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 Quem vê cara não vê “girador” 

 

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

 

O coração humano - para a tradição semita - é um girador. Uma primeira sugestão contida nessa caracterização é a de que o homem, volúvel e inconstante em seu núcleo profundo, volta-se para cá e para lá, girando, oscilando ao sabor de caprichos e impulsos repentinos. Para nós, a giração é antes associada a disfunções e desvarios: gira é a pessoa adoidada, amalucada: biruta (a biruta, como se sabe, é aquele pano cônico dos aeroportos que gira ao sabor dos ventos). Também o famoso insulto babaca remete em sua origem - ao contrário do que muitos maliciosamente pensam - ao verbo tupi babak, que significa simplesmente: girar.

Se para nós esse girar está ligado à anormalidade, para a tradição semita não: a oscilação é a condição normal do centro radical da pessoa: o seu coração. A língua árabe aprofunda ainda mais. Nela, literalmente, a palavra para coração, qalb, deriva diretamente de qalaba, girar. E um antigo e proverbial verso diz incisivamente:

Wa ma sumya al-qalbu qalban illa liann yataqalabu...:

(o coração/girador foi chamado de girador porque... ele gira).

Na tradição muçulmana (e especialmente para os sufis), Deus é o “girador (transformador) dos corações” (muqallibu al-qulûb), como diz o Corão: “...o dia em que os corações (al-qulûb) serão girados (tataqallab)” (24, 37; cfr. também 18, 18). E num hadith, diz o Profeta: “O coração está entre dois dedos do Misericordioso, que o faz girar como Ele quer”. E Luce López-Baralt mostra que a imagem da alma como roda de poço, clássica na mística muçulmana, que pela qalaba (giração; qalb é também transmutação) reflete Deus e se transmuta nEle, reaparece em São João da Cruz, que fala do “poço de águas vivas” etc. (http://www.allamaiqbal.com/publications/journals/review/apr98/3.htm) .

Para os ocidentais, é freqüente a observação que a condição “normal” do homem anda meio desregulada (Guimarães Rosa) e que sua bússola, o coração, não pára quieta:

The heart is like the sky, a part of heaven,
But changes night and day, too, like the sky
[1]

 

Mesmo sem a associação imposta pela língua (como ocorre no árabe), nossos poetas, uma e outra vez, apontam essa característica “giratória” do coração.

Assim, na Autopsicografia, depois de descrever incomparavelmente os vaivéns e reviravoltas a que está sujeito o poeta, Fernando Pessoa desfecha:

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Que se chama coração

E na Roda Viva de Chico Buarque:

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

E numa surpreendente coincidência com o espírito da língua árabe, diz a canção de Kleiton e Kledir:

Ah! Vira, virou
Meu coração navegador
Ah! Gira, girou
Essa galera

 

Na obra de García Lorca encontramos todo um poema dedicado ao coração-girador. Já o título é infinitamente sugestivo: “Veleta”, que significa não só cata-vento, mas, metaforicamente, “persona inconstante y mudable” (Dicc. de la Real Academia). O poeta, desolado, dialoga com os ventos: todos chegaram tarde demais e a “veleta” deve, afinal, girar sem ventos...

Las cosas que se van no vuelven nunca,
todo el mundo lo sabe,
y entre el claro gentío de los vientos
es inútil quejarse.
¿Verdad, chopo, maestro de la brisa?
¡Es inútil quejarse!
Sin ningún viento
¡hazme caso!
gira, corazón;
gira, corazón.

E, em outro poema de García Lorca - “Otro Sueño”-, o coração dá voltas, cheio de tédio, como num carrossel em que a morte brinca com seus filhinhos:

Hay floraciones de rocío

sobre mi sueño,
y mi corazón da vueltas
lleno de tedio,
como un tiovivo en que la Muerte
pasea a sus hijuelos

 

E de Neruda é o verso: “mi corazón da vueltas como un volante loco” (Veinte poemas de amor y una canción desesperada, 11).

A poeta francesa Marie Mélisou, que também se refere (no poema “Désordre de pétales blancs”) ao girar do coração:

si mon coeur tourne
chaque instant pensées dansent

chega a considerar (em “Signal de l'écriture”) as palavras da poesia “sismógrafo do coração”:

on n'écrit pas seulement avec des mots
seismographe du coeur

 

O Concílio Vaticano II indica as razões dessa instabilidade do coração: “Na verdade, os desequilíbrios de que sofre o mundo atual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem. Porque, no íntimo do próprio homem muitos elementos se combatem. Enquanto, por uma parte, ele se experimenta como criatura que é, multiplamente limitado, por outra, sente-se ilimitado nos seus desejos e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, vê-se obrigado a escolher entre elas, e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz muitas vezes aquilo que não quer e não realiza o que deseja fazer. Sofre assim em si mesmo a divisão, da qual tantas e tão grandes discórdias se originam para a sociedade” (Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, 10).

