Guerra e Paz em Rousseau -
Sobre o Projeto da Paz Perpétua

 

Maria Victoria de M. Benevides
(Faculdade de Educação da USP)

Democrata ou totalitário, revolucionário ou conservador, utópico ou realista - tais antinomias marcam, com incômoda freqüência, a discussão sobre Rousseau e sua obra. Na verdade, o filósofo (pedagogo, romancista, músico, etnólogo, conselheiro político) franco-suíço tem sido mais julgado pelo uso que é feito de seu pensamento do que propriamente pelo conteúdo de suas idéias. A Rousseau se atribui, entre outras inconveniências, a paternidade inglória de alguns dos "piores erros" dos séculos XVIII e XIX, do romantismo em Literatura ao autoritarismo em Política.

 

Mais do que destemperos intelectuais ou justificativas ideológicas, essas "provocações" revelam a dificuldade em se analisar, numa visão global, a obra de Rousseau e sua herança. Inútil insistir, portanto, não ser este nosso objetivo. O que se pretende é situar, em rápidas notas apenas indicativas, algumas concepções de Rousseau ao constatar - e profetizar - a banalidade trágica da constante oscilação dos Estados entre a guerra e a paz.

 

Poucos são os escritos de Rousseau dedicados exclusivamente às condições de paz na sociedade internacional, quer una ou fragmentada. O que desperta a atenção é o entusiasmo quase ingênuo das proposições, paradoxalmente vizinho à veemência das críticas e ao pessimismo inabalável de seus prognósticos. Destaque-se, pela especificidade, a exposição e o julgamento dos projetos de Abbé de Saint-Pierre.

 

De maneira difusa, tais idéias também se encontram nos Discours sur l'Inegalité, nos textos sobre L'État de Guerre e certamente no Contrato Social, sobretudo através das críticas às teses bélicas de Grotius, Pufendorf e Hobbes.

 

Em que pesem as visíveis contradições (já se tornou comum apontar a "inconseqüência" no discurso rousseauniano, da teoria à ação), o pensamento de Rousseau, no campo específico das questões sobre o conflito mundial, revela momentos inequívocos de uma certa ideologia e de uma prática possível, ou pelo menos desejável.

 

É bem verdade que o dizer e o fazer equilibram-se mal em termos de propostas concretas e factíveis; estas se expressam, teoricamente, na linguagem que oscila da admiração moral - embora cética e crítica - aos projetos de paz perpétua de Saint-Pierre e Kant e a contestação, radical, da tese da "guerra de todos contra todos" de Hobbes. Mas a crítica freqüente que aponta, de saída, as contradições e o idealismo das propostas políticas de Rousseau, embora pertinente, peca pelo imediatismo estéril; destrói a raiz das idéias, empobrece a análise.

 

Se o clássico desacordo entre moral e política é assumido por Rousseau como mito ou verdade pouco importa. Dê-se curso à discussão, à leitura. Há que surgir, incompletamente que seja, a passagem da teoria à prática, do ideal à tática. Com razão ou emoção, utopia romântica ou realismo pessimista, impõe-se um certo fascínio nas propostas de Rousseau: simultaneamente sedutoras, pela defesa do homem pacífico na natureza, e inquietantes, pela acusação do homem bélico na sociedade. Há que perceber, numa análise que foge aos limites destas notas, de que maneira - e se - coexistem no Rousseau daqueles textos o Direito das Gentes e um possível embrião do Direito Internacional. Ou em que medida se dá a passagem da vontade geral à vontade universal, da circunstância à norma, da barbárie ao Direito.

 

Rousseau e os projetos do Abbé de Saint-Pierre

 

A Paix Perpétuelle do Abbé de Saint-Pierre (1658-1743) foi originalmente publicada em 1712, ano da Paz de Utrecht, e seu Discours sur la Polysynodie em 1719, durante a Regência após a morte de Luís XIV. Re-escritos por Rousseau em 1756, sob a forma de Extraits, dele mereceram minuciosas críticas (os Jugements, publicados somente em 1782) sendo respeitados, no entanto, pela denúncia, partilhada, do absurdo imoral das guerras e dos males de um Estado forte e centralizado. Os projetos de Saint-Pierre iluminariam, sem dúvida, a teoria de Rousseau sobre a Federação assim como a tese de Kant sobre a Liga Mundial para a paz.

 

O projeto de paz perpétua de Saint-Pierre parte de uma visão histórica bastante cética quanto às possibilidade de "fraternidade" entre os povos europeus, apesar de reconhecer os laços profundos que os unem contra o exterior, a "barbárie".

