Risco: da Filosofia à Administração

 

José de Oliveira Siqueira
Departamento de Administração da FEA-USP

 

 

"Em verdade, os negócios humanos não merecem a menor consideração da nossa parte. Todavia, somos como que obrigados a considerá-los de perto, o que não deixa de ser aborrecido. [...] O que eu digo, é que devemos aplicar-nos seriamente ao que é sério, não ao que não for. Por sua própria natureza, Deus é digno de todo o nosso zelo religioso, ao passo que o homem, conforme já o observamos, foi feito para servir de joguete nas mãos da divindade, no que, aliás, consiste todo o seu merecimento. Importa, pois, ao homem con-formar-se com sua sorte e entreter-se a vida inteira com belos jogos: eis como os homens e as mulheres precisam viver, em contrário, justamente, à sua atual maneira de pensar." Platão. Leis (1980, 803bcd)

 

Um pouco de história...

            Duas formas de acordo comercial, baseados na expectativa de um cumprimento futuro, tiveram origem direta na aposta.

            Para Huizinga (1980), o final da Idade Média assiste, tanto em Gênova como em Antuérpia, ao surgimento do seguro de vida sob a forma de apostas sobre futuras eventualidades de caráter não econômico. Apostava-se, por exemplo, “sobre a vida e a morte de pessoas, o nascimento de um menino ou uma menina, o resultado de viagens e peregrinações, a conquista  de várias terras, praças e fortes ou cidades”. Este tipo de contrato, embora houvesse já assumido caráter puramente comercial, foi diversas vezes proibido sob a alegação de tratar-se de jogo ilegal, entre outros por, Carlos V. Apostava-se sobre a escolha de um novo Papa tal como hoje se aposta em corridas de cavalo. E, ainda no século XVII, os contratos de seguro de vida eram conhecidos pelo nome de “apostas”.

            Huizinga (1980) afirma que a Revolução Francesa deflagrou uma onda de seriedade no Ocidente, que perdura até os nossos dias. O esporte, as artes, os negócios, a moda, a ciência vivem uma crise lúdica. Entretanto, no homem, o desejo de jogar é um traço indelével da sua natureza. Ainda segundo o autor, a avareza em seu estado puro não comercia e muito menos joga, i.e., jamais arrisca. Faz notar que a essência do espírito lúdico é ser audacioso, correr riscos e suportar a incerteza e a tensão. A tensão faz com que o jogo adquira mais importância, levando o jogador a esquecer que está jogando. Um jogador de roleta admite facilmente que está jogando. No entanto, um corretor de valores sustentará que a sua atividade de comprar e vender em função do comportamento da Bolsa fazem parte das coisas sérias da vida ou, pelo menos, da vida dos negócios, e constitui uma função econômica  da sociedade. Nos dois casos o fator operante é a expectativa de lucro. Mas, enquanto no primeiro caso o caráter puramente fortuito da coisa é geralmente reconhecido, no segundo, o jogador ilude-se a si mesmo com a idéia de que é capaz de prever a tendência futura do mercado. Seja como for, é ínfima a diferença de mentalidade entre ambos os casos.

            Conforme Epstein (1977, p. 295-305) o mercado acionário é um fenômeno de tomada de decisão gigantesco cujos jogadores são denominados eufemisticamente de investidores. O autor compara o mercado acionário à aposta em cavalos. Uma característica peculiar do mercado acionário está na duração extremamente variável de um jogo completo e na exata determinação do retorno durante um longo período de jo-go, devido à variação do poder de compra do dinheiro, taxas de impostos, disponibili-dade de mercadorias, invenções, guerras, mudanças de governos, reviravoltas políti-cas, deslocamentos em massa, que influenciam psicologicamente o comportamento dos investidores. Refletindo um amálgama de fatores econômicos, monetários e psicológicos, o mercado acionário representa o mais sutilmente intrincado jogo inventado pelo homem. Nas páginas 287 a 294, Epstein relata que a mais antiga descrição de uma corrida de cavalos aparece no livro XXIII da Ilíada de Homero, e que ela parece remontar do povo hitita de 1500 a.C. O autor aborda matematicamente o problema da aposta em corridas de cavalo e culmina com a aplicação do princípio da máxima entropia da Teoria da Informação.

