Entrevista - César Coll
A Reforma Curricular Brasileira

(realizada em Barcelona, em 2-6-99, pelos professores
Jean Lauand e Elian Alabi Lucci. Edição e tradução: Jean Lauand)

 

JL: Inicialmente, gostaríamos de saber qual foi sua efetiva participação na elaboração dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) do Brasil e em que medida a reforma curricular brasileira teve como modelo o sistema espanhol?

 

CC: Bem, minha participação na elaboração dos PCNs foi como assessor técnico. O grupo designado pelo Ministério para a elaboração dos PCNs era um grupo muito amplo, com representantes de universidades e do professorado das diversas áreas e minha colaboração consistiu basicamente em assessorar, no que diz respeito à adoção de uma estrutura que permitisse uma certa homogeneidade dentro das propostas das diversas áreas, não em termos de conteúdos - o que, naturalmente, compete aos especialistas - mas, no que diz respeito à definição dos objetivos dos diversos conteúdos, à maneira de formulá-los, aos blocos de conteúdos, aos tipos de conteúdos procedimentais etc. e no que diz respeito à fundamentação psico-pedagógica.

 

JL: E ao final, ficou semelhante ao sistema espanhol?

 

CC: Não pode ser semelhante, porque as realidades são diferentes e os objetivos são diferentes: os PCNs não são um currículo prescritivo oficial, são, antes, um referencial de currículo. Já na Espanha, há o que se chama aqui "diseño curricular base" que estabelece, em nível normativo, o mínimo que deve ser ensinado para todo o Estado Espanhol e depois, cada comunidad autónoma concretiza seu currículo oficial com caráter prescritivo. Trata-se, portanto, de casos totalmente diferentes; sim, podem ter elementos comuns como têm os PCNs do Brasil e o currículo espanhol, como podem ter com outras muitas propostas curriculares do resto do mundo, na medida em que compartilham princípios psico-pedagógicos, algumas opções curriculares do construtivismo e a opção por um currículo aberto e pela importância de elaborar projetos educativos nas instituições, pela consideração de diversos tipos de conteúdo, pela ênfase na autonomia dos centros para empreender adaptações que permitam atender à diversidade de interesses... Mas todos estes são princípios que estão presentes não só nos PCNs e no currículo espanhol, mas na maioria dos países que modernizaram recentemente seus currículos.

 

JL: Para que ocorra efetivamente essa modernização, como deve ser, a seu ver, o preparo dos professores de ensino básico, secundário e médio? Principalmente num país com acentuadas diferenças como o Brasil?

 

CC: É o mesmo problema em todos os países: em alguns casos o problema é mais agudo; mas problemas há em todos os países. É evidente que uma das mudanças que ocorrem com os PCNs é a de repassar boa parte da responsabilidade da definição concreta dos conteúdos e do currículo, o que antes era dado pela administração educacional (federal ou estadual): agora essa responsabilidade recai sobre as equipes docentes e sobre os professores, com a finalidade de que tenham uma margem de manobra para adaptar o currículo às necessidades dos alunos. Na medida em que isto ocorre, é evidente que, neste modelo, é necessário um professor muito mais formado, muito mais capacitado, que seja capaz de assumir a autonomia que a proposta apresenta. Portanto, a formação do professorado que sempre foi uma necessidade, agora é mais do que necessária: é absolutamente imprescindível para poder pôr em prática uma ação docente de qualidade.

 

JL: E num país como o Brasil, com regiões extremamente pobres, o que o senhor sugere para a formação acelerada desse professorado?

 

CC: Do ponto de vista da política educativa geral, um governo, uma classe política e uma sociedade que implantam uma proposta desse tipo têm, naturalmente, que dar uma absoluta prioridade à formação do professorado: fazer a reforma sem essa prioridade da formação do professorado seria cair numa contradição que, espero, não venha a ocorrer no Brasil.

 

Já do ponto de vista técnico, parece-me bastante evidente que, assim como há uma descentralização do ponto de vista do currículo, tem que haver uma descentralização do ponto de vista dos processos e das atividades de formação: e penso que, neste caso, o ponto chave é procurar formar equipes de formadores de formadores que - descentralizadamente, nas diferentes regiões - possam assumir essa tarefa. E fazer isto, tendo em conta que o professorado necessita formar-se não só em nível teórico, geral, mas procurando soluções para poder construir um currículo adaptado para seus alunos. Claramente, o que é necessário promover é a formação com base em projetos de formação centrados em propostas didáticas ajustadas às necessidades dos alunos de cada lugar. Outra idéia que me parece muito importante é a da utilização das novas tecnologias que oferecem imensas possibilidades do ponto de vista da educação à distância e que podem ser utilizadas para a formação do pro fessorado e a elaboração de materiais multimídia: hoje, com esses recursos, estamos mais aptos a enfrentar desafios dessa magnitude do que no passado.

