A Intervenção do Poder Público
na Organização Sindical: Sentido e Alcance
da Vedação Constitucional

 

 

Maria Cristina Mattioli
Professora visitante da Universidad de Murcia

LL.M’94 (HLS)

 

Inegavelmente, pode-se afirmar que as imagens do Estado Moderno estão mudando. A propósito, vale dizer que, o comunismo russo acrescentou às suas cores, o vermelho e o azul (1); o muro de Berlim tinha estruturas de vidro e o bem estruturado estado de bem-estar social alemão está entrando em colapso; os países do leste asiático, embora tenham sustentado crescimento elevado do PIB (cerca de 9% a 11% ao ano), têm demonstrado que, em grandes ocasiões, o barateamento da mão-de-obra prova a redução de custos, fazendo «vistas grossas» ao dumping social. No Brasil, é claro, a situação não poderia ser diferente.

 

Emergindo de um parlamentarismo oligárquico, o populismo de Getúlio Vargas, na década de 30, incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro conceitos e institutos decorrentes do fascismo mussoliniano, trazido da Itália.

 

No afã de introduzir no país a idéia de Estado Totalitário, a era Vargas foi responsável pela criação de mecanismos jurídicos aptos a eliminar a luta de classes e desmobilizar a classe trabalhadora, através de pressupostos ideológicos quase socialistas que, em termos de desenvolvimento do processo produtivo, «arrepiariam» Marx.

 

Neste sentido, nada mais coerente do que introduzir a idéia do «sindicato corporativo», atrelado ao Estado, sem poderes de representação efetiva e, desde o seu início, já destinado à representação legal de

 

 

«categorias» (criação do regime corporativista italiano) e que, ao nosso ver, refletiam a divisão de classes no trabalho - taylorismo - provocando mão-de-obra desqualificada.

 

Evidentemente, esta forma de conduzir as relações de trabalho no país, foi materializada na Constituição Federal de 1937 e, dentro deste quadro paternalista, os Sindicatos nasciam, cresciam e extinguiam-se dentro do Estado, sem o mínimo de liberdade para sua criação, organização e desenvolvimento. Seu funcionamento dependia de autorização (Carta Sindical expedida pelo Ministério do Trabalho); seus estatutos eram modelos previamente designados; sua base territorial e sua representatividade estavam pré-estabelecidas (unicidade sindical e representação por categoria); o Estado poderia nele intervir sempre que sua ação sindical fosse contrária à política vigente.

 

Esta estrutura foi mantida até a promulgação da Constituição Federal de 1988, ora vigente, quando estabeleceu-se que:

 

«É livre a associação profissional ou sindical, ... observando que a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical» (art. 8o., I).

 

Todavia e muito embora se diga que a lex fundamentalis em vigor introduziu o princípio da liberdade sindical em nosso sistema, não é ela plena e absoluta, encontrando sérios limites na própria Carta Magna.

 

Com efeito, o que o constituinte pretendeu, foi exatamente deixar «livre» para a entidade sindical, sua criação, composição e extinção, dentro da conformidade do direito privado. Assim, embora para sua fundação não mais seja necessária a famigerada autorização do Estado, através da Carta Sindical, certo é que ainda manteve institutos que limitam seu campo de atuação, tais como:

 

 

a) a contribuição sindical compulsória;

 

b) a representação por categoria;

 

c) a base territorial não inferior ao município;

 

d) o enquadramento sindical.

 

Ora, ao determinar que ainda vigoram os princípios da unicidade sindical e, principalmente, a contribuição sindical compulsória, o Estado não outorgou ampla autonomia sindical coletiva às partes.

 

O princípio da liberdade sindical, insculpido no caput do dispositivo constitucional sub examine, conflita com os ditames do art. 2o. da Convenção n. 87, da OIT, que assim preceitua:

 

Art. 2o. Os trabalhadores e os empregadores, sem distinção de qualquer espécie, terão direito de constituir, sem autorização prévia, organizações de sua escolha, bem como o direito de filiar a essas organizações, sob a única condição de se conformar com os estatutos da mesma.

 

Seguindo esta esteira, forçoso é concluir que o art. 520, da CLT, bem como o seu art. 558, não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, art. 8o., I, e estão contrários à regra do dispositivo supra, embora referida convenção ainda não tenha sido ratificada pelo Brasil(2).

 

Portanto, diante deste quadro, o «registro no órgão competente», de que trata o artigo constitucional em apreço, refere-se ao registro junto ao cartório das pessoas jurídicas, de ordem privada, daí porque poder-se-ia entender como inconstitucionais as IN 03/94 e IN 05/90, por exemplo.

 

Por outro lado, e tendo em vista a obrigatoriedade da observância da representação por categoria (uma aberratio dentro do pluralismo político que se instaurou no país com a Constituição Federal de 1988), que acarreta observância ao enquadramento sindical, o Registro ou o Cadastro das Entidades Sindicais junto ao Ministério do Trabalho, não constituiria limitação à liberdade de associar-se, por tratar-se de ato vinculado, de estreito controle de legalidade da criação de entidade sindical, na mesma base territorial e representante da mesma categoria (não se deve olvidar que, para alguns, a criação de vários sindicatos na mesma base seria possível; entretanto, a representação seria conferida a apenas um).

 

Destarte, o sentido e o alcance da interpretação do art. 8o., I, da Constituição Federal de 1988, devem ser examinados à luz do sistema que ainda vigora no país, ou seja, de autonomia coletiva limitada e não plena.

 

A conservarem-se tais institutos - resquícios do corporativismo - e a ratificar-se a Convenção n. 87, da OIT, seria ela, ao nosso ver, inconstitucional, de acordo com orientação emanada do art. 19 da Constituição da própria OIT e à luz das regras emanadas pelo Supremo Tribunal Federal, através de suas decisões, acerca da inserção de normas internacionais em nosso Direito interno.

 


1. Convém lembrar que o colaborador na reeorganização do modelo de relações do trabalho na Rússia é o Americano Jay Siegel, Professor da Kennedy School of Government, da Universidade de Harvard, EUA).

2. Ainda, por esta mesma linha de raciocínio, poderíamos acrescentar que o art. 528, da CLT também se mostra contrário ao art. 4o. da Convenção n. 87, da OIT.