            Baxter & Rennie (1998) iniciam o livro discutindo o problema da aposta em corrida de cavalos, para discutir os elementos essenciais da formação de preços racionais de derivativos. Este exemplo foi adaptado nesta tese, substituindo a aposta em corrida de cavalos por uma aposta em partida de futebol (final de um campeonato entre o Corinthians e o São Paulo).

            Bekman & Costa Neto (1980) também utilizam a partida de futebol (final de uma copa do mundo entre Brasil e Argentina) como situação decisória enfrentada por um torcedor brasileiro chamado João, para exposição dos principais conceitos de análise da decisão.

            Do ponto de vista psicológico, Zuckerman et al. (1980) relatam que parece haver basicamente dois tipos de traços psicológicos nos seres humanos: buscadores e os não-buscadores de sensação. Esta distinção explicaria uma série de comportamentos dos indivíduos. O indivíduo buscador de sensação, do tipo que persegue prazeres hedonisticamente por meio de atividades de extroversão, incluindo beber socialmente, festas e atividades sexuais, tende a estar mais interessado em jogar e é mais sensível às probabilidades e aos valores envolvidos nos jogos.

            Cover & Thomas (1991, p. 131) afirmam que, quando o mercado acionário funciona como o mercado de apostas em corridas de cavalos, então há um aumento da variação da taxa de duplicação que é igual à entropia mútua entre a informação privilegiada e a aposta na corrida de cavalos.

            Finalmente, Cox & Rubinstein (1985, cap. 8) utilizam quase um capítulo, mostrando que o mercado de opções difere de um simples mercado de apostas em corridas de cavalos. A seguir será exposto um exemplo paradigmático para que o conceito de incerteza e risco possa ser bem distinguido.

A natureza do risco

            Risco é uma conseqüência da decisão livre e consciente de expor-se a uma situação na qual se luta pela realização do bem havendo a possibilidade de ferimento.

            Perda ou dano é um ferimento humano físico ou psicológico. Conforme Pieper (1960, p. 173), "entende-se por ferimento toda a violação da incolumidade natural con-trária à nossa vontade, toda a ofensa ao ser que em si próprio descansa, tido o que con-traria a nossa vontade, tudo o que é de qualquer modo negativo, tudo o que magoa e prejudica, atemoriza e oprime. O ferimento mais profundo e extremo é, porém, a mor-te. E mesmo os ferimentos não mortais são imagem da morte". Portanto, conforme Pieper (1960, p. 179-80), o ser humano que possui a virtude cardeal da fortaleza ex-põe-se ao perigo da morte por causa do bem. E só quem é prudente (vê a realidade co-mo ela é, i.e., objetivamente) e justo (dá a cada um o que lhe é devido) pode ser forte.

            Risco financeiro é uma conseqüência da decisão livre e consciente de expor-se a uma situação na qual há a expectativa de ganho sabendo-se que há a possibilidade de perda ou dano.

            Desta forma, risco financeiro, ao longo deste estudo, será chamado apenas de risco.

            Logo, a incerteza é um componente necessário mas não suficiente para o conceito de risco.

            Em geral, a palavra risco aparece com o significado de perigo ou chance. No entanto, nenhum destes constitui seu sentido estrito.

            Para March & Shapira (1987, p. 1404), apud Steiner Neto (1998, p. 50), risco é normalmente definido como reflexo das eventuais variações nas distribuição dos retornos possíveis, com as suas probabilidades e com os seus valores subjetivos.

