A EXPERIÊNCIA FILOSÓFICA BRASILEIRA DA ATUALIDADE: 

UMA PROPOSTA DE SISTEMATIZAÇÃO

 

Antônio Joaquim Severino
Feusp/Edf

 

Introdução

 

A presença e as características peculiares da expressão filosófica no contexto da cultura brasileira sempre me provocaram indagações quanto a sua natureza, quanto  a sua autenticidade e quanto a sua autonomia, à vista sobretudo de sua aparente dependência radical em relação aos modelos estrangeiros de pensar, transplantados de maneira artificial para nossa ambiência cultural. Em alguns trabalhos anteriores, já tive a oportunidade de expressar e de abordar tal tipo de preocupação. (Severino, 1976; 1990).

Continuei estudando, nas últimas décadas, o pensamento filosófico no Brasil, sobretudo em suas manifestações atuais, procurando mais elementos para sua compreensão e avaliação. É nesse âmbito de interrogação que se insere um último estudo que, elaborado a partir do enfoque da filosofia da educação, endereça uma interrogação a esse pensamento no sentido de se avaliar até que ponto a temática político-educacional se faz presente na meditação filosófica atual no Brasil (Severino, 1999).

Para interpelar o compromisso da filosofia praticada no Brasil com esta temática, procedi, preliminarmente, a uma tentativa de sistematização, tomando como critério sua vinculação às grandes correntes paradigmáticas da filosofia ocidental.

Trata-se assim de um esforço sistematizado para identificar, nas expressões mais significativas desse pensamento, as principais inspirações que norteiam a reflexão filosófica entre nós. Intencionalmente situado no universo da filosofia da educação, o trabalho pretendeu abordar, analisar e avaliar o esforço filosófico brasileiro, buscando saber quais as temáticas filosóficas constituem as preocupações fundamentais das correntes e vertentes filosóficas mais expressivas e por que são essas temáticas privilegiadas em nossa cultura.

Já havia realizado anteriormente uma pesquisa sobre a prática da filosofia no Brasil, oportunidade em que pude mapear o trabalho filosófico como dado institucional/cultural da atualidade brasileira. Essa geografia da atividade filosófica entre nós confirmou a já conhecida rotina do fazer filosófico em decorrência das inúmeras limitações culturais e institucionais. Mas revelou também o dinamismo e a multiplicidade das formas de expressão que a filosofia já desenvolveu no Brasil. Essa fecundidade da prática filosófica, que a consolida como um dado cultural significativo, num amplo espectro de perspectivas e vertentes, demonstra a variegada e rica manifestação do atual filosofar e se torna merecedora de análises e apreciações mais detidas, no sentido de se apreender a sua significação mais profunda e sua conseqüente contribuição para a configuração da própria cultura brasileira.

O trabalho filosófico, visto em sua objetividade como o conjunto de formas de expressão cultural e acadêmica, já tem, pois, significativo desenvolvimento no Brasil das últimas décadas. A filosofia entre nós já não mais se limita aos escolásticos ambientes dos conventos e seminários nem  às iniciativas isoladas de pensadores    positivistas ou ecléticos. Expandiu-se em todas as instituições de ensino, públicas e privadas, nos vários graus, em cursos específicos ou integrando, sob forma de disciplinas filosóficas, os currículos de outras áreas de ensino superior. Fundaram-se e se consolidaram entidades associativas e científicas, gerais ou especializadas, que se dedicam ao cultivo e à promoção da cultura filosófica. Várias revistas dedicadas à filosofia entraram em cena e continuam marcando presença nesse cenário. Assim, em que pesem as resistências, os formalismos e as limitações acadêmicas, pode-se concluir com segurança que, em termos de ensino e de cultura da filosofia, já se tem no Brasil uma importante tradição. Por outro lado, com a implantação do sistema de pós-graduação no país, vários centros de pesquisa se consolidaram, muitos projetos de estudo e de investigação filosófica foram e estão sendo desenvolvidos, contando inclusive com apoio institucional de agências públicas de fomento. Tudo isso tem contribuído para que se consolide igualmente uma tradição de pesquisa. Além disso, ampliou-se também o volume de livros e artigos publicados no campo da filosofia. Enfim, nestas últimas décadas, pode-se identificar, de vários ângulos, a presença e a participação atuante da filosofia como significativo dado cultural.

