Totalitarismo das Coisas

 

Sylvio Roque de G. Horta
(Mestre e doutorando pela FEUSP)
sylviogh@usp.br

 

Uma estrutura impessoal avança no mundo e este artigo busca fazer uma primeira análise - a partir da perspectiva filosófica da razão vital - dessa situação.

 

Inseridos no cotidiano, há tanto a fazer, tanto a assimilar. Desde que despertamos, os jornais nos trazem notícias em enorme quantidade. Telefonemas, secretária eletrônica, e-mails, cartas, contas a pagar. Automóveis, trânsito, poluição sonora, visual, auditiva, intelectual. Conserto do carro, seguro contra roubo, gasolina. Computador, muito a aprender, muito tempo a perder. Comprar geladeira, fogão, microondas... Discos e livros que são tantos e tantos que tudo parece se dissolver na quantidade. Não há tempo suficiente para se ler, se ver, se ouvir. Nada é suficientemente saboreado para que se possa realmente compreender. Televisão, novelas, canais a cabo, línguas de todo o mundo, notícias que vêm de todos os lugares, misturando-se casos banais, assassinatos e guerras.

 

Temos que estar sempre alertas para não nos deixarmos levar pela secura do mundo. Não para fugir dele, mas para não sucumbir ao seu princípio. Estar no mundo e não ser apenas outra coisa nele, pois sempre há a possibilidade de nos desumanizarmos, de nos deixarmos absorver pelas coisas!

 

Isso tudo talvez nos seja óbvio. Em grande parte se trata de coisas visíveis, audíveis, palpáveis. Não fica difícil vermos a diferença entre elas e nós. Mais sutis são as interpretações que fazemos da nossa própria realidade. Pensamos nossa realidade pessoal como se fosse coisa, mesmo quando nos damos conta de que somos diferentes de tudo o que há a nossa volta.

 

O caso paradigmático é Descartes. Reconheceu a singularidade da sua própria realidade, deslocando para o sujeito o foco da filosofia. Fez uma revolução, o que de mais moderno se podia imaginar. Fez questão de negar e até mesmo de ignorar o passado. Contudo, recaiu nele, recaiu na interpretação da realidade como res, substância, coisa. Disse - literalmente - que era uma coisa que pensa. O eu se torna a "coisa que pensa" e o mundo a "coisa espacial". Desde então, a realidade da pessoa humana vem escapando das mãos dos filósofos e dos criadores das novas ciências do homem.

 

Foi o que se deu também com os primeiros teorizadores do liberalismo. O indivíduo acabou reduzido ao psíquico nas infrutíferas tentativas dos empiristas para superar a filosofia idealista(1).

 

O mesmo se passa com o Iluminismo na França. A popularização da filosofia moderna e das teorias científicas da época realçam a interpretação naturalista do homem. Em casos extremos o homem é considerado não mais do que uma máquina. Mesmo aqueles que têm uma intuição profunda do indivíduo, como Rousseau, na hora de fazer suas teorias, cedem ao absolutismo das idéias(2). O século seguinte trará o positivismo, o marxismo, a teoria da evolução. Um se populariza em cientificismo, outro reduz a história e - em última análise, o homem - à economia; e, por último, a biologia reduz a realidade do homem à do seu organismo.

 

Dilthey - o importante mas, infelizmente, pouco lembrado filósofo alemão - reclama, com razão, de que não corre sangue nas veias do sujeito puro do conhecimento, no "eu" dos filósofos. Unamuno, Nietzsche, Freud e muitos outros, irão reivindicar aspectos da realidade humana, mas sempre sendo apanhados em alguma armadilha. Ora se trata de irracionalismo, ora de algum reducionismo.

 

A complexidade da vida é enorme. As suas múltiplas dimensões são interpretadas através de diversas teorias. Cada qual selecionando uma dimensão do todo e tentando derivá-lo daí. Mas por mais que o homem se esforce por acreditar em teorias que fazem de si mesmo e dos outros apenas coisas - moléculas, gens, classe social, psique, etc. -, a realidade, por ser real, persiste... e acabamos vivendo como pessoa e com pessoas. Ao ouvir a batida na porta perguntamos "quem é?" e não "o que é". Sabemos a diferença entre "algo" e "alguém", como nos lembra Julián Marías.

 

Mas, aos poucos, essas teorias - espécie de terrorismo de laboratório - vão surtindo efeito, sedimentando-se em crenças que guiam nossas condutas, colaborando para a degradação da nossa própria realidade e de nossas relações com os outros e o mundo.