            Para Maccrimmon & Wehrung (1986, p. 9), apud Steiner Neto (1998, p. 51), existem três condições para a definição de risco, que são denominados componentes do risco:

·     Deve existir a possibilidade de haver perda ou dano (magnitude da perda);

·     Deve haver uma possibilidade associada a essa perda (possibilidade de perda);

·     Deve haver a possibilidade de o decisor agir de forma tal que aumente ou diminua a magnitude ou a probabilidade dessa perda ou dano (exposição à perda);

            Os mesmos autores também determinam as fontes causadoras do risco, que seriam:

·     Ausência de controle;

·     Ausência de informações;

·     Ausência de tempo.

            Conclui Steiner Neto (1998, p. 51) que o conceito de risco implica a possibilidade de escolha.

            Steiner Neto (1998, p. 70) afirma que Maccrimmon & Wehrung (1986, p. 99) mostram que retornos positivos são tratados como oportunidades e de maneira significativa, enquanto o risco é associado apenas aos retornos negativos.

            Conforme March & Shapira (1987, p. 1407), apud Steiner Neto (1998, p. 70), a questão da utilização da probabilidade de ocorrência de um retorno como algo importante é questionada por eles, que citam as palavras de um executivo entrevistado: "Eu aceito grandes riscos, independentemente da probabilidade, mas não grandes valores".

            Conforme Steiner Neto (1998, p. 50), o risco faz parte do dia-a-dia dos gerentes e executivos de tal forma que, muitas vezes, passa despercebido e a convivência com o risco pode ser definida como algo natural na vida.

            A típica situação de risco é o jogo de azar. O jogador decide jogar determinado jogo de azar porque espera ganhar, mesmo sabendo que pode perder.

            Uma distinção entre jogatina (gambling), especulação e investimento encontra-se em Moore (1986, cap. 9).

            O que há em comum entre os três conceitos é a presença da incerteza.

            Além disso, para ser bem-sucedido em qualquer um deles, o conhecimento dos componentes dos riscos (perdas/ganhos e incertezas) envolvidos é essencial.

            Para a jogatina, o ganho esperado é negativo, e a única vantagem ocorre se a utilidade de um alto prêmio com baixa probabilidade supera a perda do dinheiro apostado. Uma empresa normalmente não irá jogar, já que no jogo ela não pode controlar os riscos, mas pode especular ou investir em um novo produto, argumentando que, nessas situações, ela pode controlar os resultados no sentido de que ele é o melhor preditor dos resultados dos outros participantes do mercado.

            Conforme Bernstein (1997, p. 21) o executivo de sucesso é antes de tudo um previsor; comprar, produzir, vender, fixar preços e organizar vêm depois.

            Especulação e investimento diferem principalmente nos níveis de incertezas envolvidas, mas, na especulação, a presença da incerteza é maior.

            Portanto, a especulação é a aceitação de risco que prevê ganho mas reconhece possibilidade de prejuízos maiores que a média. A especulação é uma atividade necessária e produtiva. Pode ser lucrativa a longo prazo, quando realizada por profissionais que geralmente limitam suas perdas utilizando várias técnicas de hedging, inclusive operações com opções, venda a descoberto, ordens para prevenção de prejuízos e negociações de contratos futuros. O termo especulação indica que um negócio ou investimento de risco pode ser analisado e avaliado e se diferencia do termo investimento pela graduação do risco.

            Logo, investimento é o uso de capital para gerar mais recursos, seja por meio de negócios geradores de renda ou de empreendimentos mais arriscados destinados a ganhos de capital. Pode se referir a um investimento financeiro (quando um investidor põe dinheiro em determinado negócio) ou a um investimento de esforço e tempo por parte de um indivíduo que deseja colher lucros pelo sucesso de seu trabalho. Investi-mento sugere a idéia de que a segurança do valor principal investido é importante.

