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 Transcendentais? Ah!, bom... 

(artigo publicado em Linguagem e Ética , Curitiba, PUC-PR, 1989, pp. 17-20)

 

Jean Lauand

Ente é aquilo que é, que “exerce” o ser. Assim como o presidente exerce o presidir; o carente, o carecer; a gestante, o gerar; o ouvinte, o ouvir; o ente exerce o ato de ser.

Assim, eu sou um ente, aquela árvore, meu cachorro Lulu, esta pedra, também o são(1).

Os seis transcendentais do ente (que se estudam na filosofia de S. Tomás) são, por assim dizer, seis sinônimos de ente. Bem entendido: “sinônimo” não significa identidade absoluta, mas sim que cada um desses “sinônimos” aponta para um determinado aspecto diferente da mesma e única realidade: tal como quando falamos em “casa”, “lar”, domicílio” e “residência”.

Em si, a realidade a que se referem estas palavras é a mesma e única; mas ninguém diz “domicílio, doce domicílio”, nem a Prefeitura cobra impostos sobre o meu lar, etc. (ainda que, naturalmente, há casos em que é legítima a substituição de uma dessas palavras, ou indiferente o uso de uma outra: afinal são sinônimas!).

Como dizíamos, apontam-se classicamente seis transcendentais do ente, seis como que sinônimos do ente: verum, bonum, pulchrum, res, aliquid, anum. Respectivamente: verdadeiro, bom, belo, coisa (se bem que res(2) é ainda mais amplo que nosso “coisa”. De res derivam-se: real, realmente, realidade, etc.), que (ou algo; o transcendental aliquid indica o caráter de alteridade e delimitação do ente em relação a qualquer outro ente) e um (um e uno; pelo que posso preferir o pronome “eu”. Naturalmente o unum do ente é tanto mais visível quanto mais ascendemos na escala de ser: do inanimado ao vivente; da planta ao humano, onde cada um experimenta seu caráter de unum).

O que se afirma com os transcendentais é que tudo que é, é bom; tudo que é, é verdadeiro; etc. A identidade (na coisa) entre ente, verdadeiro, bom, etc. é uma das afirmações mais fundamentais da filosofia de S. Tomás: o ente, enquanto diz respeito à inteligência diz-se verdadeiro; à vontade, bom, etc.

Afirmar a relação do real com uma inteligência e uma vontade é, no caso, principalmente afirmar a dependência do ente para com Deus: criar inclui pensar e querer a criatura com seu ser e essência. Por isto o real é inteligível e apetecível para o homem: tudo que é traz a marca do ato criador de Deus.

Aliás, criar, deve ser entendido precisamente como um ato da Inteligência (que concebe e, por assim dizer, projeta) e do Querer divinos que conferem o ser.

Assim, verdadeiro (e o mesmo vale para o bom) é algo próprio do ente, no sentido profundo de que o ente enquanto tal supõe uma relação com a inteligência que o cria e, então, secundariamente, com a inteligência humana que a ele se abre.

Não pretendemos aqui explorar as ricas conseqüências filosóficas e relações teológicas que se encerram na doutrina dos transcendentais, mas somente indicar que, por mais estranho que à primeira vista possa parecer, é-nos, no entanto, altamente familiar esse trânsito e reciprocidade: ser-verdade-bem.

Como sempre, voltemo-nos para a linguagem comum. Nela encontraremos, em todas as línguas, intuída e legitimada alguma equivalência (e, portanto, o passaporte) entre ser, verdade, bem, etc.

É este exercício que faremos agora: mostrar como a linguagem autoriza o trânsito, a permutação dos transcendentais.

Quando algo é, mas é realmente (Forty years: She is not really old), dizemos que é de verdade, ou que é bom(4), ou belo, empregados no sentido de plenitude: “Não senhor, isto é descanso; você precisa descansar de verdade”, ou, o que é o mesmo, “um bom descanso” ou “um belo descanso”. Também em outras línguas: o italiano, por exemplo, diz: uma buona dose di vino, um bel pò di strada etc.: o inglês: it is a good distance, etc; sempre indicando plenitude, ser de verdade. Com o transcendental da beleza diz-se coloquialmente: “Tal time se afundou bonito”.(5)

E se algo não vale a pena, “não adianta”, o inglês diz no good, tal como na canção: “When somebody loves you is no good unless he loves you all the way” (Van Heusen Cahn).

Fala-se nos bens de uma pessoa (paralelo ao goods do inglês): “Fulano, com o incêndio, perdeu todos os seus bens”. E “bem” na expressão “se bem que” (obwohl em alemão; ben chè em italiano; bien que em francês) equivale à ressalva: “é verdade que” ou simplesmente, “é que”. E o mesmo ocorre quando dizemos: “Ah! Eu bem que te avisei. Bem feito!” (Je vous l´avais bien dit) ou “Você bem que podia me aparecer” (Vinícius), ou ainda, “Eu bem que mostrei sorrindo” (Chico). Jawohl (literalmente: sim-bem) é a forma enfática afirmativa do alemão, que também dispõe do “bem” enfático Wo – zum Teufel – Kann er wohl stecken? Onde diabos pode ele (bem) estar metido?, bem como outras línguas (Le ultime notizie lasciano ben sperare...).