 

JL: Diversos educadores do Brasil e da Espanha (onde - guardadas as devidas distâncias - vocês têm uma experiência de dez anos de reforma) expressam a preocupação de que a reforma, sim, possa dar certo no ensino básico, mas que no ensino secundário e médio as coisas não funcionem (las cosas se estropeen).

 

CC: Não é que se estropeen; é que, nesses casos, é muito mais difícil, porque a mudança trazida pelas novas propostas é uma mudança que se nota muito menos na educação primária do que na educação secundária. Por que? Porque o princípio fundamental (que comentávamos antes) de adaptar o currículo às necessidades educativas dos alunos é algo que tem sido aceito na educação primária - talvez não, na prática, de uma maneira total, mas sim do ponto de vista do parecer geral dos docentes - já há muito tempo. Pode-se conseguir essa adaptação de modo melhor ou pior, mas todo professor primário sente-se na obrigação de adaptar o currículo às necessidades de seus alunos. Já a educação secundária - na medida em que, tradicionalmente, não era obrigatória - era proposta como seletiva, para formar os melhores, como caminho para o nível superior, universitário. Neste caso, o princípio encontra menos receptividade: os professores não foram formados para trabalhar nesse contexto. Então, logicamente, sendo a mudança muito mais profunda, as dificuldades são também muito mais profundas: há um choque com a cultura pedagógica dominante no ensino secundário e surgem resistências.

 

Também no nível técnico, é mais difícil, porque a diversidade de capacidades e interesses dos alunos é maior, na medida em que crescem em idade. Então, fica mais difícil organizar tecnicamente o ensino, mas o fato de ser mais difícil não significa que não se deva tentar: se se considera que é bom e socialmente desejável, deve-se identificar as dificuldades, analisá-las e empregar os recursos e os meios necessários para ir superando, pouco a pouco, essas dificuldades. Sempre tendo em conta que uma mudança dessa natureza não se faz de um dia para o outro, nem dentro de cinco anos; é uma mudança para médio e longo prazo e sabendo que não devemos nos desesperar diante das dificuldades, dos problemas e das resistências: o que é preciso é a convicção de que é uma mudança boa, a consciência de que há dificuldades e que devemos empregar os recursos para ir caminhando em direção aos objetivos que pretendemos.

 

JL: Esta pergunta foi sugerida por um professor de matemática e, embora sob forma jocosa, pode ajudar-nos a ter uma melhor compreensão da proposta dos PCNs. Trata-se da conhecida piada científica que conta a história do ensino de matemática - ao sabor de sucessivas reformas - a partir do "problema das batatas". (dou a ler ao entrevistado uma versão espanhola do problema, cuja tradução apresentamos a seguir):

 

Ensino de 1960

Um camponês vende um saco de batatas por 15 reais. O custo de produção é 4/5 do preço de venda. Calcular o lucro.

 

Ensino tradicional de 1970

Um camponês vende um saco de batatas por 15 reais. O custo de produção é 4/5 do preço de venda, isto é, 12 reais. Calcular o lucro.

 

Ensino de 1970 - Matemática Moderna:

Um camponês troca um conjunto B de batatas por um conjunto N de notas de dinheiro. A cardinalidade de B é 100 e cada elemento sigma de N vale 1 real. Desenhe cem pontos representando os elementos de M. O conjunto C dos custos de produção contém 20 pontos a menos do que M. Represente C como subconjunto de M e responda à questão: qual é a cardinalidade de L, conjunto-lucro (desenhar seus elementos em vermelho).

 

Ensino renovado de 1980

Um camponês vende um saco de batatas por 15 reais. O custo de produção é 12 reais e o lucro 3 reais. Sublinhe a palavra "batatas" e discuta com o grupo.

 

Ensino progressista de 1980

Um camponeis capitalista privilejiado seenriqueçe injustamente levando treis pau no saco de batata. Analizá us erro de otorgrafia e pontuassão e dispois fala u que ce acha dessa manera dinrequeçê...

 

Ensino com computador de 1990

Um produtor do espaço agrícola acessa on line um link de um data bank que faz um download de alta resolução do day rate da batata. Através de um hyperlink ele pode calcular o cash flow. Importe, clicando o mouse, o GIF de um saco de batatas e formate para imprimir na Laserjet.