 

À filosofia do século XX coube a tarefa de se apropriar da estrutura da realidade humana: eu sou eu no mundo, ou melhor, o meu modo de ser é mundano. Não estar espacialmente no mundo, mas estar vivendo nele. O estar espacial é uma abstração do estar vivendo. E vivendo concretamente como homem ou mulher. E mais ainda, como alguém único, diferente, em confronto, agradável ou não, com tudo o que há.

 

Há um trecho de um ensaio do Prof. Roque Spencer Maciel de Barros que capta, dentro do possível, essa intuição da realidade única que somos cada um de nós:

 

"Quero referir-me a uma experiência, entre sentimental e mental, que marcou minha forma de conceber o mundo e, especialmente (uso uma expressão do título de um ensaio de Max Scheler), 'o posto do homem no cosmos'. Foi pouco depois de concluir o curso colegial e de prestar o vestibular para o curso de Filosofia, portanto com minhas reflexões heracliteanas bem vivas e presentes. Com uns amigos, esperava o resultado do exame vestibular num sítio de Caieiras, local rústico em que a natureza falava ainda muito mais do que a civilização. Era um fim de tarde, uma tarde de verão, e eu, sozinho, vagueava por uma trilha aberta em meio de um grande arvoredo, que se esparramava naturalmente, sem ser dominado por algum trabalho humano que o disciplinasse e lhe desse a forma de um bosque cultivado. Creio que ali tive aquela minha 'intuição original' de que fala Bergson e que não é privativa dos grandes filósofos, mas creio eu, de todos aqueles que, à medida de suas forças, se dedicam à tarefa de filosofar. De repente, no esplendor da tarde de verão, eu me senti uma parte ínfima de uma imensa natureza que me tragava e com a qual eu respirava e vivia, compartilhando a imanência de todas as coisas na unidade de uma coisa única. Mas, ao mesmo tempo, de forma ambígua, eu, ser consciente que tinha diante de mim o espetáculo de um mundo que me parecia virgem e como que visto pela primeira vez, sentia-me emergir dessa unidade e separar-me dela de forma irreparável: imanente a ela, eu a transcendia; entre mim e ela era necessária um mediação, mediação que se esboçava já no meu sentimento do mundo e que se clarificava no ato de pensar a própria situação que eu experimentava. Não se tratava, de forma alguma, de algo como corpo e alma, mas de uma unidade que, ao fazer-se consciente, como que me duplicava. Era o meu ser íntegro, corpo e pensamento, que, imanente ao mundo, ao mesmo tempo o transcendia - e, nessa transcendência, que me revelava o meu estar no mundo sem me confundir com ele, sem ser o mundo, eu sentia o imenso abismo da liberdade, como algo que brotava do simples fato de ser eu diante do cosmos e de saber que o era. Talvez me faltassem essas palavras com que descrevo agora essa 'intuição original' (brotada espontaneamente em mim e não apreendida em algum livro) - e nem sei se as que agora digo dão conta dessa situação. O que sei é que ali eu definia, creio que para sempre, a minha visão do 'posto do homem no cosmos'."

(Recordação de Heráclito, in Razão e Racionalidade, T.A. Queiroz, 1993, pp. 211-12)

 

Mas não nos deixemos distrair. Não caiamos no mesmo erro de Descartes que ao encontrar a si mesmo, coisificou-se. A vida não é uma coisa da qual faça parte o cosmos e o homem. A vida não é coisa nenhuma. É drama. Está acontecendo. As coisas, o homem, nós mesmos, participamos desse drama como protagonistas e contracenamos com outros atores, personagens e cenários. Mas acostumados a lidar com as coisas, temos dificuldade em pensar algo que não o seja. Se a vida não é coisa nenhuma, o que é? E o que é mais grave, quem pode afirmar que ela seja? Se por ser entendermos o mesmo que a nossa tradição filosófica entende, a vida definitivamente não só não é coisa nenhuma, como não é.

 

Há duas tendências antagônicas no homem: de um lado, unidade com o cosmos, do outro, separação irreparável. O desejo de poder voltar a estar em harmonia, em unidade com a realidade, desfazer-se nela, ser guiado pela espontaneidade cósmica como um animal que vive a partir dos instintos. Mas vê-se também que estamos irremediavelmente separados da natureza.

 

Voltar para o colo da mãe natureza, para o útero materno; entregar-se ao Estado paternalista, às drogas, à atividade frenética que nos dissolve nas coisas e nos assuntos. São formas de regressão, formas de fuga da responsabilidade de sermos livres e ao mesmo tempo dependentes.

