Notas sobre a Loucura Quixotesca
em Quincas Borba

 

María de la Concepción Piñero Valverde
(DLM-FFLCHUSP)

 

Não tem sido esquecida pela crítica a presença de Cervantes na obra de Machado de Assis. Leitor atento dos grandes mestres da literatura ocidental, Machado encontrou em Cervantes uma das fontes do humorismo que caracteriza muitas de suas melhores páginas. Dentre as referências machadianas ao criador do Quixote, há uma que o situa, precisamente, entre os mestres do riso filosófico. Suas palavras são estas: "Aqui é que eu quisera ter dado a este livro o método de tantos outros - velhos todos - em que a matéria do capítulo era posta no sumário [...]. Das linguas estranhas, sem querer subir a Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e Smollet [... ]"1.

 

São palavras que se acham em Quincas Borba,. E se a crítica, como foi dito, reconhece, de maneira geral, a presença cervantina na obra de Machado de Assis, é em Quincas Borba, que se poderão achar as marcas mais evidentes de uma presença quixotesca. Não há que procurar, porém, no Quixote de Machado de Assis o personagem de contornos nítidos, familiar ao especialista, ao cervantista. Seu Quixote é o do leitor fiel, que conserva na memória os traços fundamentais de um mito. O Quixote de Machado de Assis é imagem de traços essenciais, é a figura que, em uma crônica, o escritor brasileiro evocaria como "ridícula nos atos, embora sublime nas intenções"2. E por isso mesmo, modelo de criação artística profundamente humana.

 

Mas, para voltar a Quincas Borba, será oportuno notar uma circunstância que, desde a concepção fundamental, parece aproximá-lo da obra de Cervantes. Refiro-me à sátira de algumas modas livrescas, sátira que em Cervantes atinge os romances de cavalaria e, em Machado de Assis, os manuais de doutrinação positivista.

 

Efetivamente, como se sabe, as idéias de Comte rapidamente se espalharam entre a intelectualidade brasileira de fins do século XIX. É sabido que a oposição à monarquia e a proclamação de uma república de propósitos "positivos", haviam sido inspiradas por esse ideário. Ao positivismo republicano se deveu também a tentativa de implantação de uma nova crença, a "religião da Humanidade", evocadora do sistema de idéias de Quincas Borba, o Humanitismo.

 

Para além da intenção satírica perceptível nesta obra de Machado de Assis, como na de Cervantes, é preciso, contudo, notar ainda que em Quincas Borba, como no Quixote, lucidez e loucura ocupam lugar central. Bastaria isto para causar a impressão de que Quincas Borba, dentro da produção machadiana, revela, mais do que outros romances, raízes cervantinas. Impressão que se consolida se, recordando algumas páginas do romance, observarmos que o processo de enlouquecimento de seus protagonistas se revela marcadamente quixotesco.

 

As peripécias que levaram Quincas a criar um novo sistema filosófico, justamente o Humanitismo – haviam sido contadas em Memórias Póstumas de Brás Cubas3. Lembre-se que os acontecimentos do romance agora discutido se iniciam quando o filósofo, gravemente enfermo, volta a Barbacena, onde reencontra um velho conhecido, Rubião.

 

O mal que enfraquecia Quincas Borba reforça em suas idéias o "grãozinho de sandice" que sempre estivera nelas enraizado4. Rubião, em sua simplicidade, via o amigo como um enfermo do corpo, mas não do espírito. Limitava-se a julgá-lo "homem esquisito"5, cheio de idéias filosóficas, que lhe causavam um misto de pasmo e incredulidade. Uma referência casual que fez a essas "filosofias" - como as chamava6 - levou afinal o enfermo a convidá-lo a se iniciar em seu sistema. Rubião se torna, a partir de então, confidente dos ideais do amigo, e, ainda que sem entendê-los bem, o único seguidor dos preceitos do Humanitismo.

 

Já nestas páginas iniciais de Quincas Borba desponta, como se vê, o louco que assume com fervor sua missão e que busca um companheiro na empresa visionária. Quincas Borba se mostra inteiramente compenetrado do propósito de cumprir com coerência as obrigações do criador de uma nova filosofia. Esta filosofia, o Humanitismo, seria, segundo o fundador, "o remate das cousas", a revelação que o consagraria como "o maior homem do mundo"7. E nenhum filósofo seria digno desse nome se não associasse a si a figura de um discípulo e continuador. O escolhido é o segundo protagonista do romance, o bom Rubião.