Este estudo se situa, pois, no prolongamento da pesquisa já referida sobre a prática da filosofia no Brasil, da qual resultaram dois produtos: um Relatório, com dados estatísticos sobre os vários aspectos dessa prática, e um Catálogo, que cadastra os nomes dos filósofos, acrescidos de um informe biobibliográfico sobre cada um deles.  Constam do Catálogo igualmente dados sobre os cursos, de graduação e de pós-graduação, sobre as entidades e revistas da área. Em relação a esse primeiro trabalho, o presente estudo avança uma vez que permite uma compreensão mais qualitativa dessa prática, explicitando as posições teóricas de muitos dos nossos pensadores e situando-os, em função delas, nas diversas tradições e correntes históricas da filosofia.

Esta classificação sistemática dos pensadores em correntes e vertentes, em função de sua filiação filosófica, não deixa de apresentar alguns problemas. De um lado, porque o pensamento dos estudiosos, por mais vinculado que esteja a uma tradição ou a uma corrente, sempre assume alguma peculiaridade, não se reduzindo a um mero desdobramento linear de suas fontes inspiradoras, além de envolver, muitas vezes, variadas influências. De outro lado, nem sempre o acesso e a análise de suas obras são viáveis e exaustivos, seja pela carência de informações, seja pela falta de disponibilidade de documentos e de bibliografia, seja ainda pela própria versatilidade de sua reflexão. Assim, além do risco de omissão de muitos outros nomes que, em função dos critérios adotados, deveriam estar presentes, há ainda o risco da imprecisão da análise e da interpretação dos pensamentos abordados, no que diz respeito a essa filiação. Assim, numerosos e significativos  cultores da filosofia no Brasil não aparecem referidos  neste trabalho, em função do fato de que sua atividade se determina sobretudo pelo estudo sistemático de autores ou escolas da filosofia, classificando-se antes como exegetas ou historiadores especializados da filosofia.

Por tudo isso, meu estudo apresenta-se  apenas como uma primeira aproximação, uma leitura feita evidentemente a partir de um ponto de vista sujeito a vieses e a parcialidades. De qualquer modo, alimenta a esperança de que possa subsidiar outras pesquisas, fornecendo-lhes sugestões de roteiros de leitura e de investigação.

O texto se subdivide em 11 capítulos. No primeiro capítulo, o trabalho contempla uma primeira discussão geral sobre o sentido em que se poderia falar de um filosofar no Brasil e como ele se expressa atualmente na cultura brasileira. É que não basta reconhecer a presença da filosofia como mero fato cultural. É preciso indagar-se até que ponto a emergência desse fato é resultante de um amadurecimento do filosofar entre nós ou um simples fenômeno artificial, sem raízes profundas em solo firme. Seria ela a expressão da conquista de autonomia pelo pensamento brasileiro ou, ao contrário, um agravamento de sua dependência cultural? A questão é relevante e precisa ser preliminarmente discutida porque a tradição histórica da prática da filosofia no Brasil sempre apontou no sentido dessa dependência, revelando, na condição de evento concreto, que o filosofar não era elemento imprescindível e vital para o desenvolvimento da cultura de nossa sociedade. Assim, neste primeiro momento, estará em pauta a discussão da significação da filosofia como trabalho reflexivo-interpretativo da inteligência nacional.