"O homem - os homens em geral e cada homem em particular - é uma ruptura na continuidade do mundo natural...(3), o homem, contudo, só atinge o seu estatuto espiritual à medida que se reconhece distinto do mundo e dele se separa, num ato certamente doloroso, tão doloroso que, provavelmente, é o fundamento da noção de 'queda' ou de 'pecado', que encontramos persistentemente no pensamento arcaico e que continua a obcecar o homem de todos os tempos (...) eliminar essa ruptura, essa divisão, recuperar a unidade caracterizada pela indiferenciação - eliminando-se a consciência de si e, com ela, as decisões, o risco, o desconhecido, a insegurança, o medo, com o retorno ao 'todo primordial' - é uma tentação que freqüenta o homem arcaico e continua a rondar o homem 'civilizado'." (R. S. Maciel de Barros, O Fenômeno Totalitário, Edusp/Itatiaia, 1990, pp. 16-17)"

 

O totalitarismo político seria uma das concretizações desse totalitarismo mais genérico, talvez a manifestação que melhor nos indique a sua índole. O liberalismo, por sua vez, pretende ser a expressão da outra dimensão da vida humana, daquela que se afirma sobre o impessoal, sobre o coletivo. Ortega y Gasset, nesse sentido, sem dúvida, um liberal, dizia que o nosso destino concreto é reabsorver a nossa circunstância, isto é, humanizá-la, torná-la pessoal. Daí sua conhecida frase: “eu sou eu e minha circunstância e se não a salvo, não me salvo a mim”.

 

O liberalismo, como forma histórica concreta, é - ou pelo menos era - um fenômeno típico do ocidente, com raízes que vão longe em sua história, mas que começou a ganhar sua forma concreta na Europa do século XVI e XVII. Mais tarde, aliado com a técnica científica, promoveu uma mudança radical na história mundial. Continua, atualmente, a se difundir pelo mundo, enquanto os regimes totalitários ou se esfacelaram, ou estão se abrindo aos poucos para formas mais liberais de convivência.

 

Junto com essa consolidação da ciência, da técnica, do liberalismo foi se dando uma paganização do mundo, ou melhor, uma dessacralização. O homem, confiando em sua razão, foi deixando Deus de lado. Ortega y Gasset fala em "época dos livros" (ver o seu Missão do Bibliotecário):

“Até o Renascimento, a necessidade do livro não era socialmente vigente (...) nessa época passa a ter o caráter de fé, fé no livro. A revelação, o que Deus havia dito e ditado ao homem, perde sua eficácia e começa-se a esperar tudo daquilo que o próprio homem pensa com sua razão e, conseqüentemente, daquilo que o homem escreva”. “Pois bem; a Revolução Francesa deixara transformada a sociedade européia detrás de sua melodramática turbulência. À sua antiga anatomia aristocrática, sucedeu uma anatomia que se auto proclamava democrática. Esta sociedade era a derradeira conseqüência daquela fé no livro que o Renascimento havia sentido. A sociedade democrática é filha do livro, é o triunfo do livro escrito pelo homem escritor sobre o livro revelado por Deus e sobre o livro das leis ditadas pela autocracia. A rebelião dos povos havia sido feita em nome de tudo isso que se chama razão, cultura, etc.”. (...) Sem ciências, sem técnicas, essas sociedades de alta densidade populacional e com tão alto nível de vida não podem existir materialmente. E, menos ainda, poderiam viver moralmente sem um grande repertório de idéias. A única possibilidade, por vaga que fosse, de que a democracia chegasse a ser efetiva, consistia em que as massas deixassem de sê-lo por meio de enormes doses de cultura, entenda-se, cultura autêntica, que brotasse com evidência de cada homem e não meramente recebida, ouvida ou lida”.

 

Daí a delicadeza da nossa situação, o liberalismo democrático(4) exige que o homem assuma sua responsabilidade num mundo onde as vigências religiosas e morais em geral perderam o vigor. Isso, conseqüentemente, exige um nível de desenvolvimento intelectual e moral que ainda está longe de ser alcançado e como as técnicas para se cuidar do humano são pouco desenvolvidas e carregam os vícios naturalistas(5), pode-se imaginar a fragilidade da situação em que nos encontramos.

