A Tese de Pascal: Teologia e Física
 - uma introdução ao Préface pour le traité du vide[1]

Josef Pieper
Trad.: L. Jean Lauand

 

            Que é a tradição? Qual é sua natureza, seu fundamento e até onde, eventualmente, se estende sua autoridade absoluta?

            É no decorrer de um caso muito curioso e muito dramático da história do pensamento, no começo dos "tempos modernos" que essas questões foram formuladas de modo exemplar e com uma precisão que nada deixa a desejar. São protagonistas desse caso muitos dos personagens marcantes da época: Galileu, Descartes, Pascal. Pascal não é apenas um dos protagonistas: ele, com vinte e quatro anos, tentou fazer o balanço do caso: com uma tese muito clara sobre o domínio em que a tradição é válida e sobre os limites desse domínio.

            Esta tese encontra-se num curto tratado, cujo título, à primeira vista, pode desorientar: Prefácio ao tratado sobre o vácuo (o tratado, ele jamais chegou a escrever...)

            Na verdade, o principal personagem desta história é o vácuo. Mais exatamente, o "horror ao vácuo" (que podemos considerar como uma espécie de personagem mitológico).

            Esse "horror" - para as concepções fundamentais que se tinha na época sobre as ciências naturais - constituía uma das forças primordiais da realidade material do universo.

"Sabeis - diz Pascal (Carta a M. Périer, 15-11-1647) - o sentir dos filósofos nessa matéria: todos adotam a máxima que a natureza aborrece o vácuo e quase todos, indo mais além, sustentam que ela não o pode admitir e que se auto-destruiria antes de suportá-lo".

            Entre os filósofos que pensavam dessa maneira, encontra-se também Descartes. Nos Principes de la Philosophie, publicado três anos antes (já o primeiro parágrafo fala dos "juízos precipitados" dos que não podemos nos livrar "se não nos determinamos a duvidar, uma vez na vida, de todas as coisas em que não encontramos a mínima suspeita de incerteza"), nesta mesma obra de Descartes (o que não deixa de ser irônico...) a idéia tradicional de horror ao vácuo é apresentada como uma intuição irrefutável da razão[2].

            O próprio Pascal - no momento em que, pela experiência, está a refutar este dogma - chega a dizer:

"Eu não ousava então (e ainda agora não ouso) abandonar a máxima do horror ao vácuo... Com efeito, não penso que nos seja permitida a superficialidade de afastar-nos das máximas que nos foram legadas pela Antigüidade, se a isso não somos obrigados por provas indubitáveis e irrefutáveis" (Carta a M. Périer, 15-11-1647).

(Uma observação de passagem: a posição de Pascal é muito diferente da cartesiana. Pois Descartes parece dizer: rejeitemos tudo o que não é absolutamente certo; enquanto Pascal, o que afirma é: retenhamos tudo, até que se prove que é falso).

            No caso do horror ao vácuo, aliás, mesmo um homem como Galileu é incapaz de se subtrair ao influxo da tradição, que, alem do mais, parecia estar confirmada pela experiência (como no caso do funcionamento de bombas e outras máquinas hidráulicas); mas é, sem dúvida, o argumento metafísico que era decisivo: já que o "nada" não podia existir, igualmente impossível seria um espaço no qual não houvesse "nada"[3].

            No entanto, as dúvidas sobre o valor desse argumento vieram do âmbito da experiência. Em 1640, os fabricantes de bombas de Florença procuram saber de Galileu, seu velho e célebre concidadão (então, com setenta e cinco anos), por que a aspiração da bomba não fazia a água subir para além de um certo nível (e, portanto, o "vazio" não estaria totalmente ocupado). Galileu foi reticente em sua resposta; ou antes, respondeu, tentando aportar um corretivo ao dogma do horror ao vácuo. Foi seu discípulo Torricelli quem encontrou, progressivamente, pela experiência, a solução: apesar da aparente impossibilidade metafísica, ele encontrou o vácuo; o vácuo que aparece num tubo cheio de mercúrio, quando se vira o tubo numa cuba: o que hoje se denomina "experiência de Torricelli".

            Para se compreender a que ponto as reações em relação a essa experiência puderam ser passionais (paixão que se reflete nas obras literárias e científicas da época, bem como no epistolário de Pascal), é necessário atentar para o fato de que a subversão atingia uma idéia fundamental da estrutura do real e, ao mesmo tempo, acirrava toda uma discussão de princípios sobre o método científico.

            Essa discussão, aliás, estava já em pauta há séculos no Ocidente, pelo menos desde Alberto Magno, que, em seu De Animalibus, havia escrito: "Passo em silêncio as indicações dos antigos, porque elas não se coadunam com as daqueles que fizeram experiências". E no De Vegetalibus: "Experimentum...  solum certificat in talibus".