 

Mais intenso que o de Sancho, o aprendizado de Rubião se concentra em uma única viagem. Uma viagem que não percorre estradas, mas percorre os últimos tempos da vida do mestre. Durante esses breves momentos, o discípulo se iniciará em ideais não menos nobres que os de D. Quixote. Pois a cavalaria procurava igualar fracos e fortes, fazendo prevalecer sempre a justiça, enquanto o Humanitismo igualava fracos e fortes, fazendo com que Humanitas prevalecesse sempre. Este é o conceito chave em que o filósofo inicia o amigo Rubião.

 

Lembre-se, efetivamente, que segundo Quincas Borba, em todos os seres há que ver a onipresença de uma forma superior de vida, que chama de Humanitas. Em todas as coisas, diz ele, Humanitas é "substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível"8. Humanitas é sempre a mesma, tanto em Quincas Borba quanto no fiel cãozinho, a quem o filósofo dera seu próprio nome. O cachorro Quincas Borba parecia acompanhar atento as lições do Quincas Borba humano. E o filósofo ia levando o amigo Rubião a ver com outros olhos o cachorrinho, manifestação de Humanitas. Em plena exposição de suas idéias, diz o mestre ao discípulo: "Olha, vês como o meu bom Quincas Borba está olhando para mim? Não é ele, é Humanitas"9.

 

O filósofo de Barbacena sabe que a morte iminente só o atingirá na aparência. Sua substância profunda é Humanitas, que continuará a existir. Existirá no cachorro, existirá no amigo Rubião. Estes, pela força de Humanitas, serão outros Quincas Borbas. Assim também, no passado, pela força do ideal, Dom Quixote fazia reviver em si os cavaleiros seus antecessores, e, depois de morto, reviveria para sempre nas páginas de Cervantes. A esta última observação nos conduz o próprio Quincas. Junto de si, ele contempla aqueles em quem continuará a existir. O amigo Rubião, o pobre cãozinho e, além deles, um livro. Um livro que guarda junto a seu leito de enfermo, e que aponta ao discípulo com estas palavras: "Vês este livro? É D. Quixote. Se eu destruir o meu exemplar, não elimino a obra, que continua eterna nos exemplares subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e bela, belamente eterna, como este mundo divino e supradivino"10.

 

Se no amigo e no cão Quincas Borba julga encontrar continuadores que prolongarão por alguns anos sua existência, no Quixote encontra ele a criatura que mais o aproxima da imortalidade de Humanitas.

Pois é precisamente este ponto, o da sobrevivência por meio do livro, que parece desvendar a raiz comum do processo de enlouquecimento de Quincas Borba e do Quixote. O processo se inicia, em ambos, pela ruptura de barreiras entre o livro e a vida. No início da loucura descrita por Cervantes, como na que desreve Machado de Assis, está a perda da distinção entre os fatos escritos e os fatos vividos. Quincas Borba não faz diferença entre um tratado de filosofia e a vida em Barbacena. E sob sua influência também Rubião principia a identificar uma e outra coisa. É o que se percebe com clareza pelo diálogo entre Rubião e o médico que havia chamado para atender a Quincas Borba. A cena assim se descreve:

 

"Um dia, o nosso Rubião, acompanhando o médico até a porta da rua, perguntou-lhe qual era o verdadeiro estado do amigo. Ouviu que estava perdido, completamente perdido; mas, que o fosse animando. Para que tornar-lhe a morte mais aflitiva pela certeza?...

 

- Lá isso, não, atalhou Rubião; para ele, morrer é negócio fácil. Nunca leu um livro que ele escreveu, há anos, não sei que negócio de filosofia...

 

- Não; mas filosofia é uma cousa, e morrer de verdade é outra; adeus".11

 

Rubião já não distingue, no mestre, o livro e a vida. Menos ainda faz essa distinção o próprio Quincas Borba, sempre mais compenetrado da obrigação de viver até o fim segundo os ideais que expusera em seu livro. Eis por que o filósofo, próximo de morrer, assim fala ao discípulo:

 

"Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum"12.