 

O liberalismo esteve desde o seu início vinculado ao pensamento econômico e hoje - e aí vejo o problema - identifica-se exclusivamente com ele. Mas o que realmente o caracteriza é algo mais profundo, mais essencial, trata-se de uma postura frente à realidade. A liberdade do indivíduo, o seu direito à privacidade, à tolerância... e isso têm um papel mais decisivo para a economia de um país do que geralmente se reconhece. No meu modo de ver, o desenvolvimento econômico de uma nação se deve principalmente à riqueza vital - no sentido pleno, de vitalidade, de capacidade de imaginação, de criatividade etc. das pessoas e da sociedade - que o país possui. E é por prevalecer uma postura liberal que se tomam medidas liberais na economia.

 

Com a criação de uma sociedade de massas, sem o incremento necessário de educação da mesma, onde tudo gira em torno da economia e do consumo, está se realizando uma enorme socialização do homem. Uma "coisificação" do sujeito que é reforçada por uma interpretação científica do homem e ainda mais por um tratamento da pessoa como número, como fator econômico, como mecanismo genético, psicológico, social etc. Chamo a isso de "totalitarismo das coisas", a vertente do liberalismo que, junto com outras correntes de pensamento, acaba por ser totalitária - por querer fazer do que é parte, o todo.

 

Os regimes liberais democráticos exigem um equilíbrio bastante complexo, que corre sempre o risco de desandar a qualquer instante. Justamente, por ser a realidade humana um drama e não coisa, nada garante que o liberalismo - ou mesmo a nossa capacidade de individuação -, seja bem sucedido. O resultado é que o liberalismo acaba sendo visto como bicho papão, representante dos exploradores das classes oprimidas, como incentivador da competição impiedosa, do capitalismo selvagem, do desrespeito ao indivíduo! Mascara-se o fato de ter sido justamente o liberalismo o sistema - mesmo com seus graves defeitos - que mais elevou o nível de vida das pessoas nos diversos países que o experimentaram. E também o sistema que permitiu a maior liberdade para as pessoas. E essa identificação do liberalismo com o "mal" dá força a movimentos que nos levam a formas políticas totalitárias de uma espécie bem pior do que a que estamos criticando.

 

Isto vale principalmente para países como o Brasil, que não têm uma cultura liberal bem arraigada e que, por isso, têm que se esforçar bastante para criá-la. Cada um - em sua própria área - terá que colaborar com a educação das pessoas e com a defesa de uma postura liberal frente à vida. Trata-se de se cultivar um liberalismo ético, que vê a teoria liberal na sua perspectiva justa, ampla, que abarca a realidade íntegra do homem (o que significa que também serão levados em conta os aspectos econômicos, é claro).

 

Acredito que a fundamentação teórica do liberalismo, por exemplo, poderia ser feita a partir dos conceitos criados por Ortega e Marías, na perspectiva da razão vital, que parte da realidade radical, que não é o ser, nem a natureza, mas a nossa vida, a vida de cada um. Nem o indivíduo atomizado, nem coletivismo, já que "eu sou eu e minha circunstância e se não a salvo, não me salvo a mim".

 


(1). O empirismo que foi uma tentativa de escapar da abstração dos conceitos puros, nunca foi empirismo até as últimas conseqüências. A experiência pessoal - embora a mais importante e radical - nunca encontrou realmente o seu lugar no empirismo, que ficou mais preocupado com as sensações, terminando sempre em alguma forma de psicologismo ou de biologismo.

(2). O caso de Stuart Mill, mais tarde, na Inglaterra é semelhante. Embora seu utilitarismo não chegue, nem de perto, a ser totalitário como o Estado da vontade geral de Rousseau.

(3). Julián Marías define a pessoa humana como alguém corporal. Isto é, não se trata de um corpo e nem de um alguém incorpóreo. Os dois extremos são abstrações, reduções da nossa realidade a algum aspecto seu. É como o caso da mulher grávida que jamais diria: "meu corpo está grávido" mas "Estou grávida", o que não tem nada de espiritualismo. Somos corpóreos, vivemos corporalmente a nossa vida, o que é muito diferente de sermos corpo. Não há necessidade de pensarmos a nossa realidade como espírito ou corpo. A dificuldade surge quando pensamos a realidade como coisa e separarmos a res extensa da res pensante. A nossa realidade não é coisa nenhuma, insisto, é estar vivendo corporalmente, é drama corpóreo.

(4). À idéia do liberalismo veio se juntar à idéia da democracia e somente a combinação de ambos é capaz de nos satisfazer atualmente.

(5). Há um título de um livro de psicoterapia que é bem sugestivo: "Cem anos de psicoterapia... e o mundo está cada vez pior".