Feita esta colocação preliminar sobre a significação do filosofar em nosso contexto, procedi a uma aproximação da atualidade filosófica no Brasil mediante a explicitação das relações com sua própria tradição. Esta abordagem constitui o objeto dos demais momentos da investigação. Neste conjunto,  busca-se ver como os pensadores de hoje se posicionam frente à tradição filosófica, como o esforço filosófico contemporâneo entre nós se auto-concebe como dado cultural que se insere no prolongamento da história do pensamento brasileiro, intimamente vinculado à história do pensamento ocidental como um todo. Trata-se, pois, de se referir ainda que sem prejulgar de qualquer forma de continuidade ou de ruptura, às raízes, às origens, às tradições que possam dar conta do espectro atual dessas formas de pensar. Essas formas foram sendo então levantadas, transformando-se cada uma delas num dos passos seguintes que dão continuidade ao estudo. Neste conjunto de capítulos, buscou-se então aproximar-se do filosofar atual do Brasil, interpelando diretamente o pensamento dos principais filósofos brasileiros. Realizei uma análise especificamente teórica que visou explicitar o processo e o produto do filosofar contemporâneo, sem desconsiderar o vínculo com seu enraizamento histórico, uma vez que todo teorein filosófico que vai se instaurando não deixa de ser um posicionamento frente a outro teorein já instaurado. Nesta fase foi realizado o trabalho de levantamento, exposição e análise das principais formas de expressão da filosofia na atualidade brasileira, daquelas que traduzem o pensamento vivo e presente, atuante nos diversos setores culturais, dando assim conta das várias inspirações que estão norteando a reflexão filosófica entre nós.

Em cada um dos paradigmas estudados, busquei delinear, em grandes linhas, num primeiro momento, a matriz de cada uma deles, expondo suas posições básicas e levantando os principais pensadores dele representativos. Este delineamento foi propositadamente panorâmico e geral, uma vez que seu objetivo era apenas o de fornecer uma referência histórico-conceitual para se contextuar, na seqüência, sua influência na cultura brasileira. Com efeito, o trabalho não se propunha ser uma reconstrução histórica ou analítica das correntes filosóficas da atualidade, tarefa para a qual essa primeira abordagem pode, isso sim, fornecer aos interessados, um possível roteiro, para o seu aprofundamento.

Numa segunda etapa, tentei mostrar a presença da corrente em questão no quadro da cultura filosófica brasileira. Isto foi feito mediante a identificação de pensadores nacionais que vêm desenvolvendo sua reflexão filosófica sob a inspiração das categorias dessas correntes. Buscou-se assim levantar os nomes mais representativos dentre esses pensadores, a partir de suas obras e das temáticas que vêm abordando. A respeito de  cada um deles se faz uma referência mínima à orientação de seu pensamento e às linhas de sua investigação.

Num terceiro passo, destaquei dentre eles um nome cujo trabalho filosófico, em decorrência de seu desenvolvimento e maturação, pudesse ser tomado como exemplo efetivamente representativo dessa inspiração. Neste caso, seu pensamento foi analisado mais detidamente, de modo a que se pudesse apreender não só suas afinidades    com as posições fundantes mas também suas peculiaridades   decorrentes de sua criatividade. A apresentação do pensamento do autor foi concluída com a transcrição de um trecho de sua autoria, com o objetivo de dar concretamente uma amostra do seu estilo pessoal de construir o discurso filosófico.

O último capítulo do trabalho foi reservado para uma discussão, mais interpretativa do que expositiva, do alcance político-educacional desses diferentes discursos filosóficos. O filosofar brasileiro foi então enfocado sob uma preocupação bem determinada: tratou-se de se saber se a abordagem própria de uma perspectiva política, como co-dimensão de uma perspectiva educacional, permeia a reflexão filosófica no país. Ou dizendo de outra forma, até que ponto as preocupações de natureza político-educacional estão presentes nos projetos e discursos filosóficos de nossos pensadores, e até que ponto essas preocupações marcam a orientação de seus pensamentos. A questão foi ver até que ponto essa reflexão filosófica, consumada na expressão cultural da filosofia brasileira, vem contribuindo para a discussão e para a compreensão da educação a partir dos subsídios que estaria fornecendo para a constituição da própria identidade da sociedade nacional e, até que ponto  ela adquiriria autenticidade e legitimidade, só possíveis se se fizesse uma reflexão sobre as mediações da existência histórica de nossa sociedade.

Assim, neste trabalho,  a preocupação que se torna interrogante ao discurso filosófico pronunciado no contexto cultural atual do Brasil, pressupõe uma questão anterior, mais radical, que diz respeito à própria natureza da filosofia em geral, ou seja, até que ponto a reflexão filosófica, ao ser desencadeada, implicaria a necessidade de se dar como temas essenciais as mediações históricas e sociais do próprio filosofar.