 

Como o Quixote encarnara os livros de cavalaria, assim também Quincas Borba encarna seu tratado sobre o Humanitismo. Ainda mais: o Quixote, a certa altura, tivera consciência de que seu nome estaria para sempre ligado aos livros e de que ele próprio se havia tornado personagem de livros. É o que sabe também Quincas Borba, ao dizer: "Viverei perpetuamente no meu grande livro"13. Essa obsessão é tal que ele, pouco antes de morrer, destrói o que havia escrito, para tentar expô-lo de forma mais perfeita14. Não viveu o bastante para fazê-lo, mas descobriu que outros livros seus já lhe asseguravam a imortalidade. Pois, às vésperas de morrer, Quincas Borba se dá conta de que não era ninguém menos que um dos maiores pensadores e um dos mais prolíficos escritores do Ocidente. É o que relata numa carta secreta a Rubião, com as palavras seguintes: "Quem sou eu? [...] Sou Santo Agostinho; descobri isto anteontem. [...] Tudo coincide nas nossas vidas. O santo e eu passamos uma parte do tempo nos deleites e na heresia, porque eu considero heresia tudo o que não é a minha doutrina de Humanitas"15.

 

Na longa carta ao amigo, Quincas Borba procura demonstrar sua descoberta por meio das Confissões agostinianas. As Confissões, o Quixote: Rubião imaginava que o filósofo havia de estar sempre metido com livros, dos quais tantas vezes lhe falava. Recordando o mestre, depois de morto, assim pensava o discípulo: "E livros? devia ter muitos livros, citava muitos deles"16.

 

Em Quincas Borba, portanto, o encontro com a palavra impressa faz explodir o "grãozinho de sandice", que o acompanhará até a morte. Sua loucura, porém, fica escondida aos olhos dos contemporâneos. Tanto assim que o jornal do Rio de Janeiro que lhe estampa o obituário descreve-o como "homem de muito saber", que havia suportado a enfermidade "com singular filosofia"17. Se toda a aldeia reconhecera que Alonso Quijano havia recobrado a razão pouco antes de morrer, toda a sociedade outorga a Quincas Borba, no momento da morte, um atestado de lucidez. E se Alonso Quijano morre, o Quixote continua vivo, ao menos no coração de Sancho, desse Sancho quixotizado, que convidava o agonizante a retomar a vida de aventuras. Assim tambem em Rubião, companheiro e continuador, prossegue viva a imagem do amigo. E em Rubião se repetirá o processo inexorável de enlouquecimento, iniciado pela perda da distinção entre a palavra e a vida.

 

De fato, herdeiro da riqueza e da doutrina de Quincas Borba (e da obrigação de cultuar seu nome, servindo ao cachorro que o continuava), Rubião segue os passos do filósofo: sai da província e se transfere para o Rio. Na viagem, conhece um casal que logo pressente a inexperiência do rico provinciano. Cristiano Palha, comerciante que viaja acompanhado da mulher, a bela Sofia, aproxima-se de Rubião e oferece-lhe sua casa, no Rio de Janeiro.

 

A casa da família Palha, que Rubião passa a freqüentar, evoca ao leitor de Cervantes o palácio dos duques, que hospedam Dom Quixote. No palácio, Dom Quixote parece tratado com a consideração devida a um cavaleiro, como na casa de Cristiano e Sofia Rubião parece tratado como figura ilustre. Em ambos os casos, porém, a acolhida honrosa esconde segundas intenções: a burla (no caso dos duques) ou a ambição (no caso de Cristiano e Sofia).

 

O encontro com a família Palha tem, para o recém-chegado ao Rio, outra conseqüência que o fará adiantar-se no caminho da loucura quixotesca. Pois é a partir desse momento que Rubião começa também a sentir o gosto pela palavra escrita. Gosto cujas delícias descobre ao receber um bilhete da mulher amada, a formosa Sofia, que, certa manhã lhe manda uma cesta de morangos, acompanhada de uma nota, onde o convida a jantar. Bastam essas poucas linhas para que no espírito de Rubião comece a surgir a figura idealizada de uma mulher sublime, disposta a retribuir toda a paixão que ele lhe devota. Diz o romance:

 

"Rubião [...] ainda uma vez leu o bilhete de Sofia. Cada palavra dessa página inesperada era um mistério; a assinatura uma capitulação. Sofia apenas; nenhum outro nome da família ou do casal. Verdadeira amiga era evidentemente uma metáfora. Quanto às primeiras palavras: Mando-lhe estas frutinhas para o almoço, respiravam a candidez de uma alma boa e generosa. Rubião viu, sentiu, palpou tudo pela única força do instinto e deu por si beijando o papel - digo mal, beijando o nome, o nome dado na pia de batismo, repetido pela mãe, entregue ao marido como parte da escritura moral do casamento, e agora roubado a todas essas origens e posses para lhe ser mandado a ele, no fim duma folha de papel...Sofia! Sofia! Sofia!"18.