            É pois, Pascal, dizíamos, quem empreendeu a tarefa de transformar a controvérsia sobre o horror ao vácuo, para poder chegar - para além da polêmica - a uma fórmula nova quanto ao problema mais geral da tradição: o verdadeiro problema que se escondia no fundo de toda aquela discussão.

            A primeira frase do Préface parece ainda cheia de agressividade para com a estéril controvérsia que ele sustenta contra os que defendem as idéias aristotélico-escolásticas sobre a natureza[4]:

"O respeito que se devota à antigüidade encontra-se, hoje, tão difundido em matérias nas quais deveria ter menos força, que de todos os pensamentos dos antigos, fazem-se oráculos e até suas obscuridades tornam-se respeitáveis mistérios; a tal ponto, que não se pode, impunemente, propor novidades e que o texto de um autor baste para destruir as mais poderosas razões...".

            À primeira vista, isto tem toda a aparência de seguir a linha de um Montaigne e de um Francis Bacon, recusando radicalmente, sistematicamente, a tradição. Mas, logo a seguir, Pascal desfaz essa impressão:

"Não é minha intenção sair de um vício para cair em outro e desprezar os antigos, porque outros os têm em demasiada conta. Não pretendo banir sua autoridade para ressaltar a pura razão, embora haja quem pretenda afirmar apenas essa autoridade em detrimento da razão".

            O que é paradigmático nas reflexões de Pascal é que elas buscam atingir uma visão de conjunto do fenômeno, "salvar" seu conteúdo completo. Pode-se tentar resumi-las assim: há, manifestamente, dois tipos de conhecimento humano: um, baseado na autoridade e na tradição; outro, na experiência e na razão.

            O melhor exemplo do primeiro é a teologia: aqui, o único aprendizado é pela palavra transmitida pela tradição. O segundo é representado pela física: neste caso, a autoridade da tradição é inútil. E assim, nesse domínio das ciências fundadas sobre a experiência e a razão, a autoridade dos antigos não tem lugar legítimo. Aliás, se observarmos bem, somos nós, os "modernos", que somos os "antigos" em comparação com as épocas passadas:

"Aqueles que chamamos antigos eram verdadeiramente novos em todas as coisas e formavam propriamente a infância dos homens; e como acrescentamos a seus conhecimentos a experiência dos séculos que a eles se seguiram, é, em nós, que se pode encontrar esta antigüidade que reverenciamos nos outros".

            É a partir dessa distinção que Pascal considera claramente a situação intelectual de sua época:

"O esclarecimento dessa diferença, por um lado, leva-nos a lamentar a cegueira daqueles que aportam só a autoridade como prova em matérias físicas, em vez de raciocínio e experiências; e, por outro lado, deve nos causar horror a malícia de outros, que empregam só o raciocínio em teologia, em vez da autoridade da Escritura e dos Santos Padres... No entanto, a desgraça do século é tal, que se vêem muitas opiniões novas em teologia, desconhecidas por todos os antigos...; enquanto os resultados da física, embora em pequeno número, se conflituarem - mesmo que minimamente - com as opiniões recebidas, parecem dever ser reduzidos à falsidade".

            Tal é, pois, esquematicamente, a conclusão que Pascal tira de sua experiência pessoal na controvérsia sobre o horror ao vácuo. A última frase do Fragmento é grandiosa: "independentemente da força que tenha esta antigüidade, a verdade deve sempre prevalecer, mesmo que recentemente descoberta, já que a verdade é sempre mais antiga do que qualquer opinião que se tenha sobre ela: seria ignorar sua natureza, pensar que ela tenha começado a existir no momento em que ela começou a ser conhecida".



[1]. O Préface au traité du vide é um texto clássico de Pascal que trata -original e magistralmente - da questão da Ciência e da Tradição. Apresentamos ao leitor a tradução do excelente estudo de Josef Pieper "La thèse de Pascal: théologie et physique" in "Le concept de tradition" La Table Ronde No. 150, juin 1960, Paris, Plon (Nota de LJL).

[2]. Encontramos, por exemplo, nos Principes de Descartes: "... Nous concevons manifestement que la matière, dont la nature consiste en cela seul qu'elle est une chose étendue, occupe maintenant tous les espaces imaginables... Nous ne saurions découvrir en nous l'idée d'aucune autre matière" (II, 22). Cf. Météores, Discours I.

[3]. A possibilidade do "vazio" foi já discutida na filosofia pré-socrática (Anaxágoras, os eleatas). Platão responde "não" em um de seus últimos diálogos, o Timeu (79 b 1, 79 c 1). Igualmente, Aristóteles na Física (213 a - 217 b). Os comentadores de Aristóteles, na Idade Média, dedicaram a essas passagens, um lugar importante. É o caso de S. Tomás (In Phys. 4, 13), que cita também os argumentos de Averróes.

[4]. Cf. principalmente as cartas de Pascal ao Pe. Noël (29-10-1647) e a Le Pailleur (fevereiro-março de 1648).