A pesquisa desenvolvida  permitiu constatar que a reflexão filosófica atual no Brasil vem ensaiando seus vôos  de autonomia sem desvincular-se das grandes tradições e tendências da filosofia ocidental. Esta vinculação é ainda tão forte que um número significativo de praticantes da filosofia se dedica fundamentalmente a um trabalho de apropriação dessas tendências, trabalho que é feito mediante esforço metódico de retomada do pensamento dos clássicos, sobretudo através de uma cuidadosa exegese dos seus textos. Investimento em  termos de leituras, análise, de interpretação e de crítica que é feito com o respaldo acadêmico-institucional, e que reverte, o mais das vezes, em recursos para o ensino escolar da filosofia. Tais estudiosos, não abrangidos no universo dos sujeitos pesquisados, se colocam na perspectiva de uma abordagem histórica especializada, monográfica. Seu objetivo é a explicitação, a compreensão e, às vezes, até mesmo a discussão questionadora do pensamento e da obra dos pensadores mais representativos da história da filosofia.

O  estudo que desenvolvi procurou se aproximar daqueles autores atuais que têm buscado refletir de maneira mais abrangente. Ainda que sem negar possível filiação e até mesmo múltiplas inspirações, estes autores expressam, em seus textos, um esforço de elaboração mais personalizada de uma reflexão especificamente filosófica. Neste caso, tendem a considerar sua tendência inspiradora não apenas um objeto a ser abordado, analisado e apropriado, mas sobretudo um instrumento, um referencial para o desenvolvimento de uma reflexão mais pessoal. Buscam refletir sobre temáticas atuais, ainda que sob a referência de uma determinada perspectiva teórico-metodológica de abordagem, sob um paradigma filosófico.

A prática atual da filosofia entre nós, registrada na produção teórico-literária de nossos pensadores, acontece, pois, intimamente vinculada à tradição filosófica ocidental, situação que é um dado de realidade que traduz uma facticidade histórica de filiação cultural que não cabe avaliar apressadamente apenas sob o ângulo da dependência. Como dado histórico real, é fenômeno decorrente de múltiplas determinações, inalterável pelo anátema da lamentação. O que se nos impõe, no entanto, como tarefa científica e crítica, é o conhecimento do fenômeno, o seu acompanhamento e a sua descrição. Qualquer desejada criatividade pressupõe o desvendamento analítico-crítico de todas as coordenadas que tecem o fenômeno cultural nas tramas das relações histórico-sociais.

É assim que se pode constatar que em nossa cultura filosófica atual se faz presente, ainda que numa condição de  resistência, a tradição metafísica clássica, com sua perspectiva essencialista de compreender a realidade. Manifesta-se fundamentalmente nas expressões  teóricas do neo-tomismo. Destaquei como figura representativa desta tendência, Fernando de Arruda Campos. São feitas outras referências: Carlos Lopes de Mattos, Ubiratan Borges de Macedo, Dom Beda Kruse, Evaldo Pauli, Geraldo Pinheiro Machado, Iulo Brandão, José Geraldo Vidigal de Carvalho, Stanislavs Ladusans. Mas também tem forte presença entre nós, numa perspectiva de crescente consolidação, a tradição positivista que se expressa nas correntes e vertentes neopositivistas e transpositivistas, mantendo e até certo ponto ainda consolidando as posturas cientificistas. Na minha leitura, o neopositivismo assume no Brasil três vertentes: a primeira, de caráter mais logicista, se dedica à discussão dos fundamentos lógico-formais do conhecimento científico em geral, com destaque para a lógica matemática. Esta vertente tem em Newton Carneiro da Costa um notável expoente, acompanhado de Ayda Ignez Arruda, Lafayette de Moraes, Luiz Carlos Dias Pereira, Luis Paulo de Alcântara, Elias Humberto Alves, Jorge Ferreira Barbosa, entre outros; uma segunda vertente, característica da filosofia analítica, busca construir uma linguagem mais precisa  e rigorosa, podendo-se citar como seus praticantes Raul  Ferreira Landim, Danilo Marcondes de Souza, Vera Lúcia Caldas Vidal, Balthasar Barbosa Filho, Eduardo de Campos Chaves, Nelson Gonçalves Gomes; a terceira vertente, de natureza mais epistemológica, preocupa-se em discutir a própria especificidade do conhecimento científico, não só em seus aspectos formais mas também em suas condições objetivas. Nesta vertente, situei Leônidas Hegenberg, que foi também o escolhido como representante significativo da tendência neo-positivista,  Milton Vargas, Oswaldo Porchat, Luiz Alberto Peluso, Michel Ghins, Zeliko Loparic, para só citar alguns.

