Características Fundamentais
 de uma Tese de Doutorado
 em Ciências Sociais

 

José de Oliveira Siqueira
Depto. de Administração da FEA-USP

 

"E, com efeito, este é o comportamento do especialista. Em política, em arte, nos usos sociais, nas outras ciências tomará posições de primitivo, e ignorantíssimo; mas as tomará com energia e suficiência, sem admitir - e isto é paradoxal - especialistas dessas coisas. Ao especializá-lo a civilização o tornou hermético e satisfeito dentro de sua limitação; mas essa mesma sensação íntima de domínio e valia o levará a querer predominar fora de sua especialidade. E a conseqüência é que, ainda neste caso, que representa um maximum de homem qualificado - especialismo - e, portanto, o mais oposto ao homem-massa, o resultado é que se comportará sem qualificação e como homem-massa em quase todas as esferas da vida"

José Ortega y Gasset. 1984. "A barbárie do especialismo" Humanidades 2(6): 147-9. Brasília: Editora Universidade de Brasília

 

            Uma tese de doutorado em Ciências Sociais Aplicadas como Economia, Administração, Contabilidade etc., do ponto de vista filosófico, deve possuir algumas características destacadas a seguir.

            O modelo proposto deve ser parcimonioso em termos de hipóteses constitutivas. Dessa forma, deve-se seguir o princípio da parcimônia (navalha de Occam). Conforme William of Occam (1285-1349), apud Cover & Thomas (1991, p. 4), “as causas não devem ser aumentadas em número além do necessário”, isto é, a mais simples explicação é a melhor. Ao relacionar Finanças com Teoria da Informação de Shannon, Samperi (1998, p. 4) utiliza a navalha de Occam. Merton (1973, p. 161) também sugere o uso deste princípio para a determinação do preço racional da opção. Segundo Poincaré (1984, p. 158), para um espírito acostumado a admirar os modelos da física, dificilmente uma teoria é satisfatória e ele não somente não tolerará a menor aparência de contradição, como exigirá que as diferentes partes da teoria estejam logicamente interligadas e que o número de hipóteses distintas seja o menor possível.

            Se a tese for quantitativa e estiver ligada a um problema econômico, deve seguir uma abordagem econométrica. Conforme Frish[1] (1933), apud Greene (1997, p. 1), na primeira edição da Econometrica a Sociedade Econométrica estabeleceu que seu objeto principal será promover estudos que contribuam para a unificação das abordagens teórico-quantitativa e empírico-quantitativa de problemas econômicos que estejam permeados por um raciocínio construtivo e rigoroso, semelhante àquele que predomina nas ciências naturais. Mas há várias facetas da abordagem quantitativa em Economia, e nenhuma delas isoladamente deve ser confundida com econometria. Então, a econometria não é o mesmo que a Estatística Econômica. Nem é idêntica à Teoria Geral Econômica, embora uma parte considerável desta teoria possua um caráter realmente quantitativo. Tampouco deve a Econometria ser tomada como sinônimo de aplicação de Matemática em Economia. A experiência tem mostrado que cada um destes três pontos de vista – Estatística, Teoria Econômica e Matemática – é uma condição necessária, mas não suficiente para o real entendimento das relações quantitativas na vida econômica moderna. É na unificação dessas três abordagens que reside o seu poder e é essa unificação que constitui a Econometria. Conforme Ebrahimi et al. (1999, p. 317), a principal atividade em Econometria é a estimação de funções de distribuição de probabilidade e de processos estocásticos baseada em informação incompleta (e.g. estimação, teste de hipótese, seleção de modelo, análise de portfólio etc.). O uso da teoria da probabilidade, conforme Theil (1967, p. vi-vii), é atualmente marcante. Esse autor destaca três estágios da Teoria da Probabilidade em Economia: (i) a Teoria da Probabilidade é básica para a Estatística; a Estatística é útil para a Economia (análise de regressão, amostragem etc.); desse modo, a Teoria da Probabilidade afeta indiretamente a Economia Aplicada por meio dos métodos estatísticos utilizados; (ii) mais recentemente (até 1966), tem-se visto o desenvolvimento da teoria da tomada da decisão em condição de incerteza. A maneira mais simples de tratar a incerteza é utilizar os conceitos da teoria da probabilidade; essa é a maneira como a teoria da probabilidade entra diretamente na teoria econômica e (iii) Theil (1967, p. vi) pensa que há uma terceira e muito mais ampla área na qual a teoria da probabilidade pode ter um papel útil. Como ele parte da definição de Economia como sendo a disciplina que está preocupada com a alocação de recursos escassos para finalidades alternativas, considera que a Teoria da Probabilidade, no sentido usual da palavra, pode ser considerada como um problema de alocação especial, isto é, dados n eventos, há n probabilidades parciais que necessitam ser alocadas a eles, baseando-se na confiança de duas realizações. Segundo Theil (1967, p. vi), a Teoria da Informação é a abordagem adequada para atingir esse fim. Conforme Efron & Tibshirani (1993, p. 392), a Estatística trabalha no campo do conhecimento no qual interagem a ciência, a matemática e a filosofia. Contra a matematização das Ciências Sociais temos as palavras de Plauto Faraco de Azevedo (1975, p. xii-xiii) na Introdução do livro - que ele próprio traduziu - Fuller (1993): "Perelmam combate a opinião de tantos filósofos que consideram - e continuam considerando - que toda forma de raciocínio que não se assemelhe ao matemático não pertence à lógica. Contra esta opinião injustificada e caduca sustenta Perelman que há mesmo formas de raciocínio mais elevadas, que não constituem propriamente cálculos nem tampouco podem ser formuladas como 'demonstrações', pertencendo, em contrapartida, à argumentação". E é este "precisamente o tipo de raciocínio empregado pelo jurista... A tradição cartesiana, que busca acima de tudo a evidência, desdenha qualquer proposição que não possua o caráter de óbvio, do indiscutível, do exato, do preciso. Todavia, esta concepção logicista ou matematizante do pensamento é demasiada estreita, pois não abrange grande quantidade de raciocínios, que não têm e nem podem ter forma demonstrativa... Mas sucede que a própria índole da deliberação e da argumentação se opõem à evidência e à necessidade absoluta; porque não se delibera nos casos em que solução têm caráter de necessidade, como não se argumenta contra a evidência. A argumentação tem seu sentido no verossímil, no plausível e no provável, escapando estes à certeza de um cálculo exato de que resulte uma única solução justificável em termos absolutos... Já os cultores das Ciências Naturais apenas reconhecem a evidência da intuição sensível, da experiência e da indução... Tanto a concepção cartesiana quanto a dos cientistas empíricos mutilam o campo da razão, posto que lhe negam a capacidade para tratar dos domínios em que nem a dedução lógica nem a observação dos fatos podem fornecer-nos a solução dos problemas. A aceitar-se esta circunscrição da razão em tais domínios, não nos restaria outro recurso exceto o de neles entregar-nos às forças irracionais, a nossos instintos ou à violência"[2].