Para além das disfunções e das loucas reviravoltas, o coração pode também dar as voltas certas e, como um giroscópio, pode até manter invariável o eixo da direção da vida, voltar-se para o bem ou para o mal... Assim, Dante fala do feliz concurso de todos os estímulos que podem fazer o coração voltar-se para Deus (Par. XXVI, 55-57):

che posson far lo cor volgere a Dio,
a la mia caritate son concorsi

e deixar o amor perverso (l’amor torto, 62). E, na Bíblia, são freqüentes as expressões “dureza de coração”, “endurecer o coração”, para referir-se à opção firme pelo mal.

Na Bíblia, a palavra coração (/ões) aparece quase mil vezes. Em muitos casos ligada a conceitos de “giração”, como voltar-se, converter-se etc. [2] Assim, por exemplo: I Sam 7, 3: “Se em todo vosso coração, vos voltais (revertimini) ao Senhor...”; II Sam 19, 15: “Então, o coração de todos os homens de Judá se inclinou (inclinavit) como se fosse o coração de um homem só...”; I Re 12, 27: “O coração deste povo se voltará (convertetur) para seu senhor...”; II Cr 36, 13 “E endureceu seu coração para não se voltar (reverteretur) ao Senhor...”; Ba 2, 30 “E converter-se-ão (convertentur) em seus corações...”; Joel 2, 12 “Convertei-vos (convertimini) a Mim em todo vosso coração...”; etc. A Bíblia fala até no coração de Deus: em algumas passagens para, antropomorficamente, indicar mudança de Seus desígnios: “Pesou a Iahweh ter feito o homem sobre a terra e indignou-se em seu coração” (Gn 6, 6); em outras, para indicar determinação imutável, como quando, ante o holocausto oferecido por Noé, “Iahweh disse em seu coração: ‘Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa do homem’” (Gn 8, 21). Mas a grande revelação sobre o coração de Deus e Sua misericórdia está no Evangelho: para além das qualidades expressamente associadas ao coração [3] , o Evangelho propõe uma revolução, quando Jesus apresenta seu coração como paradigma, naquela famosa sentença: “aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29).

Essa sentença pretende ser uma revelação do amor e da misericórdia de Deus: não é irrelevante o fato de que ela vem como desfecho de um discurso em que Cristo fala precisamente do fato de que é por Ele que se conhece o Pai (cf. Mt 11, 27). Nessa sentença expressa-se superlativamente a forma da promessa do próprio Deus pelo profeta Ezequiel: “Eu vos darei um coração novo: tirarei vosso coração de pedra e vos darei um coração de carne” (Ez 36, 26). Esta mesma contraposição carne/pedra é retomada pelo apóstolo Paulo: “sois carta de Cristo, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo; não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos corações” (II Cor 3, 3).

Trata-se de uma revolução infinita de amor e misericórdia, que se expressa no “Ouvistes o que foi dito aos antigos... eu, porém, vos digo”; nas bem-aventuranças; na parábola do samaritano; nas bodas de Caná; na parábola do filho pródigo; naqueles “teus pecados te são perdoados”; no “atire a primeira pedra; no “setenta vezes sete”; no “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos... foi a mim que o fizestes”; na parábola do fariseu e do publicano; na ressurreição de Lázaro; na oração no Horto; na última ceia; no “Amigo, a que vieste?”, dirigido a Judas; na cruz...

De todas as características desse coração, a que mais importa destacar em nosso tempo, por contraste, é a da misericórdia: Deus que se volta para o sofredor e o miserável.

De fato, a Encíclica Dives in Misericordia faz o terrível diagnóstico: “A mentalidade contemporânea, talvez mais do que a do homem do passado, parece opor-se ao Deus de misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própria idéia da misericórdia. A palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem, o qual, graças ao enorme desenvolvimento da ciência e da técnica, nunca antes verificado na história, se tornou senhor da terra, a subjugou e a dominou. Tal domínio sobre a terra, entendido por vezes unilateral e superficialmente, parece não deixar espaço para a misericórdia” (Dives in misericordia, 2).

Seguindo a mesma encíclica, a misericórdia na tradição judaica é descrita por diversos termos: hesed, que indica uma atitude de bondade e que, quando se estabelece entre duas pessoas, passa a significar também compromisso de fidelidade: tal como na Aliança de Deus com Israel. É a fidelidade de Deus a si próprio (mesmo ante a infidelidade de Israel): hesed we'emet é uma ligação de dois termos coordenados: fidelidade e verdade (fidelidade é verdade): "Eu faço isto, não por causa de vós, ó casa de Israel, mas pela honra do meu santo nome" (Ez 36,22). Esse tipo de misericórdia é uma característica mais masculina. A Bíblia fala também de hamal, originariamente a misericórdia de "poupar a vida (do inimigo derrotado)", mas que também significa, em geral, "manifestar piedade e compaixão" e, por conseguinte, perdão e remissão da culpa. Já o termo hus exprime igualmente piedade e compaixão, mas isso sobretudo em sentido afetivo. É oportuno ainda lembrar o já citado vocábulo emet , que significa: em primeiro lugar "solidez, segurança" (no grego dos Setenta, "verdade"); e depois, também "fidelidade"; e desta maneira parece relacionar-se com o conteúdo semântico próprio do termo hesed.