 

Vai nascendo aqui uma personagem criada pela fantasia de Rubião: a mulher amada, "boa e generosa", bem diferente da Sofia de carne e osso, calculista e astuta, cúmplice do marido no plano de uma inescrupulosa ascensão social. Assoma, aqui, portanto, a figura de uma idealizada Dulcinéia, que passará a dominar os pensamentos de Rubião, até a catástrofe da loucura. Como o Quixote, que cria uma carta de Dulcinéia e a lê segundo seu próprio coração, assim também Rubião empresta às palavras de Sofia a "candidez" de seu próprio coração de leitor enamorado. A inocência de Rubião, que a partir de um bilhete idealiza sua dama, é o seu "grãozinho de sandice", que pouco a pouco o levará a assemelhar-se ao mestre louco. Ambos, mestre e discípulo, participarão assim, daquilo que, em uma crônica, Machado de Assis recorda como "a ingenuidade sublime" de Dom Quixote19.

 

Rubião, entretanto, descobre na palavra escrita um poder ainda maior: o de transformar a si próprio em personagem. Isto se dá quando vê seu nome estampado em um jornal. Era um jornal político em dificuldades financeiras que vinha custeando, a pedido do diretor. A notícia publicava algo acontecido pouco antes: ao atravessar a rua, Rubião impedira que um carro desgovernado atropelasse um menino descuidado. A divulgação do incidente a princípio o descontentou. Mas uma segunda leitura já lhe trouxe o prazer de ser protagonista de um relato, ainda que um tanto fantasioso:

 

"Rubião interrompeu as reflexões para ler ainda a notícia. Que era bem escrita, era. Trechos havia que releu com muita satisfação. [...] Alguns pontos estavam acrescentados, - confusão de memória, - mas o acréscimo não ficava mal. [...] Dali foi comprar uns tantos exemplares da folha para os amigos de Barbacena"20.

 

Seguro do valor da personagem em que começa a transformar-se, Rubião passa a imaginar o momento de ser finalmente aceito pela personagem que criou, a doce e ingênua Sofia. Para configurar seus sonhos matrimoniais, recorrerá ainda uma vez aos livros, provavelmente aos livros da biblioteca legada pelo amigo Quincas Borba. Torna-se leitor de romances ambientados na corte francesa. Folheia o almanaque de Laemmert. Por vezes, com lápis e papel, cria um personagem fidalgo, que em sua fantasia é ele mesmo, pronto a pedir a mão da adorada Sofia. É o que nos conta Machado de Assis com estas palavras:

 

"Ultimamente, [Rubião] ocupava-se muito em ler; lia romances, mas só os históricos de Dumas pai, ou os contemporâneos de Feuillet [...]. Arriscava-se a algum mais, se lhe achava o principal dos outros, uma sociedade fidalga e régia.

 

[...] Naquele dia e nos outros, compôs de cabeça as pompas matrimoniais, os coches - se ainda os houvesse antigos e ricos, quais ele via gravados nos livros de usos passados. [...] Em verdade, as noivas que apareciam ao lado do Rubião, naqueles sonhos de bodas, eram sempre titulares. Os nomes eram os mais sonoros e fáceis da nossa nobiliarquia. [...] Rubião apanhou um almanaque de Laemmert, e, entrando a folheá-lo, deu com o capítulo dos titulares. [...] Às vezes pegava da pena e de uma folha de papel, escolhia um título moderno ou antigo, e escrevia-o repetidamente, como se fosse o próprio dono e assinasse alguma cousa:

 

[...] Marquês de Barbacena.

 

[...] Daí a jerarquia das noivas. O pior é que todas traziam a cara de Sofia"21.

