. Não é, portanto, qualquer tipo de formação ou desenvolvimento que desejamos ajudar nossos alunos a adquirir. O ensino formal é intencional, em forma e conteúdo, exige de nós tomadas de posição que estão além dos dados oferecidos por qualquer teoria psicológica, ainda que estas possam, eventualmente, ser de valia para o professor ter mais dados em face das opções que ele deve necessariamente fazer.

Mas, aos dados e aportes de ciências como a psicologia devemos adicionar outras fontes de informação para compreender a complexa natureza da educação escolar ou justificar certas posições em face dos problemas. Entre elas, seguramente, a reflexão sistemática sobre as nossas práticas, seus êxitos, hesitações e fracassos, bem como o projeto da nossa escola, nossos objetivos e problemas devem ter um lugar preponderante.

Um só exemplo talvez já nos baste para ilustrar o que pretendemos argumentar. Tomemos um problema que parece ser tão grave como persistente na educação escolar no Brasil, que é o do acesso e permanência na escola fundamental de todos os segmentos da população. Esse ideal, consagrado em lei, mas nunca realizado, não pode ser uma mera decorrência de uma visão didático-metodológica, nem tampouco psicológica. A decisão de se escolarizar ou não determinados segmentos da população é, evidentemente, uma decisão de política educacional. Ela é compatível com qualquer teoria descritiva de como a criança constrói, internaliza ou elabora seu conhecimento, assim como todas essas teorias podem conviver - e convivem - com mecanismos seletivos da escolarização, seja qual for o fundamento que lançamos mão para justificá-los.

Ao insistirmos que o nosso fracasso em escolarizar toda a população se deve a adoção de tal ou qual técnica, metodologia ou visão de criança ou conhecimento, deslocamos o problema para o âmbito técnico-pedagógico, que não é o adequado neste caso. Até porque sociedades com sistemas tradicionais de ensino e concepções “não-científicas” do desenvolvimento da criança deram conta desse problema básico. Não há concepção pedagógica ou psicológica capaz de instituir um compromisso que transcende esse tipo de decisão, posto que ele decorre da própria visão do que deva ser uma educação fundamental e a quem ela deve se dirigir.

Uma decisão de natureza política e social, como essa de se estender o máximo possível os benefícios da educação a todos os brasileiros, precede qualquer opção metodológica derivada de qualquer teoria. Para que esse ideal não seja simples retórica, uma escola deve tê-lo como compromisso da instituição e de cada indivíduo que nela trabalha. E esse, seguramente, não é nem deve ser um compromisso metodológico nem psicológico, mas de visão de sociedade e de escolarização. É só a partir da compreensão da dimensão social dessa decisão que podemos buscar meios adequados de se resolver nossos problemas que são sempre bem mais específicos do que as grandes teorias gerais, sejam elas didáticas ou psicológicas. E tais meios serão sempre uma somatória de opções de natureza educacional e filosófica, jamais redutíveis a uma pretensa dedução a partir de princípios de uma ciência, seja ela qual for.(8)

A psicologia pode nos trazer algumas informações sobre estruturas que permitem o aprendizado em geral, mas até agora pouco tem pesquisado sobre o aprendizado em condições escolares concretas. As metodologias podem nos oferecer opções práticas, mas estas só têm sentido se desenvolvidas a partir dos problemas concretos dos professores. Mas, o que é preciso destacar é que o nosso dever de fixar metas e procedimentos educativos só pode se realizar a partir da clara consciência de que a educação escolar, em sua dimensão concreta, é fruto do trabalho cotidiano de professores e demais agentes institucionais de ensino em situações e desafios tão específicos que grandes teorias gerais só podem ser, na melhor das hipóteses, panos de fundo. Se queremos formar alunos autônomos, que sejam cidadãos responsáveis é preciso que nós, professores ou pesquisadores, sejamos profissionais responsáveis e autônomos e não defensores de seitas pretensamente fundadas em dados científicos.

É preciso resistir à tentação de crer que haja caminhos prontos e pensados por outros profissionais que irão resolver nossos problemas. Nossos problemas não são de natureza psicológica, nem sociológica, nem metodológica, ainda que em alguma medida os envolva, assim como o trabalho médico envolve dimensões sociais, econômicas e sociológicas, bem como químicas e fisiológicas, mas nem por isso com elas se confunde. Nossos problemas são problemas concretos dos profissionais da educação escolar. E que só serão resolvidos quando enfrentados como tal e por cada um de nós, professores, pesquisadores e agentes institucionais da educação.

Bibliografia

Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Perspectiva, 1972.

Azanha, José M. Educação: Temas Polêmicos. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

Passmore, John. The Philosophy of Teaching. Londres, Duckworth, 1982.

Peters, Richard. The Concept of Education. Londres, Routledge and Kegan Paul, 1968.

Ryle, Gilbert. Dilemas. São Paulo, Martins Fontes, 1993.

Scheffler, Israel. A Linguagem da Educação. São Paulo, Saraiva/Edusp, 1968.