            No caso de a tese pretender também aprimorar a tecnologia de mensuração de algo, deve-se adotar um método de pesquisa denominado método de desenvolvimento. Esse método é definido por Contandriopoulos et al. (1994, p. 41) como uma “estratégia de pesquisa que visa, utilizando-se de maneira sistemática os conhecimentos existentes, elaborar uma nova intervenção ou melhorar consideravelmente uma intervenção existente ou, ainda, elaborar ou melhorar um instrumento, um dispositivo ou um método de medição”.

            Uma tese que pretender ser acadêmica deverá ser eminentemente teórica. Conforme Lauand (1987, p. 78), "...acadêmico significa filosófico e filosófico significa essencialmente (entre outras coisas) teorético e, portanto, algo voltado unicamente para a captação da realidade e alheio a fins práticos...". Parafraseando Vince (1999, p. XII), esta tese é sobre teoria musical. Não é uma tese que ensina, passo a passo, como se toca um instrumento. Da mesma forma, não é uma tese sobre como vencer o mercado. Mais precisamente, é uma tese sobre conceitos matemáticos, que dá aquele importante passo entre teoria e aplicação. Ela não irá conferir habilidade para lidar com a dor emocional que a atuação no mercado de capitais reserva, quer se ganhe se perca. Conforme Sharpe & Alexander (1990, p. 195-6), por exemplo, a determinação do preço racional de um ativo necessita da construção de um modelo, isto é, da construção de uma teoria. Isso exige simplificação das situações complexas por um processo de abstração dos seus elementos essenciais. Essa simplificação é atingida por meio de hipóteses sobre o ambiente. Essas hipóteses necessitam ser simples de modo que forneçam um grau de abstração que permita o sucesso na construção do modelo. Por outro lado, o teste de um modelo está em sua capacidade de auxiliar no entendimento e na predição do processo que está sendo modelado.

            Por outro lado, muitas vezes torna-se necessário o emprego de exemplos integradores de conceitos e elucidativos. O exemplo canônico ou paradigmático permite a introdução integrada de conceitos com o mínimo de formalização matemática. Segundo Howard (1996), o exemplo paradigmático possui as seguintes características:

É um problema hipotético.

É o problema decisório não trivial mais simples possível.

Apresenta questões desafiadoras.

Possui a estrutura de problemas reais.