 

Essas ligações seriam, na realidade, fonte de funestas divisões; a política dos tratados (tréguas passageiras!) é sábia no papel, porém dura e cruel na prática. Mas essa união imperfeita é ainda melhor do que a desunião tout court; as imperfeições do meio social trazem em si, dialeticamente, os gérmens da perfeição.

 

Trata-se, portanto, de transformar em paz perpétua um estado de guerra latente. Inexistindo um Direito Público comum à Europa, valerá sempre o direito do mais forte. Para uma união sólida e duradoura Saint-Pierre propõe a confederação dos príncipes europeus baseada na interdependência de seus membros. Deslumbra-se Saint-Pierre com a imagem de uma fortaleza européia contra toda e qualquer cobiça bárbara; substitui, como uma projeção da tentação capitalista, a arte da guerra pela arte do comércio. E, na sua visão ao mesmo tempo idealista e utilitária, a paz seria função da "sabedoria decorrente da lógica dos interesses de todos".

 

A proposta concreta de Saint-Pierre prevê a criação de Conselhos Deliberativos Permanentes - o Polisínodo - como a formação mais natural, justa e útil para um governo pluralista com vistas à paz perpétua. O Rei precisa de ministros? Componha-se, então, um governo misto, monárquico na decisão, republicano na deliberação. A virtude democrática dos Conselhos estaria assegurada pela composição através do voto, do sistema de mérito, da rotatividade no comando. Revolucionário para a época, ou apenas ridículo para o cinismo dos poderosos, Saint-Pierre não considerava quimérico o seu projeto, mas essencialmente lógico, pois dependeria de uma feliz combinação entre a vontade do soberano e a consciência de seus reais interesses. Assim, sua não-adoção revelaria a insensatez dos homens, e não a inviabilidade do projeto. Quase resignado, Saint-Pierre se compraz no aforismo de que é uma espécie de loucura ser sensato entre os loucos.

 

Implacável será a crítica de Rousseau, embora generosa às virtudes do sábio. Prevalece seu pessimismo radical ao insistir na tendência natural das monarquias para as aristocracias e destas para os governos despóticos e corruptos. A ambição - não necessariamente fértil, como supunha Saint-Pierre - dos soberanos será sempre dupla: expandir sua força externa ao mesmo tempo em que torna mais absoluta sua dominação interna.

 

Quanto à possível vigência de um Polisínodo, indaga Rousseau como subordinar, na prática, o Executivo ao Legislativo, como supor, em todas as cabeças, a sabedoria que consolidaria o consenso? Ressalta, igualmente, a precariedade dos benefícios advindos da "arte do comércio", pois quando as vantagens tornam-se comuns a todos, a ninguém se apresentam como reais. Conclui Rousseau que o Polisínodo seria o pior dos Ministérios, pois propiciaria abusos em nome do bem público: a força de ser bom senador, torna-se mau cidadão!(1) Parece evidente a denúncia à perspectiva do pré-burguês, aristocrático, oligárquico.

 

A leitura isolada de um e de outro pode oferece a imagem de projeções igualmente idílicas (ou maniqueístas) sobre o bem e o mal. Mas ao se aceitar a crítica de Rousseau a Saint-Pierre há que assinalar, tam-bém, uma diferença essencial entre ambos: Saint-Pierre situa a possibilidade de paz no plano das relações internacionais, considerando os Estados como entidades abstratas, no sentido de independentes de sua estrutura interna; para Rousseau, ao contrário, as relações entre os Estados vão depender, sempre, da forma como o poder é exercido dentro de cada Estado.

 

Assim resgata Rousseau o conceito de soberania interna como condição sine qua non para a paz externa. Estaria aí, talvez, a nota mais pessimista que prevê a correspondência de uma política de guerras e conquistas, no plano externo, ao progresso do despotismo, no plano interno. Comprove-se: ..."d'un coté la guerre et les conquêtes, et de l'autre le progrès du despotisme, s'entraident mutuellement... les princes conquérants font autant la guerre à leurs sujets qu'à leurs ennemis..."(2). Expansão e tirania, eis aí os dois processos em alimentação recíproca, em intensidades paralelas. Estaria aí, também, a raiz da corrente jacobina da política externa, cujo maior representante será Lenin: o imperialismo que denunciará apresenta-se como conseqüência da armadura interna do país e, principalmente, da atuação de suas classes.

 

Rousseau, Hobbes e Kant

 

De maneira inequívoca situa-se Rousseau como antítese de Hobbes e do Estado absolutista. Observador de guerras civis, Hobbes percebe na criação de um Estado forte e centralizado o recurso extremo de proteção e defesa da sociedade contra a inexorável catástrofe da guerra de todos contra todos.