 


(1). Acredito que este seja um caso paradigmático da esterilidade dos slogans metodológicos. A idéia de que devemos trabalhar com os interesses dos alunos, além de duvidosa em seu conteúdo, não oferece virtualmente nenhuma clareza operativa. Sua utilidade é tão grande como a de avisar a um ciclista que para ganhar a corrida ele deve fazer o percurso mais rápido que qualquer concorrente. A questão é se devemos fazê-lo e como, sobretudo se temos quarenta alunos, com interesses, desejos e expectativas diferentes. Além de que, o dever do professor consiste mais em criar interesses novos do que verdadeiramente ater-se aos já existentes. A nossa principal questão, parece-me, é justamente como fazer dos problemas de nossos conteúdos questões interessantes para os alunos e não ser gerente de problemas eventualmente exteriores às nossas preocupações.

(2). Segundo Scheffler, "Em educação, os slogans proporcionam símbolos que unificam as idéias e atitudes chaves dos movimentos educacionais. Exprimem e promovem, ao mesmo tempo, a comunidade de espírito, atraindo novos aderentes e fornecendo confiança e firmeza aos veteranos". (In: A Linguagem da Educação. São Paulo, Saraiva/Edusp, 1972. p. 46.). É nesse sentido, de uma palavra de ordem que perpassa os discursos educacionais, que a utilizo esse termo.

(3). Cf. John Passmore. The Philosophy of Teaching. London, Duckworth, 1982. Especialmente cap. 2.

(4). Esse conteúdo que forma o currículo escolar tem sido alvo de uma reiterada crítica apontando seu caráter reprodutivista. De fato, a justificativa das escolhas curriculares é uma tarefa árdua. No entanto, sejam quais forem os critérios utilizados para a seleção do conteúdo escolar, tal conteúdo sempre representará escolhas valorativas da comunidade escolar em relação a perspectivas mais ou menos canônicas de uma área, ou seja, ele necessariamente reflete certas tendências ou correntes de um saber que antecede aos alunos.

(5). Cf. M. Oakeshott. Learning and Teaching. In: Peters, R.S. The Concept of Education. Londres, Routledge and Kegan Paul, 1968.

(6). Em uma metáfora bastante pertinente a respeito da vinculação entre o conceito e o contexto de seu uso, Gilbert Ryle pondera o seguinte: “As cartas com que jogamos pôquer são as mesmas com que jogamos bridge ou são diferentes? São certamente as mesmas. Mas as propriedades ou atributos que o jogador de pôquer percebe ou deixa escapar serão as mesmas que o jogador de bridge percebe ou deixa escapar? Esses jogadores dão as mesmas descrições delas ou descrições diferentes e até conflitantes? As respostas não são fáceis. Pois, ainda que ambos os jogadores percebam que uma certa carta é a rainha de copas, um deles registra, ou talvez deixe de registrar, que ela é a última carta sobrevivente do trunfo, enquanto o outro nem conta com essa expressão em seu vocabulário de pôquer... Bem, isso significa que um deles está certo e o outro errado? ... Ou na realidade não é nenhuma dessas coisas, mas apenas uma rainha de copas? Obviamente isso não é uma perplexidade genuína. A questão sobre se essa rainha de copas num determinado momento é um trunfo ou não depende da questão anterior sobre se quatro pessoas estão jogando bridge com o baralho que contem essa carta”. (1993, p.193). Analogamente, a questão não é se Joãozinho é um sujeito epistemológico, sujeito psicológico ou a somatória dessas perspectivas, dentre outras. Em aula, ele é um aluno e a referência a outros conceitos pode ser até mesmo obscurecedora, como se buscássemos canastras reais em um jogo de pôquer.

(7). Nesse sentido, basta apontar, por exemplo, que o critério de validação de uma teoria psicológica qualquer, no limite, sempre será fundado em sua possível veracidade. Ou seja, dela podemos dizer que é falsa ou verdadeira a partir das melhores evidências empíricas possíveis e do confronto com outras teorias. Já de um programa de ação escolar ou de objetivos em relação ao processo de escolarização não faz sentido dizermos que ele é falso ou verdadeiro, como justificação ou validação de sua adoção. O critério que aplicamos para justificar ou adotar um determinado projeto não diz respeito à sua possível veracidade a partir de evidências empíricas, mas sobretudo à sua pertinência moral e social.

(8). Até porque, de um ponto de vista lógico, não é possível deduzir postulados acerca de objetivos e programas de educação a partir de postulados psicológicos, sociológicos ou mesmos metafísicos e ontológicos. A validade de uma conclusão dedutiva depende da presença dos mesmos elementos nas premissas, de forma que as conclusões são alcançadas por uma operação puramente formal. Não há, portanto, uma ligação necessária entre, por exemplo, um modelo de descrição da aquisição da linguagem escrita e certos procedimentos metodológicos, como o uso ou a abolição de uma cartilha. O que se busca é simplesmente se depreender certas ações coerentes cm os dados que temos, ainda assim, os mesmos dados podem inspirar um número enorme de ações diferentes e mesmo conflitantes. Um claro exemplo disto é a enorme diversidade de práticas que se dizem originárias do construtivismo piagetiano.