 

Rubião lê com tal intensidade que bem se poderia dizer, com Machado de Assis, "que acabou por escrever todos os livros que lera" e que "se teve por autor de muitas obras alheias"22. Não é de admirar, portanto, que Sofia se tornasse, a seus olhos, a prometida do imperador francês, de Napoleão III, que é Rubião mesmo. Surpreendendo a sós a mulher amada, Rubião se lhe apresenta como o monarca enamorado23. Os jornais, entretanto, trazem notícias da guerra franco-prussiana e dos reveses de Napoleão III. Mas Rubião, a essa altura, era mestre consumado em fazer leituras segundo a fantasia. As derrotas do imperador lhe parecem vitórias suas. Diz o romance: "Quando as malas da Europa chegavam cedo, Rubião saía de Botafogo, antes do almoço, e corria a esperar os jornais [...]. Quaisquer que fossem as notícias, dava-lhes o sentido da vitória. Fazia a conta dos mortos e feridos, e achava sempre um grande saldo a seu favor"24.

 

É nesse momento de glória que se cumpre a profecia do amigo filósofo: Rubião finalmente entende com perfeição as doutrinas que antes lhe haviam parecido obscuras, "teorias que ele não entendera, quando lhas ouvira outrora, em Barbacena, e que ora repetia com lucidez, com alma, - às vezes empregando as mesmas frases do filósofo"25.

 

Graças à loucura, Rubião acaba, enfim, identificado com Quincas Borba, por um processo análogo ao da quixotização de Sancho. E, no final do romance, em seu momento de agoniza, é mais uma vez o vulto de Dom Quixote que Rubião desponta:

 

"Poucos dias depois morreu... Não morreu súbdito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça - uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de diamantes e outras pedras preciosas"26.

 

Mais etérea que a bacia transformada em elmo de Mambrino, a inexistente coroa cingida pelo louco traz para junto de seu leito de morte a sombra gloriosa do Quixote. Do mesmo Quixote que já havia presidido, como livro de cabeceira, aos últimos dias do filósofo Quincas Borba. Loucos, o filósofo e o discípulo, por enamorados de palavras escritas: palavras de um manual de filosofia, de um bilhete sedutor ou de um almanaque aristocrático. Loucos, como antes deles o Quixote, enamorado das páginas de seus livros de cavalaria. Assim, ao criar Rubião e seu mestre, leitores enamorados e loucos sublimes, Machado de Assis revela seu amor pela obra imortal de Cervantes, a obra que Quincas Borba definiu como "eterna e bela, belamente eterna".

 


Notas

(1) Quincas Borba, cap. CXII, p. 738 (Machado de Assis, Obra Completa, vol I). No presente estudo, o romance Quincas Borba (QB) e as demais obras de Machado de Assis se citarão pela seguinte edição: Machado de Assis, Obra Completa (OC), Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, 3 vols.

(2) "Aquiles, Enéias, Dom Quixote, Rocambole"; OC, III, p. 358

(3) Cfr. os capítulos finais de Memórias Póstumas de Brás Cubas, especialmente os cap. LIX, XCI, CIX, CXVII e CLIX. (OC, vol. I).

(4) QB, cap. IV, p. 644.

(5) QB, cap. IV, p. 645.

(6) QB, cap. V, p. 646.

(7) QB, cap. VI, p. 648.

(8) Ibid.

(9) Ibid.

(10) QB, cap.VI, p. 649.

(11) QB, cap. IV, p. 645.

(12) QB, cap. VI, p. 648

(13) QB, cap. V, p. 645

(14) cfr. Memórias Póstumas de Brás Cubas, cap. CLIX (OC, vol. I, p. 638).

(15) QB, cap. X, p. 651.

(16) QB, cap. XV, p. 654.

(17) QB, cap. XI, p. 653

(18) QB, cap. XXXIII, p. 667.

(19) "António José" (OC, vol. II, p. 731).

(20) QB, cap. LXVII, p. 699-700.

(21) QB, cap. LXXX, p. 712; cap. LXXXI, p. 712; cap. LXXXII, p. 714.

(22) QB, cap. CXIII, p. 738-739.

(23) Cfr. QB, cap. CLIII, p. 771-774.

(24) QB, cap. CLVI, p.774.

(25) QB, cap. CLVI, p. 775.

(26) QB, cap. CC, p. 806.