Mas em Deus - prossegue a análise de João Paulo II - há também a misericórdia rahamim, que já pela própria raiz denota o amor da mãe (rehem = seio materno). Do vínculo mais profundo e originário, ou melhor, da unidade que liga a mãe ao filho, brota uma particular relação com ele, um amor singular. Deste amor se pode dizer que é totalmente gratuito, não fruto de merecimento, e que, sob este aspecto, constitui uma necessidade interior: é uma exigência do coração. É uma variante como que "feminina" da fidelidade masculina para consigo próprio, expressa pelo hesed. Sobre este fundo psicológico, rahamim dá origem a uma gama de sentimentos, entre os quais a bondade e a ternura, a paciência e a compreensão, ou, em outras palavras, a prontidão para perdoar. O Antigo Testamento atribui ao Senhor estas características quando, ao falar d'Ele, usa o termo rahamim. Lemos em Isaías: "Pode porventura a mulher esquecer-se do seu filho e não ter carinho para com o fruto das suas entranhas? Pois ainda que a mulher se esquecesse do próprio filho, eu jamais me esqueceria de ti" (Is 49,15). Este amor, fiel e invencível graças à força misteriosa da maternidade, é expresso nos textos do Antigo Testamento de várias maneiras: como salvação dos perigos, especialmente dos inimigos, como perdão dos pecados e, finalmente, prontidão em satisfazer a promessa e a esperança (escatológicas), não obstante a infidelidade humana, conforme lemos em Oséias: "Eu os curarei das suas infidelidades, amá-los-ei de todo o coração" (Os 14,5).

Há, portanto, uma dimensão maternal no coração de Deus. Daí que a Dives in Misericordia conclua (V, 9), falando também do amor e da misericórdia incondicionalmente maternais do coração de Maria: “Precisamente deste amor "misericordioso", que se manifesta sobretudo em contato com o mal moral e físico, participava de modo singular e excepcional o coração daquela que foi a Mãe do Crucificado e do Ressuscitado. Nela e por meio dela o mesmo amor não cessa de revelar-se na história da Igreja e da humanidade. Esta revelação é particularmente frutuosa, porque se funda, tratando-se da Mãe de Deus, no singular tato do seu coração materno, na sua sensibilidade particular, na sua especial capacidade para atingir todos aqueles que aceitam mais facilmente o amor misericordioso da parte de uma mãe”.

Num mundo dominado pela indiferença e pela crueldade, o apelo (ou será um alerta...?) do Mestre - “aprendei de Mim” - e a serena ponderação do coração da Mãe tornam-se urgentes. Propõem a grande reviravolta do coração humano, que só ocorrerá (a própria Bíblia o adverte...) se se cumprir, como condição prévia, o bom funcionamento de um outro órgão: o ouvido: “Ouvireis, ouvireis, mas não querereis compreender; porque o coração está embotado” (Mt 13, 14-15)!



[1] Lord Byron  Don Juan (ao final do “Canto the Second”).

[2] Realizei as pesquisas de busca pelo programa DEBORA-Microbible, Bíblia de Jerusalén, Promotion Biblique et Informatique, CIB - Maredsous, Belgique, 1990. Programa FindIT, da Marpex, Ontario, 1992. Cito as passagens bíblicas em tradução direta da Nova Vulgata Bibliorum Sacrorum, Editio typica altera, Libreria Editrice Vaticana, 1986.

[3] “os limpos de coração” (Mt 5, 8); “onde está teu tesouro, ai está também teu coração” (Mt 6, 21); “pensar mal no coração” (Mt 9, 4); “a boca fala do que transborda do coração” (Mt 12, 34); a palavra de Deus semeada no coração (Mt 13, 19); não o que entra, mas o que si pela boca contamina o homem, porque procede do coração (Mt 15, 18); do coração procedem as más ações (Mt 15, 19); perdoar de coração o irmão (Mt 18, 35); Maria meditava em seu coração (Lc 2, 19); uma espada de dor transpassará o coração (Lc 2, 19); o coração se faz pesado pela libertinagem e pelas preocupações da vida (Lc 21, 34); o coração do insensato é lento para crer (Lc 24, 25); o coração se inflama (Lc 24, 32); o coração vacila (Lc 24, 38); perturba-se (Jo 12, 40); etc.