 

No modelo hobbesiano a luta competitiva é a norma, num quadro de referência que se queria de lei e de ordem, mas onde tudo deriva da concentração de poderes. A igualdade de todos decorre, num paradoxo apenas aparente, da insegurança comum. O equilíbrio dos poderes, defendido por Hume, é substituído pelo poder hegemônico que garante a estabilidade necessária à paz. O perigo do despotismo, para Hobbes, é ainda um mal infinitamente menor do que "o reino da força e da fraude, do lobo e da serpente, que tornara insuportável a vida do homem no estado da natureza"(3).

 

Para Rousseau, ao contrário de Hobbes, a guerra não é inerente à natureza do homem, mas conseqüência da vida em sociedade, que aguça a competição e conduz ao conflito. A criação de um Estado, portanto, não reduzirá as tensões ou a violência beligerante; um Estado forte ameaçará a paz pela compulsão da conquista, um fraco tornar-se-á tentação para a cobiça alheia...(4).

 

Assim, o equilíbrio não será automático, mas difícil, laborioso. A interdependência econômica, supostamente garantia de paz, terminará por gerar mais tensões do que entendimentos. E das alianças, do excesso de proteção, não nascerá a paz, mas a guerra.

 

Na oposição Hobbes-Rousseau dois pontos merecem especial atenção:

 

O primeiro diz respeito à impotência de uma "vontade geral" frente às desigualdades inevitáveis entre sociedades diversas e a expansão ilimitada do Estado. Lembre-se que a vontade geral de Rousseau só é geral, na realidade, para uma determinada sociedade, mas é particular para as demais. A passagem da vontade geral - que não é a soma das vontades individuais, não se confunde com a vontade coletiva - para uma vontade universal não pode deixar de levar em conta as desigualdades inerentes à própria desigualdade nos poderes, entre os Estados. As alianças e os tratados, se não as aprofundam, pelo menos as perpetuam.

 

Quanto ao segundo ponto, trata-se do problema da ausência de auto-controle no interior dos Estados, e de seus princípios expansionistas. O Estado não é um ser natural, com limites próprios e definidos, mas um ente artificialmente "construído", que tende a aumentar e multiplicar seus controles e poderes (raiz da tentação totalitária?), tornando-se, efetivamente, o temível Leviatã. Essa tendência gera, inevitavelmente, a rivalidade entre os Estados que, em nome da segurança e da conservação, crescerão sem cessar, às custas, inclusive, dos Estados vizinhos. Rousseau contesta, portanto, "l'odieux tableau" pintado por Hobbes da guerra de todos contra todos; pois não existiria guerra entre indivíduos, mas entre Estados, a guerra de potência a potência(5).

 

Contra um certo "amoralismo político" de Hobbes erguem-se Rousseau e Kant, pois para ambos a guerra é, acima de tudo, absurdamente imoral.

 

Mas para Kant, ao contrário de Rousseau, a luta entre o egoísmo e a moral é uma constante na própria natureza do homem, e não uma conseqüência da vida em sociedade. Esta seria a salvação do homem, a condição de seu progresso moral, e não causa de sua queda. Assim, para Kant, de nada adiantaria construir uma sociedade "perfeita", um Estado "ideal", se o homem permanece intrinsecamente egoísta e então, propenso ao conflito pela competição.

 

No nível intersocietal essa patologia poderia ser sanada pelas virtudes da interdependência, que consolidaria a união em torno de interesses comuns de proteção, defesa e, principalmente, comércio.

 

Kant recupera a "arte do comércio", sugerida por Saint-Pierre em substituição à arte guerreira e propõe a criação de uma Liga Mundial, alicerçada na interdependência natural, necessária, benéfica. Um governo mundial seria, portanto, um imperativo moral para os objetivos da paz perpétua, de certo modo o "destino manifesto" da sociedade internacional.

 

Rousseau renega esse “traço burguês” da perspectiva do comércio como linguagem de paz(6), surpreendentemente presente nas propostas de Saint-Pierre a Kant. Considera a interdependência econômica nefasta e sequer admite-a como um “mal necessário”, como uma contingência histórica, mas sempre como uma fatalidade. Isso porque interdependência engendra dependência e esta só agravará as tensões entre as sociedades ao destacar, inevitavelmente, as desigualdades de ordem natural e física (recursos) e de ordem moral e política (comandos, normas e valores). Rousseau duvida da inocência de um governo mundial como a expressão de um ideal democrático voltado para a paz.