            A especulação, por outro lado, é bem mais arriscada. Segundo Sassatani (1999), na Economia, não é incomum encontrar o termo risco como sinônimo de incerteza. De acordo com Machina & Rotstchild (1990, p. 227), apud Sassatani (1999), risco pode ser utilizado como sinônimo de incerteza ou informação incompleta. Um dos tópicos estudados na Microeconomia trata da escolha na incerteza [Kreps (1990) e Pyndick (1995)]. Contudo, coube ao economista Frank Knight (1972, p. 249) fazer a distinção entre risco e incerteza: "A diferença prática entre as duas categorias, risco e incerteza, é que na primeira a distribuição do resultado num grupo de casos é conhecida (quer através do cálculo a priori, quer das estatísticas da experiência passada), enquanto no caso da incerteza isso não ocorre, em geral devido ao fato de que é impossível formar um grupo de casos, porque a situação que se enfrenta é, em alto grau, singular". Pela definição de Knight, a diferença básica entre risco e incerteza consiste na presença ou não de uma distribuição de probabilidades sobre um certo evento. Dessa forma, incerteza se refere a situações em que não se conhece a distribuição de probabilidade dos resultados. Risco é a situação em que se podem estabelecer os possíveis resultados e suas respectivas probabilidades de ocorrência.

Gestão do risco

            A gestão do risco consiste em obter informações adequadas para conhecer melhor a situação de risco e/ou intervir nela, tendo como resultado a melhoria da qualidade das decisões nesta situação, com possibilidade de perda ou dano.

            Os componentes da perda potencial (componente negativa do risco) são: (i) magnitude, (ii) chance de ocorrência e (iii) grau de exposição.

            Os elementos determinantes da perda numa situação com risco, adaptado de Steiner Neto (1998, p. 52), são: (i) impossibilidade de dominar as forças da natureza (condições climáticas, leis da natureza etc.), o comportamento humano (livre arbítrio, ações e atitudes individuais e coletivas etc.) e os recursos limitados (tempo, capital etc.) e (ii) informação incompleta, podendo ela ser inadequada, inconfiável, não familiar, imprevisível ou inacessível.

            O exemplo paradigmático de gestão de risco a seguir foi inspirado no exemplo de Steiner Neto (1998, p. 50).

            Exemplo paradigmático de gestão de risco

Situação de risco: dirigir um automóvel na cidade de São Paulo

Ganhos esperados: flexibilidade de locomoção na cidade e visibilidade da condição financeira e social

Perdas e danos potenciais: ferimentos pessoais, parentes, outros motoristas e transeuntes, ofensas morais, defeitos do carro, doenças provocadas pela poluição e estresse, multas, aumentos de impostos, desvalorização, roubo/furto, atropelamento, batida etc.

O quadro a seguir foi adaptado de Steiner Neto (1998, p. 52).

 

Componentes da perda potencial

Determinantes do perda potencial

Magnitude

Chance

Grau de exposição

Falta de controle
Como reduzir...?

Fazer seguro do carro, possuir um carro barato, locar um carro etc.

Estacionar sempre em estacionamento pago, evitar caminhos perigosos, possuir um carro discreto e não muito visado por ladrões, dirigir com cuidado e usar cinto de segurança, possuir um carro seguro (ar condicionado, air bag e blindado com vidros à prova de bala; não dirigir e utilizar transporte coletivo; morar perto do trabalho e escola etc.

Não dirigir e utilizar transporte coletivo ou motorista particular, morar perto do trabalho e escola.

Falta de informação

Qual a sua magnitude?
Acompanhar os preços de mercado de novos e usados e os preços dos serviços, manutenção e peças de reposição.

Qual é a probabilidade de sua ocorrência?
Acompanhar as Estatísticas de ocorrências por tipo de sinistro.

Quais são as alternativas para compartilhá-la?
Há várias empresas seguradoras, corretores, tipos de seguro (prazo, preço, condições etc.).

Conforme Steiner Neto (1998, p. 53) a atitude do decisor diante do risco é uma prerrogativa individual.

A atitude diante do risco supõe a consideração da atitude diante da incerteza e da perda potencial e da expectativa de ganho da situação.

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