 

Ensino do ano 2000 - PCNs

Um camponês / camponesa (de acordo com os PCNs, o professor de Matemática deve integrar a Matemática aos Temas Transversais, no caso a "1.3.4.2. Orientação Sexual: Acomodar num mesmo patamar os papéis desempenhados por homens e mulheres na construção da sociedade contemporânea, que ainda encontra barreiras ancoradas em expectativas bastante diferenciadas com relação ao papel futuro de meninos e meninas") vende um saco de batatas (aqui o trabalho deve estar integrado a outras disciplinas - como se dá a plantação de batatas - e ao tema transversal Meio Ambiente: "1.3.4.3. Meio Ambiente. A compreensão das questões ambientais pressupõe um trabalho interdisciplinar em que a Matemática está inserida. A quantificação de aspectos envolvidos em problemas ambientais favorece uma visão mais clara deles, ajudando na tomada de decisões e permitindo intervenções necessárias (reciclagem e reaproveitamento de materiais, por exemplo)" por 15 reais (Pluralidade cultural: em vez de "vende", pode-se falar em troca ou em outras possibilidades sugeridas pela Etnomatemática - cfr. PCN-Matemática 1.3.4.5) etc.

 

CC: (O entrevistado lê rapidamente o texto do problema e ao se dar conta de seu caráter jocoso diz:) Piadas científicas como esta, há muitas em todas as áreas e se se trata de tentar ridicularizar e ver as coisas de um ponto de vista jocoso...

 

JL: ...De modo algum, mas só tentávamos concretizar um pouco. Em outras palavras, como deve se comportar um professor de Matemática, que, além de Matemática, tem de ensinar a igualdade do homem e da mulher ante o mercado de trabalho...

 

CC: ...Eu não vejo as coisas assim. Eu diria que o bom professor de Matemática no próximo século será igual ao bom professor de Matemática dos anos 60, 70 ou 80. Sempre haverá desvios, é claro, mas o bom professor de Matemáticas ensinará "lo mismo" e ensinará com plena consciência do contexto social em que ensina...

 

JL: ...Mas isto é mais difícil com Geometria Analítica ou com Química Orgânica do que, digamos, com História...

 

CC: ...Não! Acho que não, porque o problema continua sendo o de contextualizar, o de considerar as exigências sociais e isto não se refere tanto aos conteúdos concretos - digamos, de como se formulam os problemas - mas sim, ao sentido que se dá ao ensino: que sentido deve ter o ensino de Matemática para as novas gerações? Este é o problema de fundo. E este sentido é determinado pelas necessidades sociais: para que é necessária a Matemática na educação básica e obrigatória para um aluno atualmente? Esta é a modificação de fundo; se há alguma modificação importante, decorrerá deste ponto e não do fato de adotar uma ótica de teoria dos conjuntos ou do que for... Esta é a questão de fundo, esta é a reflexão que nos falta e que não está terminada: ela foi iniciada, mas ainda não a concluímos. Será que, realmente, a Matemática que se ensina na educação básica obrigatória é a Matemática que se requer para exercer a cidadania na sociedade atual e no futuro?

 

JL: Sempre se corre o risco de fazer um trabalho fictício, postiço: "Ética, meio ambiente, temas transversais etc... e agora vamos ao que interessa: decorar a tabuada!"

 

CC: O importante, insisto, para os temas transversais não é introduzir, digamos, em nível de "letra", de redação o que é a não-discriminação entre gêneros, a igualdade de oportunidades ou uma conduta social de acordo com os princípios cívicos e democráticos nos enunciados, mas realmente situar o ensino de Matemática a serviço disso... É necessário fazer uma reflexão: realmente, você e eu, que somos adultos, que temos reconhecida uma plenitude de direitos e de deveres, que nos situamos em um nível, poderíamos dizer, relativamente alto e que, portanto, é de esperar que, em nosso desempenho profissional, estejamos à altura das exigências desse nível: de que Matemática realmente necessitamos? Esta é a questão!

Há uma tendência academicista no ensino básico e obrigatório que, penso eu, neste momento é um lastro que precisa ser re-examinado. Não digo que se deva esvaziar a Matemática, mas fazer a reflexão sobre se realmente tudo aquilo que hoje faz parte dos currículos nos diferentes países é realmente o que o cidadão necessita e, portanto, aquilo que deve ser assegurado em uma formação para todos ou se, antes, é fruto de tradições academicistas, que historicamente estariam justificadas, mas, que, talvez, hoje em dia, já não estejam. E, reciprocamente: que pontos do conhecimento matemático que não estão no currículo e que deveriam estar no lugar de pontos que não são funcionais.