 

Caso existisse, tal governo se tornaria, rapidamente, a manifestação insofismável de uma vontade imposta – obviamente a do mais forte. Numa projeção futurística, como sugere Hoffmann, esta vontade seria, também, a vontade dos tecnocratas, os verdadeiros executivos numa situação de vazio político(7).

 

À interdependência de Kant opõe-se o isolamento de Rousseau. Ambas utópicas, a sociedade ideal para Rousseau seria fechada e para Kant tão aberta quanto possível. Uma supõe a coexistência no isolamento, outra a cooperação no engajamento. Em outros termos, seria a passagem da norma negativa de abstenção à norma positiva de participação. Mas Rousseau percebe, também, que a própria constituição de uma sociedade através do contrato social engendrará, necessariamente, novas sociedades. Impossível, pois, a abstenção total, o isolamento romântico.

 

É a partir dessa constatação que se coloca a exigência do consenso para consolidar um possível Direito Internacional como garantia de paz. Esse consenso só seria válido e útil se decorrer da consciência que cada Estado tiver da necessidade e conveniência em acatar normas comuns, referentes a interesses comuns. Este ponto remete diretamente às propostas concretas de Rousseau.

 

Rousseau e o ideal grego redivivo: a federação de pequenos Estados

 

O polisínodo é inviável, o Estado absolutista um monstro, a Liga Mundial uma utopia. O retorno ao estado perfeito da natureza, impossível. E então, diria Rousseau, já que o homem é fadado a viver em sociedade, que o seja em sociedades pequenas e democráticas. Ou, pelo menos, tão pequenas e democráticas quanto possível. Essa medida do possível seria dada, para cada sociedade, pela feliz combinação entre soberania – frente às demais sociedades – e legitimidade de comando, frente a seus próprios cidadãos.

 

A proposta de Rousseau consiste na formação de uma federação de pequenos Estados com fins lucrativos, isto é, uma união de Estados cada qual soberano internamente, mas armado, em conjunto, contra a agressão externa.

 

Trata-se, na realidade, de uma confederação, cujos laços são mais fracos que os de um Estado hobbesiano e mais fortes que um Tratado ou uma Aliança. Inspira-se Rousseau nos exemplos da Liga Aquéia, na União de Cantões Suíços da sua época e na América de Tocqueville. Insiste na soberania e no ideal grego da primazia política interna e propõe a extensão, às diversas sociedades, dos direitos que o Contrato Social já legara ao indivíduo, contra a tirania dos grandes Estados com tendências hegemônicas. O conflito não seria definitivamente aniquilado, mas as tensões sensivelmente reduzidas.

 

O Estado ideal de Rousseau será, portanto, pequeno (um território muito grande diminuiria as possibilidades de autonomia real) e governado por uma vontade geral, indivisível(8). Este Estado é definido, na linha de Montesquieu, como uma união de forças e de vontade, que consolidaria a vontade geral, consensual. A submissão recíproca entre os Estados se expressaria num pacto de associação, e não de sujeição. Vale lembrar, aqui, que tão violento quanto o ataque a Hobbes é a recusa de Rousseau em aceitar os postulados de Grotius sobre os direitos de paz e guerra. Além da crítica feroz aos métodos de trabalho de Grotius – “un sophiste payé” – Rousseau acusa a imoralidade na justificação do despotismo através dos pretensos direitos de conquista e de dominação. À alegada legitimidade de um pacto de sujeição, análogo à alienação dos direitos individuais pela relação senhor-escravo, Rousseau opõe o pacto social, este desejado e legítimo, do Contrato Social. Esta análise sugere, então, o surgimento da noção de reciprocidade, pela qual as partes descobrem o interesse em acatar uma determinada norma, comum a todos. Não mais a obrigação, pela força, mas a persuasão, pela convicção e partilha dos mesmos valores. Daí a passagem (possível ou apenas utópica?) do Direito das Gentes para um Direito Internacional – e aqui não seria mais um Direito Internacional de Coexistência, mas o Direito Internacional de Cooperação, essencialmente baseado no consenso(9)

 

Diante desta modelar confederação impõe-se a questão de saber como trancher entre dois direitos, ou seja, até onde se estendem os direitos da federação, em conjunto, sem infringir os direitos da soberania interna. Em caso de guerra civil, por exemplo, até que ponto a mediação exercida por outro Estado não engendraria funesta submissão, marcando uma inferioridade e um golpe fatal na soberania? Por outro lado, recusar a intervenção, correndo o risco de submeter-se a um jogo interno ilegítimo, não seria a escolha absurda entre a tirania, porem doméstica, e a justiça, imposta de fora? Como sugere Vaughan, o ideal, na visão de Rousseau, seria a conjugação da potência externa de uma grande nação com a política disciplinada e saudável de um pequeno Estado: "tranquille au dedans, redoutable au déhors"!(10)