E “também” significa tão-bem, ou seja, “igualmente é” (em alemão há por exemplo ebensogut e em inglês as well: He is rich, my friend is rich as well).

O espanhol tem a expressão más bien. Ante um vinho falso, um vinho que não é bem vinho, exclama-se: “Esto es más bien água”. E nós dizemos: “Nem bem (ou mal) chegou e já tornou a sair”.

E quando algo é (é mesmo, para valer) diz-se em francês pour de bon (próximo ao inglês for good, definitivo) ou pour de vrai; e dizemos que um bife está bem passado, well done. Para não falar do tout bonnement: Elle est tout bonnement insuportable!

Distinguimos moeda falsa de dinheiro bom; dizemos que o cheque é bom para depois de amanhã (um assegno buono per dopo domani; good for 30 days, etc.); e temos bônus desta ou daquela companhia, etc.

E a torcida daquele time do interior paulista, indignada ante o desempenho evidentemente displicente de seu goleiro, gritava revoltada: “U golero é farso” (em português há – como no alemão, inglês, etc. – O “falso alarme”, etc.). Dizemos também “de mentirinha” para indicar que algo não é, ou “não é de nada”.

Para designar um ente ou uma ação qualquer, o italiano vale-se do transcendental coisa em lugar do nosso que: Cosa vuoi?, Cosa fai? ou, com a especial sensibilidade que italianos e alemães têm para o transcendental belo: Cosa fai di bello? Já o alemão para certos casos em que nós empregamos bem, diz schön (belo): also schön (pois bem), schön und gut (muito bem), etc.

coisa, no nosso falar popular, pode indicar algo que está muito bom: “Hmm! Tá uma coisa” (combinando os transcendentais “um” e “coisa”).

E quando algo não é, mas não é mesmo, dizemos “coisíssima nenhuma”.

O transcendental unum é preferentemente restrito ao humano, no sentido genérico de “alguém” uno (espanhol), einer (alemão), one (inglês), principalmente nos compostos someone, no one, etc. (ainda que one possa referir-se a qualquer ente: “the next one, please”, pode dizer também o operário que acaba de montar uma peça pedindo a próxima. Um, embora menos freqüente que em outras línguas, pode também designar “alguém”: “Ele é um que sabe o que quer”. E o povo diz: “O Mané? É aquele um que tem um carro preto”.

Passemos agora a um caso especial onde é particularmente visível a equivalência dos transcendentais: seu uso significando: “muito”. Podemos usar bom, belo, verdadeiro, coisa, que e um nesse sentido, para indicar que algo é com intensidade.

Isto já se nota na própria palavra inglesa very(6), que obviamente procede do latim (verus, vere). Também o nosso “deveras” pode ser usado no sentido de “muito”. Se chove forte o italiano diz “piove a buono” e, na Bahia, pede-se café com bem açúcar.

“Muito obrigado” em francês é não só merci beaucoup, mas também merci bien (em alemão danke schön – obrigado belo). Note-se ainda que how much é literalmente em francês com’-bien.

“Uma beleza de traiçoeiro” (G. Rosa), “está bem mal”, “deveras interessante” e o já apontado “está uma coisa” são outros tantos usos intensivos dos transcendentais.

Um e que também podem passar por muito. “Que saudades que eu tenho...”, “Que lindo!” e também no uso recente da gíria: “O que tinha de gente lá...”, “O que o juiz roubou pros hóme...”. “Está um calor, hein?” “Está uma chuva, um frio (What a cold!)

“Ah, bom”, bom disso, bom daquilo (bom de bola, bom de bico) e tantas outras expressões de todas as línguas estão aí a comprovar que “se bem que” os intelectuais tenham se afastado da filosofia clássica, o povo “que é bom” continua na mesma clave de S. Tomás.

Pois é, a língua tem cada uma...



(1) Curiosamente, no falar do povo o uso de “ente” restringe-se à expressão “entes queridos”. Ou para designar fantasmagorias, ou ainda para referir-se a “entidades”.

(2) Este transcendental acentua o sujeito portador do ser.

(4) Ou que é “para valer”; valor é o equi-valente moderno de bem. O espanhol coloquial diz “vale!” (ou enfaticamente “vale, vale!”) para indicar que está tudo certo, muito bem, de acordo.

(5) Em italiano desmascara-se a realidade das tentativas de disfarce com a expressão bello e buono: “Um linguaggio ermetico è già inganno bello e buono”, usar uma linguagem hermética é pura e simplesmente enganar.

(6) Very, que não por acaso se traduz por bem em casos de ênfase na identidade: How could you let it be done under your very nose?, como deixou que fizessem isto bem debaixo do seu nariz? (Ao que o acusado poderia alegar: se bem que eu fui pego de surpresa). She is the very woman l´m looking for: Ela é bem a mulher que eu procuro; etc.