 

JL: Mas, deve-se ter em conta também um valor formativo específico de cada disciplina: a formação matemática, por pouco funcional que seja, propicia uma formação do modo de pensar: não se estuda Geometria só para calcular áreas, mas como formação no sentido da Academia de Platão: "Não entres, se não és geômetra!". E não é fácil perceber esse valor formativo que não se traduz em utilidade imediata...

 

CC: Estou de acordo com tudo isso que você diz, mas isto mesmo se pode aplicar - mutatis mutandis - a todos os conteúdos e não depende tanto do conteúdo, mas do modo de apropriar-se e de aprender os conteúdos: o estudo de História, de Geografia, de línguas... pode ser feito de modo a permitir o desenvolvimento de capacidades e de criar umas coordenadas mentais ou pode ser feito de um modo horroroso. Não é um argumento que se possa aplicar só à Matemática...

 

JL: ...Evidentemente, eu não me referia só à Matemática...

 

CC: ...Mas ao conjunto dos conteúdos. Portanto, partindo do pressuposto de que vamos ensinar e procurar fazer com que os alunos aprendam da melhor maneira possível, desenvolvendo sua capacidade de pensar de maneira autônoma, é necessária a reflexão sobre quais conteúdos são mais importantes nesse sentido.

 

JL: Passo a palavra ao Professor Elian para suas perguntas...

 

EL: Eu, que percorro o Brasil continuamente em contato com professores, tenho a impressão de que um ponto extremamente positivo da reforma é o da interdisciplinaridade. Mas os professores queixam-se de que não estão sendo devidamente preparados...

 

CC: A verdade é que isto é uma conseqüência inevitável da profundidade de mudança da proposta. Se a mudança fosse superficial, teria provocado menos inquietação e ansiedade ante a necessidade de adaptar-se à nova situação: mas isto é inevitável quando a mudança é profunda.

E voltamos ao que dizia antes: é necessário exigir coerência de quem promoveu a reforma e, portanto, que dê os recursos necessários para que o professorado possa formar-se adequadamente. E há um segundo ponto: quero dirigir aos professores uma mensagem que os tranqüilize: os professores que eram bons profissionais no antigo sistema, continuarão sendo bons profissionais no novo sistema e para os que já pressentiam que era necessário mudar, a nova proposta oferece uma orientação sobre o sentido para o qual devem encaminhar as mudanças. E, certamente, a perspectiva da ansiedade ou da insegurança não é a melhor para enfrentar uma situação nova; os professores têm que pensar que são profissionais e que devem formar-se (isto não significa que não sabem de seu ofício ou que o exerçam mal, mas, como todo profissional, devem procurar melhorar no exercício de sua profissão). E que é necessário exigir, junto aos que detêm os meios e a responsabilidade, que propiciem essa formação. E também saber esperar, porque essas mudanças não se realizam a curto prazo, mas a médio e longo prazo e é um erro pretender um retrocesso antes de se dar realmente a oportunidade para que ocorram essas mudanças.

 

EL: Ouço dos professores brasileiros que enquanto na Espanha os temas transversais são a estrutura básica, no Brasil são antes justapostos ou opcionais...

 

CC: Pelo que estou informado, isto não é totalmente correto. A verdade é que a proposta do Brasil e a nossa são ligeiramente diferentes, como comentávamos: aqui (na Espanha), faz parte do currículo prescritivo e no Brasil é um referencial. É preciso distinguir entre o que se propõe em nível teórico e o que acontece realmente em sala de aula: teoricamente, há uma integração e uma apresentação integrada dos temas transversais nas áreas clássicas do currículo, mas na prática, estamos muito longe de alcançar o nível de integração que seria desejável.

 

Não vejo propostas radicalmente diferentes; há, sim níveis diferentes e fundamentações em razões diferentes em um e outro caso, por conta da tradição do país, da situação pedagógica...

 

EL: O que me parece interessante na proposta é a possibilidade de dar ao jovem uma visão integrada.

 

CC: O que devemos ter em conta é que nós podemos ensinar matérias diferentes, mas na cabeça do jovem tudo o que se ensina deve-se integrar com base numa realidade que é única, como cada um deles é único. É um pouco ilusório pressupor que eles vão, por si mesmos, fazer uma integração de algo que não lhes é dado de modo integrado: as disciplinas da educação básica obrigatória, que devem estar dirigidas a oferecer-lhes instrumentos de leitura, análise, compreensão e de atuação sobre a realidade. Isto se pode conseguir, integrando as contribuições disciplinares e não separando-as e estabelecendo fronteiras entre as disciplinas.