Designei como tendência transpositivista, outra grande perspectiva de se praticar a filosofia da ciência, diferentemente do neopositivismo. Esta tendência reconhece a autonomia e a relevância da ciência mas não a isola de outras formas de atividade humana. Entende que a filosofia da ciência não pode ater-se apenas às condições lógico-formais do conhecimento, ela envolve ainda considerações de natureza axiológica, dada a inserção histórico-social da própria ciência. Situando-se na linha do racionalismo científico de Bachelard, Kuhn, Piaget, muitos pensadores brasileiros investem nessa perspectiva de reflexão filosófica. Entendo que Hilton Japiassu, com sua em busca de uma epistemologia crítica,  foi o grande sistematizador desta forma de pensar, destacando-se ainda Constança Marcondes César, Marly Bulcão Brito, Elyana Barbosa, Carlos Alberto Gomes dos Santos, John Pessoa Mendonça, Luis Carlos Bombassaro.

Já a tradição subjetivista, bem consolidada, se faz presente através das tendências e correntes vinculadas aos neo-humanismos, à fenomenologia , à arqueogenealogia e ao culturalismo.

A fenomenologia inspira igualmente um número significativo de pensadores, entre nós, desdobrando-se em várias frentes. Uma frente, sob a inspiração de Merleau-Ponty, tem em Antônio Muniz Rezende,  em Newton Aquiles Von Zuben,  em Creuza Capalbo, em Salma Tannus Muchail, em Telma Donselli e em José Ozana de Castro, alguns de seus principais representes; outro grupo se expressa sob forte influência da fenomenologia existencial heideggeriana: Gerd Bornheim, Ernildo Stein, Dulce Mara Critelli, Thaís Cury Beaini, entre outros; destaquei Bornheim para uma apresentação mais detida da marca da fenomenologia entre nós.

A tendência que designei como neo-humanista e da qual considerei Cláudio Henrique de Lima Vaz como um dos mais significativos representantes, preocupa-se menos com sua caracterização epistemológica, buscando antes construir uma imagem consistente da pessoa humana, uma vez que entende ser a tarefa antropológica a tarefa fundamental da filosofia. Apoiando-se então tanto nas contribuições mais recentes da filosofia como naquelas das modernas ciências humanas, desenvolvem uma nova visão da existência do homem, no seu contexto histórico real. Visões marcadas pelo existencialismo, pelo personalismo, pelo marxismo, pelo teilhardismo, alglutinam pensadores como Odone Quadros, José Luiz Maranhão, Irapuã Teixeira, Paulo Freire, Antônio Sidekum, José Luiz Arcanjo, Aloisio Ruedell, Alino Lorenzon.

Já o culturalismo tem consolidada tradição entre nós. Desde Tobias Barreto até Miguel Reale, sua grande referência atual no Brasil, esta tendência conta com muitos pensadores de destaque, a grande maioria situando-se no âmbito da filosofia do direito: Renato Cirell Czerna, Luiz Luisi, Sílvio Macedo, Antônio Machado Paupério, Nelson Nogueira Saldanha, Irineu Strenger, Lourival Villanova, Gláucio Veiga, Tércio Sampaio Ferraz Junior, Luis Washington Vita. Considerei como igualmente pertencentes a esta tendência Antônio Paim, Roque Spencer Maciel de Barros,  Vamireh Chacon e Antônio Luis Machado Neto.