 

O ideal dos pequenos Estados revelou-se uma causa perdida. Simplesmente não vingaram. No curso da História não sobreviveram, de qualquer modo, ao impacto da Revolução Industrial, que levou à expansão das fronteiras e à interdependência econômica, e ao fortalecimento dos nacionalismos que acirrou os conflitos externos. As antigas confederações (germânica e suíça) que, de certa forma, teriam realizado o ideal de Rousseau, transformaram-se em fortes Estados, assim como as nações expandiram-se em poderosos impérios. Os Estados ideais de Rousseau são ideais mesmo; se existissem não poderiam, manter a virtú a não ser isolados. E o isolamento contraria a tendência irreversível do desenvolvimento econômico, do "vigor burguês".

 

De duas, uma: a proposta de Rousseau é utópica porque percebe a possibilidade de paz apenas num mundo ideal, logo inexistente, no qual a norma geral não seria desejável nem mesmo necessária, ou porque, ao situá-la num mundo real, constata a inexistência de uma ordem justa que garanta as condições de paz duradoura. A experiência histórica mostra que as desigualdades entre as nações tendem a aumentar, e não a se dissolverem: a desigualdade estimula o conflito e o apetite hegemônico que se revigora, hipocritamente, nos preparativos para a paz. Daí o aparente paradoxo de que a guerra nasce da paz.

 

Uma consideração final: em relação a Grotius, Rousseau teria inovado ao situar o estado de guerra sempre entre Estados, e não entre indivíduos. No entanto, como lembra Hoffmann, se o Estado é a expressão da vontade geral - e não o braço armado do príncipe, do tirano - a guerra entre os Estados seria, também, uma guerra entre populações, entre homens. Nesta mesma linha Rousseau opõe-se aos "cosmopolitismos" admitindo a associação de governos, mas não de povos. Mantinha-se, porém, eqüidistante no revide às teses cosmopolitas e nacionalistas, embora no seu papel de conselheiro político tenha enfatizado, para os Corsos e para os Poloneses, o "orgulho nacional" como o verdadeiro motor da vontade geral. Aí defendia, ao invés da potência nacional agressiva, o culto às virtudes cívicas, a paidéia patriótica.

 

Rousseau não chega, parece claro, a apontar soluções concretas para a ordenação do "caos internacional". Suas proposições, na realidade, revelam a inviabilidade de um meio internacional pacífico, pois predominará, sempre, a lei do mais forte, a lógica da força. Permanece Rousseau dividido em sua dicotomia básica: a fé inabalável na bondade natural do homem e o pessimismo radical quanto à vigência de uma sociedade justa.

 

Mas o pessimismo diante da teia sufocante e insofismavelmente presente dos poderosos não esconde uma vocação totalitária. A leitura de Rousseau para fundamentar a impossibilidade de um regime democrático, para ressaltar a força contra o Direito, é uma provocação recusada na fonte. Em nome do Rousseau do Contrato Social, do consenso, da legitimidade, da democracia.

 


1. "Jugement sur la Polysynodie", in C. E. Vaughan (ed.): Jean Jacques Rousseau - The Political Writings, vol. I, p. 422.

2. Rosseau - "Jugement sur la Paix Perpétuelle", The Political Writings, vol. I, p. 390.

3. Rousseau - "L'État de Guerre", The Political Writings, vol. I, pp. 287-8. É interessante lembrar que o título original deste texto, escrito provavelmente entre 1753 e 1755, era "Que l'état de guerre nait de l'état social".

4. Stanley Hoffmann - "Rousseau, la guerre et la paix", in Rousseau et la Philosophie Politique, vários autores, Paris: PUF, pp. 206-08.

5. Rousseau - "L'État de Guerre", ed. cit. pp. 293-299.

6. Lembre-se, no discurso do “Kennedy round” que deixou herdeiros, as propostas de consolidação da paz mundial através dos laços de dependência comercial.

7. Hoffmann, citada, pp. 235-8.

8. Rousseau – “L’État de Guerre”, ed. citada, p. 299.

9. Sobre Rousseau e Grotius ver, de Robert Derathé: J.J. Rousseau et la Science Politique de son Temps. Paris: PUF, 1950, pp. 71-78.

10. C. E. Vaughan - citada, p. 100, n.p.p. nº 2.