            Conforme Salomon (1972, p. 206-13), originalidade significa, pela própria etimologia da palavra, volta às fontes (origem, que quer dizer princípio, arqué). Não se identifica, portanto, com novidade ou singularidade, mas retorno à origem, à essência, à verdade, ainda que essa verdade se tenha perdido, obscurecido ou olvidado. Hoje se verifica o esquecimento do sentido prístino, devido talvez às idéias de progresso e moda trazidas no bojo do desenvolvimento científico e tecnológico. Mas exigir originalidade como total novidade num trabalho, para que ele seja tese ou monografia, é uma colocação ingênua, para não dizer inatingível: (i) porque a ciência é um processo cumulativo em que verdades provisórias se assentam com maior freqüência, e a revisão é uma constante; (ii) porque o que está em jogo, desde que pela primeira vez se formulou a exigência de originalidade para teses e monografias, é a questão da atualização de que se falou quando se tratou da relevância contemporânea na escolha de problema que mereça ser investigado cientificamente; (iii) porque, desde tempos remotos, considerou-se original também o trabalho que apresenta modo novo de abordar um assunto já tratado ou que consegue estabelecer relações novas, ou, finalmente, que se propõe uma nova interpretação de questões controversas. Ademais, nem todas as ciências são como as naturais, que, através de experimentos, conseguem realmente descobertas e inventos.

            De acordo com Castro[3] (1978, p. 55), apud Sassatani (1999), uma tese deve ser original, importante e viável. Um tema é importante quando polariza ou afeta um segmento substancial da sociedade. O fato de não haver sido feito não confere necessariamente originalidade. Um tema original é aquele que tem o potencial de nos surpreender.

Bibliografia

Contandriopoulos, A.-P.; Champagne, F.; Potvin, L.; Denis, J.-L. & Boyle, P. 1994. Saber preparar uma pesquisa. São Paulo: Hucitec-Abrasco.

COVER, T. M. & THOMAS, J. A. 1991. Elements of Information Theory. New York: John Wiley.

EBRAHIMI, N.; MAASOUMI, E. & SOOFI, E. S. 1999. "Ordering univariate distributions by entropy and variance" Journal of Econometrics 90: 317-36.

EFRON, B. & TIBSHIRANI, R. J. 1993. An introduction to the bootstrap. New York: Chapman & Hall.

Fuller, L. L. 1973. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Fabris.

GREENE, W. H. 1997. Econometric analysis. 3ª ed. New Jersey: Prentice Hall.

HOWARD, R. A. 1996. “Options” In Zeckhauser, R. J.; Keeney, R. L. & Sebenius, eds., Wise Choices. Decisions, Games, and Negociations. Boston, Massachusetts: Press: Harvard Business School.

LAUAND, L. J. 1986. Educação, teatro e Matemática medievais. Coleção Elos. São Paulo: Perspectiva.

LAUAND, L. J. 1987. "O que é uma Universidade?" São Paulo: Perspectiva e EDUSP.

MALINAK, S. M. 1996. “The value of searching for better alternatives” (Tese de doutorado) Orientador: Ronald A. Howard. Department of Engineering-Economic Systems and Operations Research – Stanford University.

MEGALE, J. F. 1992. "Os clássicos das Ciências Humanas: perfil de um clássico/1" São Paulo: FEA-USP.

MERTON, R. C. 1973. “Theory of rational option pricing.” Bell Journal of Economics and Management Science 4: 141-83.

MERTON, R. C. 1973. “Theory of rational option pricing.” Bell Journal of Economics and Management Science 4: 141-83.

POINCARÉ, H-J. 1984. A ciência e a hipótese. Brasília: Universidade de Brasília.

SALOMON, D. V. 1972. Como fazer uma monografia: elementos de metodologia do trabalho científico. 2ª ed. Belo Horizonte: Interlivros de Minas Gerais.

SAMPERI, D. 1998. “Inverse problems, model selection and entropy in derivative security pricing” (Tese de doutorado) Orientador: Marco Avellaneda. Departamento de Matemática da Graduate School of Arts and Sciences - New York University.

SASSATANI, R. 1999. "Uma análise empírica do preço da incerteza nos contratos futuros de índice Bovespa da BM&F" (Dissertação de mestrado) Orientador: José Roberto Securato. Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.

SHARPE, W. F. & ALEXANDER, G. J. Investments. 4ª ed. NJ: Prentice Hall.

SIQUEIRA, J. de O. 1999. "Determinação entrópico do preço racional da opção européia simples ordinária sobre ação e bond: uma aplicação da Teoria da Informação em Finanças em condição de incerteza" (tese de doutorado) Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA-USP).

THEIL, H. 1967. Economics and Information Theory. Amsterdam: North-Holland.

VINCE, R. 1999. Cálculo e análise de riscos no mercado financeiro. São Paulo: Makron Books.



[1] Frish, R. 1933. "Editorial." Econometrica 1:1-4.

[2] Perelman, Chaim - De la justicia (De la justice) Trad. De Ricardo Guerra. México: Universidade Nacional Autónoma de México, 1964, p. ii-iii.

[3] Castro, C. de M. e. 1977. A prática da pesquisa. 1ª ed. São Paulo: McGraw-Hill.