Quanto ao pensar dialético, identifico duas grandes vertentes: uma, de cunho afirmativo, herdada do hegelianismo e do marxismo, enfatizando o poder transformador da história pela práxis humana, tem em José Arthur Gianotti um representante teórico de peso, numa linhagem que se realizou ainda em Caio Prado Junior, Leôncio Basbaum, Leandro Konder; a outra, mais recente, respaldada na leitura da Escola de Frankfurt, se expressa entre nós sobretudo na obra de Sérgio Paulo Rouanet, bem como de Olgária Matos e Barbara Freitag.

Por fim, também vem adquirindo uma consistente expressão uma nova orientação do pensar filosófico, que venho designando como  arqueogenealogia. O neologismo se justifica porque, em sua expressão filosófica, esta tendência apóia-se nas contribuições epistemológicas da arqueologia foucaultiana e nas referências axiológicas da genealogia nietzscheana. Basicamente, sua proposta substantiva está em ampliar o território da reflexão filosófica, superando sua limitação ao universo da razão pura, buscando aproximar a postura filosófica dos impulsos desejantes que habitam igualmente a esfera da subjetividade humana. Os pensadores desta tendência, ainda pouco delimitada em contornos precisos, buscam um certo sentido para o existir humano, levando em conta a trama concreta e imediata de seu modo de ser no mundo da cultura. Rompe assim com os requisitos do iluminismo da modernidade, tanto com o projeto filosófico como com o projeto científico, ambos considerados excludentemente racionalistas. Transitando pelos campos da psicanálise, destaca-se Renato Mezan e Suely Rolnik; Renato Janine Ribeiro se encontra igualmente com esta vertente com sua proposta do pensar literário. Também vejo refletindo nesta linha, Marilena Chauí, Salma Muchail e José Paula de Carvalho. Mas identifiquei como principal exemplo desta nova proposta o pensador Rubem Alves, à vista de ser a sua obra escrita a mais completa tentativa de sistematização dessa forma de pensar.

Concluindo esta sucinta apresentação de minha proposta de sistematização  da prática da filosofia no Brasil, caberia reconhecer que, embora se filiando ainda à tradição universal da reflexão filosófica da cultura ocidental, a filosofia no Brasil já se expressa com crescente criatividade e autonomia. Tanto mais criativa e autônoma se tornará, tanto mais alcançará de  universalidade, quanto mais atenta se fizer à particularidade do mundo real em que se realize. Sem dúvida, seu desafio maior encontra-se no estabelecimento da dosagem exata de seus vínculos com a temporalidade histórica e com a espacialidade social. De um lado, precisa recuperar seu tempo histórico, retornar à atualidade, ou seja, recolocar sua temática na verdadeira temporalidade, superando o historicismo e o presentismo modista. O filosofar de um povo ou de um indivíduo não paira sobre o tempo, a filosofia precisa aceitar sua própria historicidade. Aliás, só conseguirá submeter o tempo, submetendo-se a ele. Mas reconquistar sua temporalidade não significa perder seus vínculos com a história da cultura. A volta ao tempo passado é necessidade para se apreender a própria historicidade de todas as nossas práticas e, conseqüentemente, de toda a nossa existência. No âmbito do filosofar, este filiar-se às tradições só se legitima quando se dá como um diálogo em busca de soluções de problemas de relevância atual, estando sempre em pauta a superação das soluções vencidas pelo conhecimento em construção. Neste sentido, a filosofia não pode reduzir-se a sua história, se esta for entendida como mera exposição dos diferentes sistemas que se sucederam no tempo. Filosofar é, contraditoriamente, também negar as filosofias passadas para se construir novas filosofias.

De outro lado, o filosofar brasileiro atual, para redefinir-se em termos de relevância temática, precisa reconquistar sua regionalidade, seu espaço socio-cultural próprio. Por isso, a filosofia brasileira precisa voltar do exílio no qual muitas vezes se colocou mesmo sem abandonar as fronteiras geográficas do país. Alcançará a universalidade a que aspira se partir da particularidade de sua circunstância, ciente de que esta circunstância particular é prenhe de universalidade. Assim, na relação com os pensadores de outros contextos, assim como na relação com os pensadores de outros tempos, o que deve prevalecer é o diálogo, o intercâmbio e não a transposição erudita e auto-suficiente. Este diálogo é possível, apesar de todas as particularidades, porque todas as circunstâncias são atravessadas pela universalidade do humano.

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